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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A armadilha

            

                           Foto: Wikimedia Commons 

Por: Antonio Mata 

Foi nas conversas entre goles de cachaça, que o assunto rendeu e chamou sua atenção. A visita despretensiosa a alguns parentes em Cuiabá, foi o que oportunizou aquela conversa, aparentemente jogada fora. Afinal levaria novidades na volta para casa.

Se nas imediações alguém já conhecia, Leôncio desconhecia. O que importava mesmo, é que em São Miguel, pequena localidade às margens do rio Purus, ainda não tinha visto.

O que tinha aprendido com os parentes em Cuiabá, acabaria com um duplo significado em sua vida. Desde os tempos de garoto, na companhia de seu pai, que apreciava caçar. Tornou-se hábil na caça de animais de maior porte. 

Estava com ideias de obter um volume suficiente para comercializar, ou senão, trocar carne de caça por outros artigos de seu interesse. Julgava atraente a ideia de poder obter um certo excedente de carne. Então, descobrira uma forma eficiente de se ampliar a obtenção de caça, e assim pôr em prática o seu intento. Isto com mais fartura e sem ter que ficar à espreita do animal.

A ideia, aparentemente simples, exigia algum material, com os quais, aprendera a trabalhar a partir de desenhos toscos que fizera na ocasião. Disporia algumas armadilhas acionadas pelo movimento do próprio animal. Assim ganharia tempo, enquanto aumentava a chance de conseguir caça. 

Outra coisa que apreciou bastante, é que um conjunto de trabucos saía bem mais barato para se preparar que a compra de uma única espingarda. Mesmo daquelas usadas e de cano gasto.

Pacientemente, partiu para a confecção dos trabucos. Cada peça consistia em uma haste metálica, com uma das extremidades em ponta, para a fixação no chão; um pedaço de tubo metálico de 14 cm; um cartucho para espingarda, calibre 12. Por vez, uma ratoeira de uso doméstico, fixada por detrás do tubo, ofereceria a tensão necessária para disparar o cartucho de munição. O arame tensionado da ratoeira, ao ser tocado pela presa, provocaria o disparo, liquidando o animal.

Preparou e montou quatro armadilhas. Entendia ser mais que suficiente para a sua primeira surtida. Estava entusiasmado e ávido por colocar logo em prática o que havia aprendido. Adentrou a mata, nas proximidades de conhecido igarapé, onde os animais costumeiramente surgiam para se refrescar. 

Espalhou e armou os dispositivos em pontos específicos na mata. Nas proximidades das trilhas de pacas e veados mateiros. Cada área recebia sua armadilha em altura específica, de acordo com o tamanho da caça almejada. Porém a carga no cartucho era a mesma. Agora bastava aguardar no abrigo improvisado.

Pensando consigo mesmo, imaginava outras possibilidades, de modo a se ampliar o uso daqueles trabucos, segundo ele ampliando sua eficiência e possibilidades.

“Ora, se tem caça, então tem onça. Se abato um veado, logo pode surgir uma onça querendo pegar a caça fácil. O que fazer?”

“O que se pode fazer é pregar uma peça nela, na onça. Coloco mais um trabuco, um pouco mais alto, próximo do mais baixo, mais baixo. Um acerta o veado. Quando a onça vier buscar o veado, o outro dispara na onça. São dois bichos pegos no mesmo lugar. Isso tem tudo para dar certo. “Tô até vendo a cara da Maria, quando eu chegar carregando o veado e a onça.”

Maria, sua mulher nunca tinha visto aqueles dispositivos que Leôncio aprendera a fazer. Ainda que o marido insistisse nas qualidades dos trabucos que fizera, Maria não disfarçava uma certa insegurança, por conta daquelas coisas fincadas no chão e disparando sem ninguém por perto.

— E se esse negócio acertar as penas das pessoas Leôncio?

— No meio do mato Maria? Vai acertar as pernas de quem?

— Eu sei lá. De alguém que tenha ido lá pra aquele lado.

— E quem é que vai lá pra aquele lado, no meio do mato Maria?

— Também não sei não. Eu só sei que daqui não vai dar pra se ouvir nem o tiro desse negócio.

— Sossegue Maria, isso foi feito pra matar bicho. Não é pra matar gente. Vê se não abusa da imaginação.

Maria deixou o assunto de lado e não voltou mais a falar sobre os trabucos. Leôncio devia saber o que estava fazendo.

Seguiu para a mata no dia seguinte, logo após a conversa com sua mulher. Sem dúvida que estava mais interessado em impressioná-la com a empreitada, quando de seu retorno. Achava graça ao pensar que a história de pegar o veado e a onça juntos, no mesmo lugar, era só um exagero. Uma conversa de caçador para se contar depois, entre goles de aguardente à beira do fogo.

Aguardava na tapera improvisada, quando sobreveio o primeiro estampido. Fez menção de sair e se dirigir na direção do disparo.

“Espera aí, precisa mesmo? O barulho vai afugentar até as almas do mato. Espera aí mesmo, ninguém vai mexer na caça.”

Aquela questão trazia um fato novo que agora o incomodava. A caça é sempre retirada logo. Por que razão deveria esperar? Não, aí é que a onça haveria de aparecer e levar a caça, tirando a carne de sua própria boca.

“De jeito nenhum, vou lá buscar o bicho agora mesmo”. Pensava Leôncio.

Dirigiu-se ao local do estampido. O que encontrou não era nenhum veado mateiro. Contudo uma paca de tamanho avantajado atestava o sucesso do primeiro trabuco, no seu primeiro disparo. Em tão pouco tempo que o surpreendeu. Satisfeito, recolheu o animal, armou a armadilha novamente, recarregou e colocou nova isca.

Poucas horas depois, novo disparo, em outro ponto selecionado na floresta. O sistema funcionava, e muito. Leôncio era só contentamento. Dessa vez, o seu veado campeiro deu o ar da graça e o tiro foi certeiro, mesmo sem ter um atirador. Já começava a pensar em conseguir um saco de farinha e pagar com a caça. Seria uma troca justa. Tornou a rearmar tudo e deixou o local.

De volta à tapera se viu com os troféus da caçada. A paca e o veado lhe pareceram suficientes para aquela surtida. Deixaria as armadilhas ativadas, entretanto, voltaria para casa para dar provas de seu sucesso à Maria. Arrastaria os bichos até a canoa. Já era chegava por hora.

Completou o carregamento da canoa, quando subitamente sobreveio o terceiro estampido. O som vinha do mesmo lado onde havia atingido o veado campeiro.

“Que diabo de bicho mais burro. Foi só há uma hora que o primeiro foi pego. Como é que o outro bicho idiota fez para ir roçar no trabuco de novo. Assim é abusar da sorte”.

Prendeu a canoa com segurança e voltou rápido ao ponto onde se encontrava a armadilha, pois não era muito longe dali. Ao chegar no local, viu exatamente o que havia imaginado. Outro veado idiota estendido na frente do trabuco. Contente, empurrou o animal para o lado e tornou a recarregar a armadilha.

Grande dia aquele, dia em que tudo estava dando certo. A caça seria suficiente, não apenas para o saco de farinha, mas para umas duas garrafas de cachaça também. Mais que isso, fazia tempos que queria comer macarrão, daqueles com bastante molho e ovos.

Fez um movimento comum, de erguer o animal e colocá-lo sobre as costas para o transporte. Ao se deslocar suportando o peso do animal, dá dois passos meio desequilibrados, não adiante, mas na direção da linha de fogo do trabuco. Foi o suficiente. De forma sorrateira, aconteceu o impensável, naquele dia que era só de sucessos. Escorregou e tombou o corpo, sob o peso do veado mateiro. Tentando aliviar a queda ergueu o braço direito para a frente e para a direita, enquanto seu corpo caía.

Isto não seria nada. É o tipo da coisa que ocorre o tempo todo. Um acidente, é só isso. Bastava levantar-se, praguejar um bocado, recolocar a carcaça do animal nas costas mais uma vez, e retomar o rumo da canoa, ponto, acabou.

Não quando se está na frente de uma armadilha viva.

A mão direita estendida, com a qual buscava reduzir o impacto da queda, não tocou na armadilha, nem em nenhum de seus mecanismos.

Falta de sorte, excesso de azar? Nunca irá saber. Uma bolota de argila de umas 20 gramas, o peso de um bombom de chocolate, daqueles que Leôncio nunca comeu, de alguma forma sofreu um efeito de gangorra. A bolota de terra saltou. Na volta caiu à direita e mais abaixo, tocando no arame da ratoeira.

O disparo do cartucho de calibre 12, a apenas 1,5 metro de distância, fuzilou o veado pela segunda vez. Leôncio, deitado de bruços na frente do dispositivo, e em posição mais baixa, ainda recebeu três balins das costas para a cintura. 

Leôncio ainda não sabia. Se soubesse, só serviria para aumentar a sua agonia. Um dos balins alojou-se na cartilagem de sua coluna torácica. Entre a sexta e a sétima vértebra. Uma pequena esfera de chumbo de 2,5 mm. Os outros dois apenas perfuraram a pele. No entanto, havia agora três furos para sangramento.

Existe o dia da caça e o dia do caçador. Este havia se transformado no dia do seu desespero. Leôncio teria que lutar pela própria vida como jamais fizera antes.

Prosseguia deitado no chão com o veado tombado pela metade sobre suas costas. Leôncio fica em silêncio, como quem pensa, ou pelo menos busca se localizar entre a queda e o estampido repentino. Sentia uma dor fina, não muito forte. Ainda que soubesse que alguma coisa havia rasgado suas costas. Em todo caso, também não se mexia. Naquele momento, só pensava.

Precisava retirar o animal de cima de seu corpo. Puxou-o com o braço esquerdo. Foi quando a dor sob a forma de choque se manifestou. Deu um grito de dor, porém retirou o animal de cima de seu corpo. Permaneceu estático ao lado de seu trabuco.

Muito o que pensar, muito o que fazer. Permanecer no local seria suicídio. Sem socorro, morreria com aquele ferimento exposto. Se antes não fosse atacado por animais maiores atraídos pelo cheiro de sangue. Onde tem veado, tem onça. Ficaria apenas o tempo para descansar um pouco. Depois buscaria fazer pequenos movimentos para sentir a situação de seu corpo e a chance de se arrastar.

Arrastar-se até a canoa. São apenas 400 metros até o igarapé. Outro problema que podia esperar, mas não podia ser esquecido. Deixara uma paca dentro da canoa no intuito de voltar logo. O estampido no acionamento da armadilha ajudaria a manter um eventual intruso afastado da canoa e do animal. Com o acidente, este raciocínio se perdeu. A luta pela vida era justamente para chegar na canoa. Era este o seu único caminho.

Deve ter ficado no local uns dez minutos, não mais que isso. Notou que movimentar o braço direito aumentava a dor. Teria que se arrastar com o apoio e a força do braço esquerdo. Lentamente, entre sangue, suor e dor inicia sua via crúcis.

O choque intenso por entre as vértebras se dá sem avisar. Não havia um movimento em particular. Bastava um trejeito de corpo. Era o suficiente para deflagrar outro choque. Caminhar 400 metros na mata, junto às trilhas, caminhos feitos pelos próprios animais, não é nada. Ao precisar se arrastar, e lentamente, avançava de 25 a 30 cm, por vez e pesarosamente. Seriam, no mínimo, mais de 1300 movimentos.

Esvaziou a mente de toda sorte de pensamentos negativos e focalizou na missão que poderia salvar sua vida. Por entre raízes, que agora mais pareciam grossos troncos de árvore, e do solo cheio de serrapilheira, avançava com grande sofrimento.

Chegou ao número de sete braçadas por minuto, em intervalos de dez minutos. Algo como 75 metros por hora, se não interrompesse os intervalos. Depois poderia descansar meia hora, assim pensava. No mais, era ter fé de que não morreria antes de chegar no rio.

A agonia prosseguiu, mais ou menos dentro do que havia imaginado. Não tinha afinidade com números. Só queria uma referência qualquer para ter uma ideia do deslocamento realizado. Terminou a primeira série de movimentos, descansou e partiu para a segunda. Ao término teria percorrido uns 150 metros e descansado meia hora. Portanto duas horas e meia, para fazer sua estimativa de 150 metros.

Leôncio parecia carregar chumbo derretido sobre as costas. Já não importava mais, a meta era chegar na canoa com vida. Prossegue para nova série. Completou o intento, no entanto, acreditava ter levado três horas para fazê-lo. Estava completamente exausto.

Adormece sobre o solo. Semi acordado, ouve algo ao longe. O som é conhecido, familiar e agradável. O barulho das águas no igarapé chega até Leôncio. Pode muito bem, estar a cem metros do rio, ou quem sabe menos ainda. O que importa é que está se aproximando. 

Percebe que precisa cumprir a jornada antes que escureça. Não se trata de apenas chegar na canoa e pular dentro dela. Precisa entrar com calma. O que irá exigir um esforço hercúleo. O que provocará uma dor inimaginável. Depois, tem de sair dali e ganhar o canal principal. Não acabou não. Seria um abençoado se encontrasse outra canoa no caminho.

Tudo muito difícil. Tudo muito improvável. Retira todos estes pensamentos de sua mente e se concentra em chegar. Se não chegar na canoa, não passarão de especulações inúteis.

Já quase não sente o braço esquerdo. Avançou o que imaginava ter sido metade da distância até o rio. Para novamente. Dor, cansaço, falta de ar, tudo se soma para avisá-lo que a vida poderá esvair-se de seu corpo a qualquer momento.

Depois de um tempo que não sabe mais precisar, torna a avançar. O movimento agora é por demais custoso, cedendo ao cansaço e à dor, cada vez mais. Olha para adiante.

O vislumbre é algo que o enche de esperança. O reflexo do sol na água já está suficientemente visível. O marulhar da água a correr. Tudo lhe mostra que está próximo. Estimou entre vinte e vinte cinco metros de distância, talvez. Reinicia a marcha terrível. Mais uns dez ou doze metros. Consegue ver a ponta da canoa por entre a folhagem próxima. Precisa parar um pouco, até retomar novamente. Só mais alguns minutos, pensa.

Torna a avançar. Já vislumbra a reta final para se evadir dali. Não bastasse isso, escuta algo familiar. Fácil de se reconhecer em meio aos sons da floresta. Trata-se de um remo. Golpeando de forma cadenciada as águas do rio.

A poucos metros pode ver o homem sobre a canoa. Faz menção de gritar, mas o grito sai abafado, quase sem vida. Busca levantar o braço direito, já semimorto. Ergue o braço por duas vezes.

A canoa para, e o homem se dirige até Leôncio. Vê o ferimento em suas costas e busca arrastá-lo até a beira do rio, a uns três ou quatro metros. Leôncio está pálido e abalado. Contudo sente ser puxado, a ponto de avistar suas pernas e seus pés passarem próximos de seu rosto, com os olhos entreabertos.

Levanta ligeiramente a cabeça e enxerga o homem procurando colocar seu corpo sobre a canoa. Empurra-o para dentro, toma de seu remo e parte. Leôncio baixa a cabeça sobre a terra e adormece. Por entre as matas, no cheiro da terra que lhe era tão familiar, sentia-se socorrido e salvo. Descansando próximo ao rio, pouco se importou com a canoa que seguia ao longe conduzindo seu corpo. Que importa, sentia-se em paz.

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