Por: Antonio Mata
Embrulhada em plástico e depois amarrada. A trouxa de roupas para lavar precisava ficar protegida da chuva. Principalmente se fosse no dia de entrega.
Aquela trouxa ainda iria viajar muito. De Copacabana, no Rio, até o bairro da Prata, em Nova Iguaçu. Cinco lavagens de ida e volta com patroas diferentes toda semana. Então, havia a inevitável trouxa na cabeça. Com a qual eu não tinha como ajudar. Com lata d’água, então nem pensar.
A folha de plástico foi a providência, após ter de voltar para casa carregando um monte de roupa molhada. Voltei igual pinto molhado, também. Mas, não importava muito.
Com alguns interesses próprios, aos nove anos, via como um serviço qualquer. Ela sempre fizera aquilo e vez por outra me chamava para lhe acompanhar. Era a ocasião de se ganhar sorvete, pipoca ou biscoitos. Pronto, meus interesses próprios.
Demorado, barulhento, comumente muito cheio. O ônibus, tinha aprendido assim na escola, que ela insistia em chamar de lotação. Não fazia mal nenhum. Outra tia chamava de jardineira. Fosse o nome que fosse, na minha cabeça, ônibus significava duas coisas.
Ela vivia repetindo “tem que sair cedo, tem que sair cedo”. Acho que todo mundo pensava o mesmo, porque não dava jeito. A primeira coisa era aquele amontoado de gente. A outra, era um atrativo muito próprio.
O momento de se enxergar outras coisas, para além dos limites da Prata. Muito além, a ponto de insistir para ir junto. Encolhido no canto do banco de um veículo lotado. A vida passava na janela, me enchendo a mente com um monte de coisas. A ponto de esquecer da viagem, do barulho. De fato, ela só permitia isso uma vez ou outra. Tinha que aproveitar.
Então, fazia mais de mês que ela não me chamava. Foi quando apareceu no portão. Logo que ouvi sua voz, fui até lá. Algo parecia estar errado. Pois era cedo e era dia de semana.
— Se arruma depressa e vem comigo. Avisa tua mãe.
— Ué, cadê a trouxa tia?
— Que trouxa nada, vamos fazer outra coisa hoje.
Coisa incomum, mas não discuti. Era a primeira vez que acontecia desse jeito. Tia Olívia era que nem relógio. Dava para saber o que estava fazendo. Trazendo roupa, lavando roupa, engomando e levando roupa de volta. Do tanque para o ônibus, do ônibus para o tanque. Era só o que fazia.
— Agora, é pegar logo a lotação. Se der tempo de voltar cedo, ainda posso engomar a roupa.
Engomar a roupa. Vi o quanto aquilo tinha a ver com um monte de postes que estavam colocando nas ruas. É que havia abandonado o ferro de engomar a carvão. Substituído que foi por um ferro elétrico.
No início não gostei. Tinha acabado de me deixar colocar o carvão, até encher o ferro oco. Só não deixava acender. Isso era com ela. Menos mal, pela primeira vez, teria um rádio que não parava por falta de pilhas.
Aquela viagem extra tinha a ver com aquilo tudo. E muito mais.
— A gente vai aonde tia?
Assumiu uma cara de satisfação ao responder.
— A gente vai comprar um disco.
— Um disco, que disco tia?
— O disco do Moacyr.
— Um disco do Moacyr, pra quê? Só tem toca disco na casa daquela dona que a senhora não gosta dela.
— Eu sei, deixa comigo. Sei muito bem o que estou fazendo.
Assim foi sabendo bem o que estava fazendo. Fomos ao centro de Nova Iguaçu à cata de um disco, o disco do Moacyr. Não demorou muito a encontrarmos uma loja de discos.
— Moço, tem o disco do Moacyr?
— Qual deles, senhora?
Tia Olívia deu uma travada. Parecia que o Moacyr devia ter feito mais discos e, pelo visto, ela não sabia. Até que destravou.
— É tão calma a noite. É esse.
— É tão calma a noite? Não conheço, não. Tem certeza que o nome da música é esse, ou o nome do LP? É isso mesmo, tem certeza?
— Tenho, é esse mesmo.
— Só um momento.
Não sabendo o que tia Olívia desejava, foi indagar do dono da loja. Retornou em seguida com o proprietário, que procurou ajudá-la.
— Senhora, Moacyr Franco, há muitos anos gravou “Suave é a noite”. Esse disco já não está mais disponível, pois foi lançado por volta de 1962. Hoje, só em sebos que vendam esse tipo de disco. Já se vão quase oito anos.
— Pode ser que no centro do Rio a senhora encontre alguma coisa. Procure nas lojas de discos, mas também nos sebos. — Completou assim, o funcionário da loja.
Outra vez, “tem que ser cedo”, começou a fazer muito sentido.
Lá pelo meio-dia, ou depois, já estava cansado de andar atrás do disco do Moacyr.
— Tia, dá pra parar um pouco? Tô ficando cansado.
— Tá bom, vem comigo até aquele banco.
Sentados ali, me contava da próxima etapa.
— Viu o que aquele vendedor falou? Que em Copacabana agente deve encontrar mais fácil? Achei que seria aqui, mas ele acha que é mais fácil em Copacabana.
— Vai pegar ônibus de novo tia?
— Vai, sim, mas não demora. Aqui é mais rápido.
Pouco depois embarcávamos na linha 119, Copacabana – Centro. Hoje, já sei que Copacabana fica a 25 minutos do centro do Rio. Mas no 119, só levava uma hora.
Cansado e com fome, prosseguimos na busca do disco do Moacyr.
— Moço, tem o disco do Moacyr, “É tão calma a noite”?
O vendedor se afasta e retorna com um LP nas mãos.
— É o LP Contrastes, do Moacyr Franco. A capa tá feia, mas o disco tá perfeito, sem arranhões.
— Quanto custa?
— Sessenta e cinco cruzeiros.
Já com o disco nas mãos, tia Olívia pensava se levava ou não.
— Já entendi. — O vendedor, com cara de poucos amigos, pegou o LP de volta e retornou com um compacto.
— No lado A, “Suave é a noite”, no lado B, “Hoje”. Sai por doze.
— Olha Luizinho, olha aqui pra mim.
Pude ler as letrinhas pequenas e lá estava ele. Em um compacto simples, “Suave é a noite” e mais uma música do outro lado. Havíamos encontrado o disco do Moacyr. Ela pagou e pudemos fazer todo o trajeto de volta para casa.
No retorno parou na casa de outra pessoa, não muito longe de onde morávamos. Foi onde adquiriu uma eletrola usada. É assim que chamavam o toca-discos.
Seguimos para casa, foi tomar um banho. Então acomodou-se no sofá. Mas, não sem antes por a tocar o disco do Moacyr, na canção da qual lembrava tanto. Ali ficou ouvindo demoradamente seu único compacto simples. Repetindo, repetindo...
A música fora tema do filme “Tender is the Night”, de 1962. O filme, por vez, era inspirado no livro do mesmo nome, de F. Scott Fitzgerald, de 1934.
O cantor Moacyr Franco gravou uma versão em português, naquele mesmo ano.
É tão calma a noite, a noite de nós dois...
Analfabeta, ela guardou o início da canção como sendo seu nome. No final deu certo. Nunca soube o que, ou quem lhe trazia tanta nostalgia, tantas lembranças. Também nunca perguntei. O mundo dos adultos era cheio de segredos para quem tinha nove anos. Acho que é assim até hoje.
Ela também, nunca soube de nada sobre Francis Scott Fitzgerald. Se soubesse, talvez nem gostasse. Fitzgerald era preconceituoso e racista. Também não gostava de gente pobre. Ainda que tenha sido obrigado a estagiar na pobreza por algum tempo. Talvez pouco tempo. Para ela, foi melhor assim.
É no mínimo engraçado pensar dessa forma, mas é verdade. Houve um mundo antigo do qual fiz parte. O mundo das ruas de terra batida, dos esgotos a céu aberto, das casas com restos de tábuas e telhado de zinco. Uma espécie de favela horizontal.
De quintal com ervas para todo tipo de chá e até pés de roseiras. Talvez esperassem a próxima etapa. As casas vermelhas de tijolos aparentes, até um dia, concluir. Chamavam de cidade dormitório. Ao redor do Rio de Janeiro.
O mundo sem energia elétrica. Das mulheres com trouxas na cabeça se dirigindo à lotação. Do nariz cheio de fuligem do lampião. O mais patético é admitir que existe saudade.
Não de cenários tão miseráveis. Mas, por conta daqueles que estavam lá e que na sua simplicidade nos viram crescer. Agora, já se foram todos. Gente de pouca formação, pouca leitura. Muitos analfabetos ainda.
Para além das interpretações históricas e sociológicas, lembro ainda de Fitzgerald e de sua forma de pensar, valorizando a gente de pele branca e nórdica, com sua cultura e conhecimento.
Talvez se frustrasse ao ver, atualmente, o mundo tumultuado e perigoso que os detentores de conhecimento e poder acabaram fazendo e legando o fracasso aos demais.
Lembro daqueles idos e me vem à mente, “A quem muito foi dado, muito será cobrado”. Quem é quem, afinal de contas? Assim, Fitzgerald poderia muito bem-estar sacudindo dentro da lotação e tia Olívia nem saberia. Nem Scott saberia.