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histórias, crônicas e contos

A última carga

                                                                                    

                                                                                                                                            Foto: Wikimedia Commons

Por: Antonio Mata

Com os olhos fixos à frente, somente aguardava o comando para que as diversas fileiras se precipitassem adiante na intenção de tomar o campo. O mesmo propósito de outros tempos? Espadas e lanças deixam o repouso ao comando, e assumem a espera que é de todos. Não há de demorar.

O assobio do vento só é interrompido pelo resfolegar dos animais, que pressentem a refrega. Não é sentimento de medo, é o sentimento de um animal que se prepara para o que fatalmente virá, e que poderá significar a sua própria morte. O cavalo de batalha irá fazê-lo, fora treinado assim, e século após século, milênio após milênio, muitos morreram assim.

A apreensão envolve sim aos homens, os lanceiros prontos a desferir mais uma carga contra o inimigo. Entretanto, algo está estranhamente no ar. O que existe à frente, cruzando o campo aberto é a massa compacta de infantaria a ser desbaratada.

O incômodo se dá por conta do cruzamento do campo extenso. Não existem trincheiras adiante para saltar, nenhuma indicação de que tenham sequer pensado em cavá-las.

Ainda assim, o conhecimento que se tem das posições inimigas é insuficiente. Sabem de sua bravura, mas também das limitações que lhes é própria.

Canhões não foram dispostos em suas posições estáticas. Não havia nenhuma indicação de suas presenças. Perigosos à distância, fáceis de se dominar à proximidade. O que enervava o ulano naqueles últimos segundos era um marco. Era  inusitado; diferente; perigoso. Aquilo que ainda não se sabia, porém, aquele tenente já o pressentia, aquilo que mais temia, o fim da história.

Dizem os arqueólogos e geneticistas que pesquisam a evolução do animal, que os citas, um povo da Ásia central, foram os primeiros guerreiros a montar cavalos no mundo.

Isto por volta do séc. IX a.C., ao desenvolverem animais fortes, porém dóceis, o que incentivou a aplicação em combate, ainda que a domesticação destes animais tenha ocorrido a cerca de seis mil anos.

A ideia contida na coisa era muito simples, maior velocidade que os inimigos a pé; marchas mais extensas sob o lombo dos cavalos; e a possibilidade de desferir golpes mais potentes e mortais, de cima para baixo, quando em combate.

A horda de guerreiros à galope era imponente e quase imbatível. Deu tão certo que nos milênios seguintes, a estratégia e a tática aprimoraram essa mesma visão, ao extremo.

Alexandre Magno, no séc. IV a.C foi um mestre no uso da cavalaria. As hordas de cavaleiros arqueiros mongóis sob o comando de Gengis Khan, nos séc. XI e XII, aterrorizaram a Europa, a ponto de ficarem conhecidos como “o flagelo de Deus”.

O período medieval na Europa viu a ascensão da cavalaria, que só teria o seu prestígio diminuído, com o advento das primeiras armas de fogo. Nem por isso, séculos depois, Napoleão Bonaparte recolocaria a cavalaria no seu papel de arma letal, fustigando sucessivos exércitos, na Europa do início do século XIX.

O prestígio da cavalaria francesa, os “cuirassiers” foi tão marcante, que chegaram ao século XX, participando dos estágios iniciais da Primeira Guerra Mundial. Onde finalmente, foram batidos pelas metralhadoras.

Deixaram a linha de frente, mas não a guerra, pois executavam toda sorte de serviços que exigissem força. O transportador da guerra, por excelência, tendo a França, por exemplo, mobilizado mais de 1,5 milhão de animais, e perdido 80% de todos os seus cavalos nas trincheiras. Mais de um terço destes, morreram em cargas de cavalaria. Pelo menos 380 mil animais.

Nem todos perceberam ao término da Primeira Guerra na Europa, que o papel combativo dos cavalos havia terminado. Diversos exércitos prosseguiram com seus regimentos montados, principalmente no leste europeu.

Enquanto isso, os veículos motorizados se multiplicavam, abrindo caminho para os exércitos mecanizados. Na vanguarda das mudanças, os veículos blindados haviam feito sua estreia na I Grande  Guerra, e vieram para ficar.

Em abril de 1939, o jovem Andrzej Kowalkzyc, aos 20 anos, ignorava tais histórias, pelo menos em parte. Lhe tocava ser integrante do 180 Regimento de Ulanos, a cavalaria ligeira da Polônia. Crescera entre cavalos, em uma fazenda no leste do país, onde aprendera a cuidar, montar e admirar estes belos animais. Ingressara no exército e fora declarado 20 tenente, a menos de um ano.

Entretanto, se uma parte de seus planos estavam caminhando para a conclusão, o que ainda o tocava era uma jovem que conhecera em março, isto a menos de trinta dias. Ksenia tinha sua mesma idade, olhos verdes e sardas bem salientes no rosto, o que lhe dava um certo ar de boneca de louça. Do namoro ao longo da primavera, aos planos de casamento, se possível no final de novembro, antes do inverno, seria tão somente um pulo.

Em sua unidade, prosseguia a rotina habitual do serviço militar,  com Andrzej inspecionando a tropa, os animais, estábulos e demais instalações. Conduzindo seu esquadrão nas provas de adestramento, ordem unida, manobra e ações de combate simulado.

Foi no treinamento da tropa, em uma reunião da oficialidade, que tomou conhecimento do quanto eram perigosos os veículos blindados armados com metralhadoras e canhões. De um modo bem objetivo, eram mais rápidos que os cavalos, armados com metralhadoras, e por serem blindados, os ulanos não tinham como ferir os tripulantes no interior daqueles veículos.

Na fazenda de seu pai, tinha ouvido falar ligeiramente sobre isso, porém com a ocupação da Áustria, um ano antes, e a anexação da Tchecoslováquia, em março de 1939, o receio de uma invasão chegou aos poloneses.

A cavalaria polonesa trazia os ecos da tradição. Descendentes diretos dos hussardos alados poloneses, a cavalaria pesada da Polônia, que por quase dois séculos venceu diversas batalhas contra toda sorte de invasores.

Era o predomínio da sincronia dos movimentos, executados por grandes grupos de cavaleiros, a um único comando. O impacto em velocidade era avassalador.

Com a evolução das armas de fogo, foi desativada em 1776. Desde então surgiram os ulanos poloneses (lanceiros), a cavalaria ligeira, que serviria o país até 1795, quando a Polônia foi dividida entre prussianos, russos e austríacos.

Com o Tratado de Versalhes, a partir de 1919, a Polônia voltou a se tornar um estado independente, e a cavalaria polonesa ressurgiu. Uma força que participou ativamente dos estágios iniciais da formação da segunda república, no enfrentamento da Rússia, que insistia em anexar o país recém-criado.

Quando chegou o mês de agosto de 1939, o coração da juventude polonesa batia ao compasso da tradição e da coragem, no 180 Regimento de Ulanos Poloneses. O estado nacional polonês ainda não tinha 21 anos, e os ventos da guerra sopravam mais uma vez.

Todo o mês de agosto havia sido tenso. No intuito de não provocar uma crise com o governo alemão de Adolph Hitler, o governo polonês de Ignacy Moscicki, foi orientado pelos britânicos e franceses, seus aliados, a não acionarem sua reserva militar. Acreditavam que dessa forma acalmariam os ânimos e a chance de uma nova guerra.

Todos desconheciam, entretanto, o tratado firmado entre Alemanha e a União Soviética, em secreto, onde já se previa a invasão e a divisão da Polônia, mais uma vez.

Sem aviso prévio tropas alemãs iniciaram a invasão em 01 de setembro. Com o exército polonês despreparado, e sem a mobilização de sua reserva, a Polônia se tornou um alvo fácil. Ao longo da primeira semana os corpos de exército poloneses ainda buscavam se organizar, enquanto os alemães adentravam o seu território.

No terceiro dia da invasão, o 180 Regimento de Cavalaria foi designado para deter o avanço da 20a Divisão de Infantaria alemã que já ocupava a pequena cidade de Chojnice, a cerca de 98km de Dantzig (atual Gdansk).

A missão consistia em atrasar o avanço alemão o máximo possível, para que a própria infantaria polonesa, muito pressionada pelos alemães, pudesse bater em retirada e se reorganizar.

O regimento manobrou tendo se ocultado nos bosques de Krojanty, a poucos quilômetros da cidade.

Entre o bosque e a vanguarda da divisão alemã que avançava, havia um campo aberto. A operação se definia, na expectativa de uma linha imaginária onde os alemães, não poderiam ficar distantes demais, a ponto de se facilitar, dando tempo para uma defesa mais eficaz. Também não tão próximos demais, a ponto de o inimigo identificar a presença da cavalaria. Neste momento, informação e surpresa valiam tudo.

Elevações, depressões e bosques, usualmente são utilizados para esconder a cavalaria. Isto é dado, e os alemães já o sabiam. Os poloneses manobravam às pressas. Os alemães buscavam realizar um avanço planejado e sincronizado.

O que os poloneses ignoravam, é que na blitzkrieg alemã, os blindados tinham a função de invadir o terreno, e não mais a infantaria. Este desconhecimento logo apresentaria seu preço.

Com os olhos fixos à frente, o tenente Andrzej, conduzindo o seu esquadrão, somente aguardava o comando para que todo o regimento se precipitasse adiante, na intenção de tomar o campo e deter o inimigo.

A vida era outra, os tempos eram outros. A cavalaria heroica dos ecos históricos estava prestes a abandonar os campos de batalha em definitivo. Chojnice e os bosques de Krojanty, dentro do Corredor Polonês, uma faixa de terra para que a Polônia tivesse acesso ao mar Báltico, foi apenas o local escolhido, naquele conjunto de circunstâncias, para ocorrência daquele confronto.

Ao comando de atacar, iniciava-se a primeira carga de cavalaria da Segunda Guerra Mundial. Em disparada os esquadrões buscavam alcançar a infantaria inimiga o mais rápido possível. Caso lograssem êxito, as perdas alemãs seriam expressivas, e o avanço seria detido. Foi a primeira carga da guerra. A primeira e a última de Andrzej.

Com a cavalaria em campo aberto, a todo galope, na curva de uma estrada próxima, surge o pesadelo que selaria toda a operação, e com ele as chances de deter o avanço alemão.  Traria ainda, para o 18° Regimento de Ulanos, a fama de loucos.

Não havia mais o que fazer. A silhueta de uma coluna Panzer, os blindados alemães, margeava o campo, enquadrando perigosamente o flanco polonês. A cavalaria avançou rumo à infantaria inimiga, açoitada pela metralha dos panzers. Submetida ao fogo de metralhadoras, a carga perde força, e às pressas precisam buscar refúgio nos bosques próximos, enquanto se vê caçada pelas forças alemãs.

Cavalos correm desorientados pelo campo sem os seus cavaleiros. Cavaleiros com um dos pés preso ao estribo, são arrastados sem rumo, enquanto os corpos dos ulanos mortos se espalham pelo terreno. Um terço do regimento se perdeu no ataque frustrado.

Logo após o confronto, a infantaria alemã percorre o campo na busca de sobreviventes. No amontoado de corpos sem vida conduzidos a uma vala coletiva, e enterrados como indigentes, jaz o corpo inerte do jovem Andrzej.

Os russos invadiriam a Polônia no dia 17 de setembro. As tropas polonesas remanescentes, se renderiam no mês seguinte. Todos os seus oficiais seriam conduzidos às imediações da localidade de Katin, onde acabariam mortos. O assassinato de Katin, nunca seria reconhecido pela URSS.

A jovem Ksenia, sobreviveria aos cinco anos posteriores de guerra, destruição e fome na Polônia, e só em 1946, saberia da morte de Andrzej. A Polônia somente encontraria, mais uma vez os caminhos da liberdade, em 17 de setembro de 1993, quando o último dos 56 mil soldados russos, deixou o seu território, com a extinção da URSS, quase dois anos antes. As terras invadidas e anexadas ao território russo em setembro de 1939, nunca mais foram devolvidas à Polônia.

Logo após a guerra, Ksenia viria a se casar e teve três filhos. Ao seu primogênito, chamou Andrzej. Em 2008, em um hospital de Varsóvia, cercada pelo carinho dos filhos e netos, fechava os olhos pela última vez. Estava com um semblante tranquilo.

Nas mãos trazia um antigo crucifixo, sapatinhos de pano de seus três bebês, que fizera questão de guardar, e a fotografia de um jovem e sorridente ulano da cavalaria, que conhecera em sua juventude, e por quem se apaixonara.

Alguém se aproxima, e gentilmente a chama pelo nome.

— Ksenia, Ksenia, sou eu.

Abre os olhos e vê diante dela o jovem sorridente, tal e qual em outros tempos.

— Estava lhe esperando, vem comigo.

                                           FIM

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