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África Velha

                                                                

                                                                                                          Imagem: Wikipedia, por Luka Galuzzi.

Por: Antonio Mata

Ofegava, respirando com dificuldade. A visão turva, de olhos vidrados, perdia a definição das formas. Sem encarar coisa alguma que passasse, nada mais importava. Nem o sol, nem o céu, ou a carroça indiferente que passava lenta.

Vez por outra, ainda se sentia vivo. Era a passagem de alguém. Um vulto, um fantasma, cruzando apressado, pelo outro lado da rua. Fantasma ligeiro demais para dar atenção.

Era noite ou não era, fazia frio? Nem gente, nem vozes, nem nada. Nem Caio Êmulo, o comerciante, proprietário de terras, estirado no chão, junto a um muro de pedra, tinha condições de saber. O ar faltava, o corpo doía.

Os miseráveis não conhecem a riqueza. Os escravos não conhecem a liberdade. Serão estas então, duas certezas?

 

Há mais de cem anos, o inimigo cartaginês havia sido derrotado para nunca mais se reerguer. Cartago foi de tal forma desfigurada e todas as suas construções demolidas, que dos cerca de 400 mil resistentes, somente 50 mil sobreviveram, apenas para serem escravizados. Cartago foi extinta.

Rapidamente trataram de tirar proveito das terras e da posição geográfica da região. Nascia a província de África, nas terras de Cartago. A província africana de um império vencedor. Elegeram Utica, uma cidade portuária, para sediar a província.

O norte da África havia se transformado no celeiro de Roma, aprovisionando todos os seus progressos futuros. A região também funcionava como entreposto.

Recebia embarcações provenientes da Hispânia, trazendo minérios, principalmente ferro, a caminho da Itália. Ainda atuava como posto de controle da navegação para a parte ocidental do Mediterrâneo, o Mare Nostrum, o nosso mar romano.

Patrícios e plebeus, velhos legionários e cidadãos comuns, se apresentaram para aproveitar o grande momento, ávidos por riquezas. Assumir a posse das ótimas terras cartaginesas.

Foi assim que gente sem-terra e sem nome, contudo disposta a trabalhar muito, abriu espaço na formação da sociedade local.

O rico comércio com a sede do império romano enriqueceu África Velha (Africa Vetus), o nome de batismo da província que ocuparia a extinta Cartago. Depois veio África Nova, no lugar do reino da Numídia, a oeste da antiga Cartago.

Juba I, rei da Numídia, escolheu apoiar Pompeu Magno, contra Júlio Cesar, em uma guerra civil, tendo matado senadores e comerciantes romanos que haviam sido capturados. Isto lhe custou a invasão da Numídia.

Derrotado pelas legiões romanas, o rei cometeu suicídio. Tal derrota conduziu à extinção o reino númida, que outrora florescera no norte da África.

Já dizia Cícero (106-43 a.C), ...de todas as ocupações onde o ganho é seguro, nenhuma é melhor, mais rentável e encantadora para um homem livre do que a agricultura. Famílias romanas na África, mostrariam isto mais uma vez.

 

A casa senhorial se destacava na paisagem. Ricamente adornada em pedra e vidro. O assoalho, belo piso romano desenhado a partir da combinação de pequenas peças tridimensionais, cortadas manualmente em lâminas muito finas.

O material seria depois dividido em tiras para compor o conjunto, recebendo pequeninos cubos em pedra de diversas cores, ou ainda vidro. O piso romano não era só revestimento, era arte colocada no chão, além de indicativo do grau de riqueza.

Os murais, pintados em afrescos, ou ladrilhados, cobriam as paredes com motivos campestres, o trabalho no campo, flores e plantas. Avançando pela casa, podia-se ver também, animais marinhos e cenas do litoral.

Os belos jardins, em estilo mediterrâneo, ao redor da construção, ofereciam ao sabor dos ventos, principalmente à noite e ao amanhecer, os seus aromas naturais.

Tudo combinava para criar uma atmosfera de paz e tranquilidade. Um daqueles lugares que povoam as mentes de muitos homens, representativos do conforto, status e do poder alcançado. África Velha havia criado seus homens ricos.

Todavia, é no trato das questões humanas que os desvios e perdições tendem a se manifestar. Na propriedade agrícola, o lugar onde os lucros eram criados, a vida era outra.

Os barcos precisavam ser carregados com cereais, ânforas de vinho, azeite e amêndoas.

Como que falando em outra linguagem, a ordem era acelerar a colheita de modo a transportá-la até o porto o mais rápido possível. Momento em que todos os escravos, homens e mulheres, tinham de trabalhar pesado. Não se podia assumir o risco de atrasar o embarque.

Quando a linguagem não era compreendida, o lugar era dominado pelo açoite e pela vara. Nos campos agrícolas e nas minas, era onde o escravo sofria mais e onde sua vida valia menos.

Pela necessidade de se extrair o máximo rendimento no menor tempo possível. Assim, os castigos físicos, em época de colheita e embarque, se multiplicavam.

Na época certa, Laelius, o feitor da propriedade, já sabia o que fazer. Conhecedor do gênio temperamental de Caio Êmulo, tomava todas as providências necessárias para que tais atrasos não acontecessem. As surras se tornavam inevitáveis, se estendendo por toda a fase do trabalho.

Dez chibatadas para as mulheres molengas no serviço, dez varadas nos homens. Vinte no caso de reincidência do delito. Todos se apressavam, para além do que lhes fosse possível.

Damya havia se atrasado na colheita do trigo, sendo a última de seu grupo no somatório de cestos colhidos. Por conta disso foi alvo do castigo desferido por Laelius.

Recolhida por outras mulheres, lhe aplicavam um unguento feito com ervas, preparado às pressas no local. Êmulo não aceitava castigo por sobre as vestes, era preciso despir as costas. Muitos dos berberes são brancos ou morenos claros. As cicatrizes produzidas pelos ferimentos, rapidamente se tornavam visíveis. Era o indicativo de um mau escravo.

— Não vai parar, isso não vai parar. Só com a nossa morte, só com a nossa morte. — Repetia Damya.

Ddunit a confortava.

— Falta pouco, agora falta muito pouco. Em poucos dias a colheita termina e o demônio vai voltar para sua casa. Assim o seu cão de guarda vai baixar aquele chicote.

— Tenha calma Damya. Terminada a colheita, a gente tem mais sossego. O trabalho é mais fácil um pouco. De mais a mais, não foi a primeira a ser castigada e nem será a última. Só procura ficar viva, é só isso. — Agora era Basil, a socorrer sua companheira de infortúnio.

Damya, Basil e Ddunit não foram abençoadas com o atributo da beleza, o que teria lhes proporcionado a transferência para a casa senhorial e a promessa de dias melhores.

A experiência da escravidão, uma das mais rudes e cruéis reservadas aos espíritos da Terra, estes, rebeldes e progressivamente endividados, necessitavam de algo que pudesse purificar a herança nefasta das maldades cometidas.

Uma forma pesada e rude de trazer o espírito à razão. Permitindo que reconstrua novas possibilidades de vida com maior facilidade. De uma forma ou de outra, os homens e mulheres da Terra passaram pela escravidão. É antiga e nunca deixou de existir.

Laelius, o vilicus, igualmente não havia se engraçado delas. Era por isso que não havia respeito por suas costas claras e nuas.

As mulheres berberes eram acostumadas a vida rude e difícil nos campos. Também eram habilidosas no tear e na produção de tapetes, ainda que fossem analfabetas. Diferentemente do povo romano que conhecia o latim e apreciava o grego.

Mesmo assim, tomadas de grande coragem, participaram corajosamente de muitas revoltas em apoio a sua gente. Nunca deixaram de resistir, até o fim do império romano.

Já o grito de guerra berbere, prosseguiu entre aflições e muito sangue derramado. Seguiu ecoando até alcançar o século XX, com a conquista da independência dos povos do norte da África.

 

— Só dois talentos de ouro na safra! Só dois talentos! Esses miseráveis não conseguem fazer coisa melhor?! As outras propriedades conseguem! Como aqui não se consegue? Estamos sendo lesados debaixo de nossas vistas! O que você tem feito Laelius, que não tem enxergado isto?

Caio Êmulo esbravejava, cuspindo suas injúrias sobre Laelius, que buscava palavras para responder a seu senhor. Não estava satisfeito com os quase 118 quilos de ouro. O valor de sua safra naquele ano. O império mal saíra de uma guerra civil em 45 a.C,

Não tinha de modo algum, como saber que todo aquele cenário que julgava adverso, se tornaria pior ainda antes do final de 42 a.C. Somente uma premonição, uma adivinhação, poderia ajudá-lo, se houvesse uma.

— Os escravos têm trabalhado ao máximo, meu senhor. Eu não dou chance para preguiçosos. O açoite e a vara estão sempre à mão. Talvez fosse necessário mais escravos no campo. Para agilizar mais ainda o trabalho de colheita.

— Na próxima safra Laelius, não me traga justificativas nem choradeiras. Traga mais que dois talentos. Quero tirar destas terras mais que dois talentos de ouro. É isto que você vai ter de fazer. — Cheio de amargor, Êmulo falou ainda, por cima do ombro.

— Sé é que você Laelius, ainda pretende continuar como o vilicus dessa fazenda. Pense nisso...

— Mais que dois talentos. Assim será feito senhor.

Laelius repetia as palavras de Êmulo, porém sem nenhuma convicção. Havia muitas variáveis a se considerar. O clima, a disponibilidade de boas chuvas, a ausência de pragas, além de escravos sadios e hábeis no campo. Se possível mais escravos.

Conhecia bem o seu ofício, o feitor, o administrador, o olho do dono por sobre aquelas terras. Mesmo assim, sabia da fragilidade da sua posição e de como as cobranças estavam se avolumando a cada fase do trabalho. Aquilo estava se tornando perturbador, mesmo para Laelius.

Um ex-escravo que por muito tempo foi homem de confiança do pai de Caio Êmulo, por sua competência. Com a morte do patriarca, o cínico e egoísta Êmulo, assumiu o controle das terras e dos negócios com Roma. O cargo de vilicus era de status satisfatório, além de rentável, pois era bem pago. Ótimo para quem saíra da condição de escravo.

Fazer a fazenda produzir e gerar riqueza era o seu ofício e compromisso. Um administrador que não dá lucros a seu patrão, ficava rapidamente mal visto.

Era quando a alforria, segundo ele mesmo, perdia seu sentido. Cuidar da terra e de escravos, era tudo o que sabia fazer, pois nunca conhecera outra vida que não fosse de sol a sol na lavoura.

Apesar dos pesares, ainda tinha uma grata satisfação ao ver os campos verdejantes. Sonhava, um dia quem sabe, poder cuidar de uma pequena propriedade que fosse sua.

Um escravo liberto podia ter o seu próprio pedaço de terra, e mesmo dois ou três escravos, desde que pudesse pagar por eles. Daí seu esforço e dedicação, comumente brutais, no cumprimento de suas ordens.

Discretamente, poupava seus denários e sestércios, para a realização de seu sonho. Juntava-os em uma cumbuca de barro, enterrada em lugar próximo e secreto.

Sonho aparentemente contraditório e conflituoso aquele. No entanto, totalmente apoiado na lei e nos costumes romanos de seu tempo. Laelius, a serviço de seu senhor, tinha as mãos sujas de sangue. Mas pedia o apoio dos deuses para a consecução de seu plano, o mais breve possível.

Poderia ir embora e deixar a propriedade? Sim, poderia, era livre para isso. Porém, onde chegasse para trabalhar, as ordens seriam as mesmas. Extrair o máximo proveito daqueles homens e mulheres escravizados, na lida do campo. Assim, melhor atender Caio Êmulo e prosseguir com o serviço, que tão bem sabia fazer.

Entrementes, os ventos que se abatiam sobre as províncias africanas, só serviam para dar continuidade às disputas políticas na sede do império. Os augúrios palacianos cruzariam o Mare Nostrum, trazendo seus azedumes para África Velha, inclusive.

Intrigas, personalismos e antagonismos em Roma, se juntam para fomentar um de seus reflexos mais perniciosos. Em 49 a.C., eclode a guerra civil.

Um conflito militar, de natureza pessoal e de resultados imprevisíveis que desagregou o império por 4 anos. Envolveu diretamente o patrício, político e general comandante Caio Júlio César, contra os tradicionalistas do senado romano, cujo expoente militar, era o general Cneu Pompeu Magno.

Ambos haviam lutado juntos na Gália, comandando legiões e foram correligionários políticos. Da mesma política que os separou. Cneu Pompeu Magno, foi também o mais jovem general do seu tempo.

César havia derrotado os gauleses. De volta à Roma, recebe ordens do senado para dispensar e desarmar seu exército. A lei romana proibia que legiões armadas marchassem sobre a capital. César se recusa, cruza o riacho Rubicão, adentrando a Itália e tomando a estrada para Roma. Foi o estopim de uma violenta guerra civil.

César vence a guerra civil em 45 a.C., enquanto Pompeu Magno, já derrotado, foi assassinado durante sua fuga. Guerra e esforços inúteis, pois em março de 44 a.C., Júlio César, envolvido por opositores, também acabaria assassinado.

Três meses depois, o senador de Roma e general cesariano, Quinto Cornifício, que fora aliado e homem de confiança de Júlio César durante a guerra civil, é designado pelo senado para governar África Velha.

Quinto Cornifício fora comandante de muito sucesso dificultando e atrasando o desenvolvimento da estratégia de Pompeu, fosse por mar, fosse por terra, na Ilíria, na Cilícia e na Síria.

Em África Velha as nuvens negras e funestas, finalmente haviam alcançado o governador Quinto Cornifício, o proprietário de terras Caio Êmulo, o escravo liberto Laelius, assim como Damya, Basil e Ddunit, além de incontáveis homens e mulheres anônimos. Escravos, libertos e homens livres.

O grande caldeirão de soberba, orgulhos, ódios e ressentimentos mútuos, estava prestes a entrar em ebulição. Quedas espirituais terríveis e resgates sempre necessários, se apresentavam como que em sequência.

Erros em sequência, a repetição dos desacertos da vida que aferrariam espíritos dementados nas escuridões umbralinas da Terra, mais uma vez. Em uma série milenar de reencarnações.

A província recebia um novo governador. Então, Caio Êmulo, também um discreto cesariano, e interessado no habitual trocar de favores, logo travaria contato com Cornifício, porém dispondo seus préstimos ao novo governador.

Se aproximando do grupo ligado ao general e governador, ficou então sabendo de algo, no mínimo Diferente. O governador Cornifício era áugure.

O áugure, um tipo especial de homem, considerado um sacerdote, que é capaz de fazer predições sobre o futuro. Capaz de interpretar o canto, o chiado e o matraquear dos pássaros.

Ter visões, a partir das vísceras frescas de animais, abatido especialmente para isto. Da forma do voo de certos pássaros, identificava presságios. Em transe, interpretava, a partir de suas impressões, os desejos e vontades dos deuses.

O sucesso militar em três operações distintas durante a guerra, até a conquista da vitória, por si só, já atestava a autoridade e segurança de Quinto Cornifício, no contato, não somente com os homens, mas particularmente com as divindades.

Uma predisposição orgânica, uma benção divina aos homens da terra para a sua evolução espiritual, e não um certificado de qualidade, atestado de bisbilhotice.

A capacidade de ver, ouvir, vislumbrar o futuro sem nenhum tipo de anteparo e interpretar as comunicações do outro lado da vida, quando bem aplicada, dignifica o homem.

De todo modo, não era bem este o ponto de vista defendido por Quinto Cornifício. Mais interessado em fazer conluios, acordos com os deuses, e tirar o máximo proveito para si. Ainda que fosse necessário, tapear os demais. Se julgava um favorecido, um escolhido dos deuses.

Em certa ocasião Êmulo visitou a governadoria. Tinha um pedido tão comum quanto fácil de se atender, desde de que dirigido a pessoa certa. Desejava preferência de embarque de seus grãos e demais produtos enviados a Roma. Assim obteria melhores preços no comércio de sua produção.

— Seu pedido é fácil de atender Êmulo. Aliás, nada se faz sem o conhecimento e sem se consultar as divindades. Por isso, já estou sabendo que a safra de África Velha será conduzida em segurança até Roma. Águas tranquilas ajudarão na travessia. Sem perdas e sem atrasos. Seu embarque será feito primeiro. De um cesariano para outro cesariano.

O rude Êmulo, um proprietário de terras. Não era analfabeto, mas também não possuía a polidez dos homens ricos da Itália. Ficou encantado com a fala tranquila e segura do governador.

Mais satisfeito ainda com a rápida anuência de Cornifício, ao saber que também fora, ainda que discretamente, um apoiador de César. Afeito a bajulações, indagava de seu governador como se dava seu relacionamento com os deuses.

— Ora Êmulo, é muito simples. Retidão e dignidade nos afazeres a serviço de Roma. O resto é atenção e trabalho. Quais deuses haveriam de se importunar com o trabalho digno e bem feito?

— Tem razão governador. É admirável sua segurança e a leitura que faz das situações, por difíceis que possam parecer. Afinal, acabamos de sair de uma guerra, e como vencedores.

Claro que o sorriso amarelo e meio abobado, típico dos bajuladores, não poderia faltar.

Cornifício, puxa Êmulo pelo braço, até próximo a uma janela, e lhe fala baixo, como quem conta um segredo.

— As divindades Êmulo, as divindades. Esteja em paz com as divindades. Não duvide e nem faça mal juízo. Todo o resto, deixe comigo meu amigo. A vida é assim, me ajude que eu te ajudo.

Uma bela conversa aquela. Acabara de colocar a coleira no pescoço do cachorro. Nem lhe custou nada fazer isso. O cão manso haverá de segui-lo educadamente e em silêncio.

Sem pensar, nem questionar, apenas obedecer e fazer os depósitos em ouro, sempre que necessários. No interesse apenas de aplacar e satisfazer as divindades, é claro.

Nas conversas com outros pares, toda vez que o assunto resvalava na direção do governador, nunca deixava de salientar as qualidades de liderança e capacidades do novo governador e comandante militar de África Velha. Salientando sempre a sua prestimosa capacidade de contatar e interpretar as divindades.

É bem verdade que Êmulo ganhava dinheiro embarcando sua safra na frente dos demais. Quer dizer, mais dinheiro. Mas também é verdade que se transformara em um defensor da autoridade romana na província, representada pelo cesariano e vencedor Cornifício.

A vitória na guerra, significava que o poder mudaria de mãos. Porém a morte repentina de César, trouxera um elemento de instabilidade que Cornifício sabia ser bem real.

É que o poder mudou de mãos outra vez, e tudo muito rápido. O governador não admitia que eventuais conversas resvalassem para este lado. A situação em Roma havia se tornado instável e Cornifício não era nenhum tolo.

Passar mel no bico dos proprietários de terras e promover negociatas, era uma coisa. Lidar com as raposas e orgulhosas autoridades romanas, era outra muito diferente.

Entendia que sua condução ao novo cargo de governador, visava afastá-lo de Roma, oferecendo ao general vencedor uma província, das mais ricas do império.

Lhe parecia obvio. Querer banir, encarcerar, ou até mesmo matar um cesariano vencedor, seria algo difícil de explicar às suas legiões. Melhor afastá-lo, cordialmente.

Contudo, foi posto a comandar apenas meia legião. O equivalente a cinco coortes, ou 2400 legionários de uma tropa regular. África Velha, após a destruição de Cartago, há mais de um século, nunca mais necessitou receber grandes efetivos militares.

Esta pequena guarnição o deixava inseguro. Um receio que guardava consigo, como um segredo. Seu calcanhar de Aquiles. Poderia treinar uma pequena milícia, sob o pretexto de assegurar mais segurança na província. Afinal, aqui e ali surgiam rebeliões de escravos, mínimas, quase nada. Mas o suficiente para construir o argumento.

Se o fez, a história também não registrou. Talvez tenha sido tão discreto na sua decisão, que ninguém prestou atenção. Ou ainda, desistiu da ideia, pois justificá-la em Roma, talvez fosse algo bem mais comprometedor.

Lhe acenavam com dinheiro, na administração de uma província tranquila. Era sentar, enriquecer e envelhecer, uma vez que já caminhava para os 50 anos. O problema, é que é muito difícil ludibriar uma raposa, acostumada com as intrigas do senado.

O general cesariano sentia falta de suas armas e da lealdade daqueles que lutaram com ele. Daí manter um pé atrás. Às favas com os deuses, preferiria o aço e mais legionários.

Se as divindades avisaram ou não o governador Quinto Cornifício, esse detalhe a história também não registrou. O que se sabe de concreto, é que pouco antes do final do ano, as intrigas palacianas chegaram até Cornifício.

Receberam na governadoria, um emissário de Roma trazendo o Senatus consultum ultimum. O Decreto do Senado Final. O documento senatorial exigia que Quinto Cornifício passasse a governadoria para Caio Calvísio Sabino, senador e general de Roma, ainda que sem o brilho e as vitórias de Cornifício. Porém, Calvísio também fora um cesariano leal e devotado.

De alguma forma, por alguma razão, mesmo estando distante, ainda desconfiavam de Cornifício. Só podia ser isso. Ao tomar conhecimento do consultum, o governador berrava mais que um boi no pasto.

— Quem pensam que são!? Querem me humilhar, me ultrajar! Amaciar a minha cabeça com este perdedor, este Calvísio! Não tem vitória! Não tem cabelo! Não tem nada!

Andava de um lado para o outro, tal e qual um leão desesperado, enfiado em sua jaula.

— Não vou passar a minha província para um careca perdedor!

De cara vermelha, o governador espumava pelo canto da boca. Nem as divindades queriam ficar por perto.

— Essas raposas do senado! Vão ver só uma coisa! Vão ver só uma coisa! Centurião, centurião! Mande reunir a tropa, reúna também todos os homens em condições de combater! Avise aos patifes que só sairei daqui morto!

Cornifício se tornara colérico. Tais ordens, logo teriam de ser melhor pensadas e revistas. De antemão, qualquer recruta já saberia que é no mínimo precipitado colocar homens comuns para enfrentar legionários calejados na guerra.

São máquinas de matar, sem sentimentos ou compaixão. Apenas obedecem a ordens, e isso é tudo. Por ora, por conta da gritaria, cumpra-se, depois, já mais equilibrado, suspenda-se. A tropa seria dispensada e Cornifício poderia pensar com mais clareza. A situação exigia calma e equilíbrio. Principalmente para quem fosse um áugure (médium).

Ao que parecia, a rica aposentadoria de Cornifício chegara ao fim muito antes de poder pensar a respeito. A guerra em breve se faria presente mais uma vez. Agora, com grandes desvantagens para Cornifício. E ele já sabia disso.

Tratou de solicitar o apoio de seus seguidores. Entre eles, seu cão de coleira, Caio Êmulo. Sem melhor saída para si mesmo, Êmulo ofereceu suprimentos para a guarnição de Cornifício, assim como algum dinheiro.

No ano seguinte, veio o passo que faltava para sentenciá-lo. Cornifício foi considerado proscrito de Roma, sendo o governo oferecido a Tito Sêxtio, também cesariano e general romano.

Outro general, outro cesariano. Pareciam demônios a atormentar o já atormentado senado. Aplacá-los atingindo somente os mais radicais. Este era o nome do jogo.

Sêxtio já havia assumido o governo de África Nova em 44 a.C. Ante a oposição de Cornifício, em novembro de 43 a.C., e como possuísse 5 mil legionários descansados e mais 2 mil auxiliares, recebeu ordens do senado de invadir África Velha e desbaratar as tropas de Cornifício, retomando o controle do senado romano.

A batalha se deu nas imediações da cidade fortificada de Utica, a capital, a 40 km das ruínas de Cartago. Com um número inferior de soldados, Cornifício, ao perceber que a derrota era iminente, colocou seu elmo e atirou-se em campo, de espada em punho, ao lado de sua última centúria de legionários.

— Sêxtio, seu covarde, venha ver como morre um general cesariano! Morte aos traidores, Ave Cesar!

Bravura indômita, fidelidade e honra. A liga de aço que forjou um império. Contudo, o tempo de Júlio Cesar, inexoravelmente já havia passado. Roma prosseguiria, entre intrigas, guerras e destruição. Tudo em nome do poder.

A morte de Cornifício e a chegada de um novo governador, disparou uma onda de caça às bruxas. Se de um lado Sextio queria tranquilizar os ânimos, do outro, queria localizar os colaboradores e simpatizantes mais diretos. A ordem era pacificar e retomar o controle. Tanto quanto já o tinha feito em África Nova.

O grande caldeirão de soberba, orgulhos e ódios fervia intensamente e se acercava da população civil, na busca de colaboradores. As prisões rapidamente começaram a acontecer.

— Laelius, Laelius! Chame os escravos coloque todas estas coisas na carroça. Rápido, faça isso rápido!

— Sim senhor. Pretende viajar, vai demorar muito?

— Ora, não faça perguntas, apenas carregue a carroça. Preciso sair logo. Há um barco esperando.

Os escravos carregaram a carroça de seu senhor. Diversos objetos de valor, além de alforges de couro cheios de moedas de ouro e prata. Caio Êmulo estava prestes a fugir.

Laelius entra para buscar o último alforge. Escuta o barulho dos animais e da carroça lá fora. Sai apressadamente, só a tempo de ver Êmulo se afastando da casa.

— Senhor, senhor, aqui senhor!

Atônito, Êmulo pouco se importa. Sua mente agora estava fixa em sair dali e chegar até o barco, obtido às pressas, que esperava disfarçadamente, um grupo de fugitivos.

Bastou Êmulo subir na carroça e avançar pouco mais de cem metros. Foi só o tempo de ver uma patrulha de cavalarianos que se aproximava da bela casa senhorial.

— Você é Caio Êmulo?

— Sim, sou eu.

— Quo vadis? Para onde você vai?

Suando frio, Êmulo busca uma resposta, vasculhando a mente atormentada pelos últimos acontecimentos. Então, bajulador como sempre se mostrou, foi só o que lhe ocorreu:

— Vou até Utica, oferecer ajuda ao novo governador.

O centurião o encarou, na certeza de que se dirigia a um trapaceiro.

— Vai mesmo? Desça da carroça. Em nome do governador Tito Sêxtio, você está preso por atentar contra Roma.

Ao mando do oficial, Êmulo teve sua carroça revirada. Não foi difícil encontrar os alforges cheios de dinheiro.

Caio Êmulo foi então amarrado atrás da carroça, e conduzido a pé, até a governadoria, onde um grupo de homens, suspeitos de apoiar Cornifício já se encontrava.

Laelius assiste tudo aquilo em silêncio, sem entender direito o que estava acontecendo. Porém, começou a ligar algumas coisas. Sabia que Caio Êmulo não era um aristocrata.

Na busca do enriquecimento, Êmulo desejava ter mais proximidade com as autoridades e as vantagens que isto significava. Seu senhor havia entrado em um jogo. Agora, pelo visto o jogo havia dado errado.

Dispensou os escravos de toda casa. Então, assegurou-se da ausência de todos.

Em dado momento, apanhou o último alforge com moedas de ouro e o levou consigo. Afastou-se da casa e enterrou o volume, marcando discretamente o lugar. Em seguida deixou a residência senhorial, retornando às plantações.

Acontecesse o que acontecesse dali por diante, trezentas ou quatrocentas moedas de ouro, seriam por demais bem vindas. Sem falar nos seus denários e sestércios. Muito bom para quando precisasse ter algum dinheiro trocado.

Aquele estado de ânimo não estava apenas na propriedade de Êmulo. Estendeu-se pela província, principalmente nas terras próximas a Utica e às ruínas de Cartago. Era boca a boca disseminando a caça às bruxas, bem mais que a pacificação.

Os escravos que haviam deixado a casa senhorial por ordem de Laelius, pelos caminhos espalhavam a novidade. Não tardaram a encontrar os demais que se encontravam nos campos.

Outros escravos de outras propriedades também fugiam, estabelecendo mais confusão. Diante da situação inusitada, o brado vigente, tornou-se um só:

— Vamos fugir, vamos fugir! É agora ou nunca! Os soldados se afastaram e estarão ocupados procurando romanos traidores!

As ferramentas de se trabalhar a terra foram abandonadas onde se encontravam. Os que estavam sob grilhões, tiveram os mesmos partidos a golpes de machado. Uns ganharam a estrada, correndo desembestados, entre a esperança e o medo.

Outros adentraram as matas próximas, buscando se esconder até o anoitecer. Pareciam crianças ao longe, não fosse o desespero causador daquela correria.

— Não vamos para a estrada. Entrem nas casas e procurem por comida e odres para transportar água. Venham comigo. — Era Ahmis reunindo pequeno grupo de fugitivos, enquanto procurava prepara-los para uma difícil empreitada.

— Vem Damya, é agora, vamos embora! — Ddunit chamava por Damya para que se apressassem. Precisavam ir para o mais longe possível. Enquanto gritava por Damya, correu até o galpão de serviço, recolhendo um odre com água e alguma farinha.

— Eu não vou.

— Enlouqueceu Damya? Vamos embora!

A escrava olhava para o tempo.

— Eu não vou.

Ddunit balançava a cabeça, sem compreender aquela atitude.

— Está bem, a decisão é sua. Eu preciso ir agora.

Ao se afastar, ainda se virou por um instante.

— Adeus Damya.

— Adeus Ddunit.

De cabeça baixa, Damya retornou ao galpão e apanhou um garfo para feno. Ficou nas proximidades, como que a cuidar de pequenos afazeres. Seria temerário ser encontrada sozinha e sem ter o que fazer.

Apenas fazia de conta estar trabalhando. Um escravo nunca tem mesmo para onde ir, pensava. Entretanto, no alvoroço da situação, todos acabaram partindo.

Damya havia sido capturada perto de onde vivia com sua família e vendida a mercadores de escravos ainda jovem. Ao tempo de sua aldeia, aprendera que para além das terras férteis e habitadas do litoral, indo mais para o interior, tudo o que havia era a imensidão do deserto.

De outra forma, fugir pelo litoral é igualmente perigoso, pois se está o tempo todo a descoberto. Vinha da Numídia e já sabia que, na direção de onde nasce o sol, era terra romana.

Por onde o sol se põe, era de onde Damya tinha vindo, era sua terra natal. Mas era também de onde vinham os soldados. Não poderia mais voltar. Foi pensando assim que a escrava não viu saída e desistiu de escapar.

Horas depois Laelius chega à fazenda e encontra apenas Damya, agarrada a uma ferramenta, cantarolando algo em voz baixa. Parecia alienada e desencantada da vida.

— O que fazes aqui? — Perguntou Laelius.

Damya olhou ao redor.

— Eu trabalho aqui, senhor feitor.

— Onde estão os demais?

— Foram todos embora senhor feitor.

— Para que lado?

— Eles desceram a estrada senhor feitor.

Aelius virou-se e deu alguns passos adiante.

— Está bem, tire o resto do dia para descansar. Não vão a lugar nenhum mesmo. Aliás, se há um lugar ruim de se fugir, este lugar é a província de África Velha.

Por conta de outras tentativas de fuga Aelius já entendia a dificuldade em se fugir sem nenhum tipo de apoio. Sem um barco ou cavalos, ou camelos. Pensava nisso quando um som meio oco se fez ouvir e sentir.

Quando se deu conta, uma dor aguda invadiu suas costas e parecia rasgar seus rins. Paralisado, emudecido, Aelius se abaixou lentamente até se ajoelhar. Depois, igual a um boneco de pau, caiu no chão quente daquela tarde, com o garfo de feno fincado em suas costas.

Atirado na masmorra, Caio Êmulo aguardava por seus captores. A autoridade romana, aquela que presara tanto, com a morte de Cornifício, parecia não precisar mais dele.

Enfim, foi retirado da prisão e conduzido ao novo governador. Tenso e suando frio, caminhava até o salão onde, tempos antes, pisava como convidado de Cornifício.

Tito Sextio estava confortavelmente instalado em grande poltrona em plano elevado, de onde podia ver a todos por cima. Gesticulou a seu centurião para que lesse a acusação, tendo o oficial procedido à leitura.

— Pelo poder conferido pelo senado de Roma, Tito Sextio, governador de África Velha, conclama Caio Êmulo a defender-se das seguintes acusações: oferecer dinheiro a autoridade romana, no intuito de auferir vantagens; conspirar contra Roma e contra o Senado Romano; prover recursos ao proscrito Quinto Cornifício, com o propósito de fazer oposição armada a Roma e ainda por tentar evadir-se, conduzindo recursos para organizar a resistência ao poder de Roma.

O homem enregelou. O acusavam pelo que fez, e pelo que nem sonhara algum dia fazer.

— Fale Caio Êmulo. — Ordenava o governador e fiel representante da justiça de Roma, condutor do processo sumário.

Apavorado, Êmulo inicia sua defesa.

— Eu sempre servi a Roma. Sempre tive bons propósitos. Sempre respeitei os deuses e a autoridade romana.

— Você foi denunciado como fornecedor de suprimentos às tropas do proscrito Cornifício. O que tens a dizer?

— Eu estava atuando como fornecedor do governador nomeado pelo senado em Roma. Era ele quem representava Roma.

— Você está querendo me dizer que por quase um ano, você não teve como saber que Cornifício havia traído Roma?

— Infelizmente foi assim. Eu fui enganado.

Sêxtio percebeu o torpe ardil do infeliz e sentenciou:

— Mesmo quando uma legião completa se aproximava de Utica, conduzindo os estandartes, as insígnias de Roma? Acampou junto à muralha da cidade. Você está querendo me dizer que, uma pessoa bem informada como você, não teve como saber disso?

O homem já havia entendido que estava dentro de um jogo de intrigas e interesses escusos. O que quer que dissesse, muito pouco significado poderia ter.

Êmulo ficou em silêncio, enquanto Sêxtio dava mostras de impaciência.

— Mande entrar os demais.

Ante a ordem do governador e condutor do processo, os três comerciantes, delatores de Êmulo foram trazidos à sala do julgamento.

— Pois bem, o que sabem sobre este homem, o comerciante e proprietário de terras Caio Êmulo?

Peleu, um comerciante de vinhos, passou a oferecer suas denúncias.

— Caio Êmulo sabia que Quinto Cornifício havia se recusado a transferir o governo da província para Caio Calvísio. Foi nesta ocasião que Cornifício o convenceu a apoiá-lo com suprimentos para a tropa, mas também com dinheiro. E prosseguiu.

— Quanto ao reconhecimento da legião vinda de África Nova, quem é que não sabia? Todos sabiam, pois todos falavam sobre isso o tempo todo. Havia uma legião romana estacionada próximo à cidade, aguardando a rendição de Cornifício.

Sêxtio apontou para o outro homem.

— Você, aproxime-se e fale o que sabe.

— Meu nome é Claudius. Tenho plantações nesta província. Minha propriedade é a mais distante de todas. Cheguei a pedir ajuda a Cornifício. Até aí, não há nada demais. O problema foi quando eu soube que havia um acordo entre Êmulo e Cornifício para que este sempre embarcasse sua safra primeiro. Cornifício estava sendo pago para priorizar o embarque de Êmulo.

Sêxtio, então fez um sinal.

— Já chega, já ouvi o suficiente.

— Pelas acusações aqui apresentadas, sentencio Caio Êmulo à perda da propriedade de todas as suas terras, as quais ficarão momentaneamente sob a custódia de Roma, até serem repassadas a outro cidadão romano de confiança.

O destino do proprietário de terras estava selado. Sem terras, sem dinheiro, sem respeito, sem dignidade, sem nada.

— Ponham-no para fora daqui!

— Governador, eu peço clemência governador!

— Clemência para um traidor? Onde pensa que está?

— Me deixe pelo menos uma parte!

— Tirem esse homem daqui!

— Só uma parte, só uma parte! Não pode ser tão arbitrário!

Sêxtio irritou-se com a fala do homem.

— Arbitrário, eu sou arbitrário? E desde quando o poder de Roma lhe deve satisfações! Mandem o verdugo aplicar 20 bastonadas, bem dadas neste insolente.

Êmulo foi arrastado para fora da governadoria e conduzido a um pátio, nos fundos do prédio. Posto de pé, à contagem do decurião, o verdugo desferia as 20 pauladas.

— Unus!

A paulada foi dirigida às costas. Êmulo recurvou-se de dor.

— Duo!

Segunda paulada nas costas. O homem cai no chão.

— Tres!

Quebrou-lhe um dos braços.

— Quattuor!

Quebrou-lhe uma das pernas.

— Quinque!

Êmulo já estava desacordado. Ainda faltavam mais quinze.

— Verdugo cuidado para não matar o homem! — Era o oficial intervindo para o cumprimento estrito da ordem recebida, nem mais, nem menos.

Diminuiu-se a força, contudo o castigo ao traidor foi aplicado. Até a vigésima paulada. Nem mais, nem menos.

O corpo de Êmulo foi levado e deixado na rua. À passagem de dois homens pelo local, ambos são chamados pelo decurião.

— Vocês dois, levem o homem daqui.

— Para onde?

— Para qualquer lugar, desde que ele desapareça daqui.

Carregaram o corpo arrebentado e ensanguentado de Caio Êmulo por mais um quarteirão e o deixaram estendido no chão, logo ao dobrarem a esquina.

Passou-se não mais que um dia e cavaleiros já estavam à cata de escravos foragidos perambulando pela estrada e arredores. Mais ou menos metade já havia desistido de fugir e se entregava sem maior esforço da parte de seus perseguidores.

Cavaleiros da legião de Tito Sêxtio, agora incorporados à força policial de África Velha acompanhavam de perto a perseguição dos escravos foragidos.

Apenas um procedimento de segurança, a pedido dos proprietários de terras, para que não fossem repassados para terceiros, revendidos e retirados da província.

Localizaram um grupo de escravos famintos e fujões, escondidos entre os arbustos. Os soldados saíram a galope e lhes batiam nas costas e na cabeça com a parte plana das espadas, para que saíssem e voltassem para a estrada.

Entre os fugitivos, alguém se utilizou de uma estaca e derrubou um dos cavaleiros, o que provocou a ira dos demais, sendo o fugitivo morto ali mesmo a golpes de espada.

O corpo estendido no chão era de uma mulher. Ddunit, aquela que acalentava os demais, cedeu à revolta e a dor pela imposição de uma vida miserável e cruel.

Em outro ponto, já nos confins da província, onde só se enxergava o deserto adiante, quatro escravos fugitivos acumularam o máximo de água que podiam carregar e partiram para uma jornada temerária, pelas dunas e areais adentro.

— É a nossa única esperança. Sabe bem o que está dizendo? Você tem certeza Ahmis?

— Tenho sim Basil, confie em mim. Nós temos uma boa chance de conseguir. Então, prosseguiu.

— Está enxergando aquele grupo de estrelas? Precisamos caminhar durante o dia e pelo menos parte da noite. Elas estão mostrando o caminho para um oásis a dez dias daqui. Lá poderemos obter ajuda. São povos beduínos.

A caminhada, sob o sol escaldante e o frio congelante da noite, foi terrível. Os fugitivos começaram a tombar. A sede, a fome, o cansaço, mostraram-se adversários perigosos e tenazes.

Ao final, somente uma mulher e um dos homens, mecanicamente e tropegamente, avançavam nas areias infindáveis. O homem cai, é Ahmis, sem que a mulher sequer perceba. Basil, ainda avança talvez uma centena de passos.

Já era fim de madrugada quando Basil, estendida na areia fina vislumbrava os primeiros raios de sol. Estava confusa e não conseguia pensar direito, mas pelas suas contas o dia logo anterior, tinha sido o décimo dia de caminhada.

O oásis não apareceu diante de seus olhos, e o décimo dia se encerrou. Não havia mais o que fazer, foi obrigada a aceitar o obvio. Eles haviam se perdido.

Ao avistar o horizonte, ainda teve a sensibilidade para comentar.

— Que lindo é o nascer do sol, visto aqui do deserto.

Morreu em algum lugar no deserto da Tunísia. Teriam percorrido mais de 300 km rumo ao sul, até as imediações de um lago salgado intermitente, hoje conhecido como El Jerid.  O oásis, além de um pequeno aldeamento estavam logo após a próxima duna. Ahmis estava certo e fez o melhor que pôde.

                                                                                                                 FIM

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