Imagem: Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
A tensão nervosa era densa e visível. Estava nos rostos, nos gestos, estava no ar. De súbito, um estrondo e começaram a correr. A rua, nas luzes da noite, estava semidestruída. A praça ao lado, que costumava estar cheia de gente, estava deserta.
Grande multidão havia se reunido a uns 300 metros além, daí correrem até o local. Uma espécie de sentimento de alcateia, empurrado pela preocupação de cruzarem com patrulhas próximas.
— Fica junto, fica todo mundo junto!
— Tem alguém dirigindo essa bagunça? Precisa orientar as pessoas, antes que dispersem mais ainda.
— Não sei, depois que se espalharam, não vi mais ninguém. Correm para um lado, daqui a pouco correm para o outro.
Alcançaram os demais e ofereciam os mesmos questionamentos, recebendo as mesmas respostas. Não sabiam se existia, ou onde estava algum tipo de direção. A turba estava solta, sem saber para onde ir.
Também não demorou para que a tropa de choque dobrasse a esquina, já em formação cobrindo todo o espaço. Ao que parece acabariam tangidos e empurrados mais uma vez. O movimento, de início organizado se esfacelava na medida que o tempo passava. Pareciam apenas fugir, já não faziam outra coisa.
— A mídia, os cinegrafistas, vieram para cá? Está conseguindo vê-los com aqueles coletes?
— Olha, desde o início só vi uma dupla passando. Depois não vi mais ninguém.
— Também vi essa dupla, só não sei para onde foram.
— Também pudera. Gravar vidraças em pedaços, carros revirados e incendiados devem ter perdido a graça. Não há mais interesse. Não nos ouvem mais.
— É, gente correndo também não interessa mais.
Olhavam em volta, procurando dimensionar a multidão e encontrar caras conhecidas.
Quando a multidão parecia mais uma vez adensar, iniciou uma série de disparos de bombas de gás, a partir da coluna que bloqueava a continuação da rua.
Trinta ou quarenta disparos encheram a rua de fumaça causticante. O vento suave da noite ajudava a empurrá-la por sobre a multidão. Buscou-se reagir com paus e pedras, todavia, a massa compacta de soldados retaliou pesadamente.
Entre correrias, gritos e explosões, dispersavam de vez. A rua, novamente destroçada, com o calçamento arrancado e ônibus em chamas. A tensão se transformava em melancolia.
Se no início aquela destruição já apresentava pouca serventia, naquele momento já não havia mais quem a registrasse. Havia se tornado banal. À conta de algo sem importância.
Em um dos cantos da rua, junto a praça, Diogo observava a correria se desfazer. Aos bandos, todos se afastavam, abandonando barricadas de objetos em chamas pelo caminho.
Seguiu até o poste mais próximo. O ferro doce, antigo, estava frio. Agarrou-se a ele recostando a cabeça. Havia um quase remanso, em meio ao desalento que o tomava.
Deixou-se escorregar, enquanto as pernas fraquejavam e meio que de joelhos, teve uma crise de choro. Chorava copiosamente, como quem oferece o seu último desespero.
A cena desapareceu, a rua desapareceu, a quebradeira, a correria e a gritaria. Acabou tudo, não ficaram nem lembranças. Onde foi? Por que foi? Como foi e quando? De nada adianta, já não se lembra mais. Tudo se foi.
Só sabe que desapareceu, deixando somente a escuridão.
Acordado, sonhando, dormindo, dormitando, ainda assim haviam vozes, como cochichos. Gente falando muito baixo, mal dava para perceber. O que haveriam de querer em meio àquela escuridão?
Que lugar era aquele? Como chegou até lá? O que mais havia feito depois do episódio nas ruas? O que uma coisa haveria de ter com a outra? Tudo estava ficando sem sentido.
A cabeça latejava, precisava ficar parado. Como saber o que houve? E aquele monte de gente?
Levantou-se com dificuldade e viu adiante uma luz clara ao fundo, meio azulada, que salientava uma silhueta humana. Estava em cima de algo com linhas retas.
Um caminhão qualquer, um contêiner, um palco, não sabia. Estava lá no alto sozinho e parecia se dirigir aos demais logo ali perto, onde ele próprio se encontrava.
Não havia outra fonte de luz, somente aquela ao fundo. Ao redor, pouco era possível distinguir vultos humanos. Alguns estavam em uma condição deplorável.
Em andrajos e a face parecendo deformada, na pouca luz do lugar. O cheiro do lugar era horrível, cadavérico. Cheiro de algo podre e nauseabundo.
As idiopatias do mundo pareciam ter sido reunidas em um único lugar e Diogo estava lá bem no meio. Só mais um, em meio a tantos outros idiotas.
Avançou cambaleando, a cabeça estourava. Queria ir para mais perto do homem lá no alto. Queria saber o que era aquilo. Em volta, todos pareciam tão perdidos quanto ele.
Talvez aquele homem em cima do caminhão, ou o que mais fosse, pudesse ajudá-lo de algum modo. Por ora, se pudesse ouvir o que dizia, já seria ótimo.
Chegou próximo àquele palanque improvisado. Meio que atabalhoado, pôde compreender algumas palavras. A cabeça já aliviava e podia ouvir.
— Não é o fim, tudo tem reparação! Tudo pode ser reparado, melhorado, aperfeiçoado. Não há desengano que não se possa recuperar. Ninguém foi feito para ser destruído.
Prestava atenção, queria se localizar naquele meio discurso. O que afinal poderia ser modificado, reparado?
— Aqui, bem aqui, entre vocês viceja o talento, a inteligência viva, a capacidade de realização, o ímpeto civilizador! Aproveitemos o que somos, tudo aquilo que nos foi dado, agora em nosso próprio favor, e ao fazê-lo, chegar aos demais.
Deteve-se por um instante, e recomeçou.
— Imortais, imortais! Criados assim para se superar e vencer. O apelo se renova. A Luz Divina lhes conclama a avançar, mais uma vez! Construir mais uma vez! Civilizar mais uma vez!
Ainda não compreendia, com clareza, o que de fato teria ocorrido e o que significava ter de reparar. O que deveria reparar? Isto significava recomeçar, percebia.
Mais que isso, o homem falava de fazê-lo em outro lugar. Levar a civilização a outro lugar. Entendeu que seria para outro mundo. Talvez fosse mais louco que o próprio Diogo.
— Vamos às estrelas, às estrelas é o que importa! Levem o que possam ter de melhor e semeiem no novo mundo. Façam-no florescer, mais uma vez. Às estrelas, às estrelas mais uma vez. A Divina Luz, em sua Real Grandeza, espera por cada um de vocês. Jamais estarão sozinhos!