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histórias, crônicas e contos

A boa vizinhança

                                                               

                                                                                                                                   Foto: Antranias - Pixabay

Por: Antonio Mata

Pensava já ter cuidado de tudo o que fosse possível. Tudo feito, meio que na correria. Porém, havia razão de ser para todo aquele frenesi incansável. Hugo pela noite, até o amanhecer.

— Vê se você se apressa e faz isso logo. É sempre assim, toda vez você fica por último. Só uma paulada resolve o seu problema.

— Cedo demais, violência demais. Isso faz mal sabia? No entanto, toda vez você vê que fica tudo pronto. Tem alguém reclamando, tem alguém criando caso? Não, só você.

Ficou olhando para aquela cara cínica, sem dizer palavra.

— Estou zelando pela sua integridade física, seu rato-de-esgoto.

— Ah, sem ofensa, tá legal. Não se preocupe, eu estou íntegro, sadio e limpo. Sujeira é aquilo que você vê depois.

Deu as costas ao rato-de-esgoto e foi embora sozinha. Berenice o acompanhava já havia um bom tempo. Na realidade, não acreditava que o rato do seu irmão fosse capaz de cuidar de si. Ainda que fosse bem crescido. Adulto, na verdade.

Hugo von Hamelin und Weser, em homenagem a outros idos, este era o nome da figuraça. Não era preguiçoso, só meio desajeitado e a disciplina passou longe. Daí as reclamações de Berenice, pois sabia que um dia, tudo poderia dar errado.

Os raios de sol por entre as nuvens avisavam que aquele turno estava no fim. Ponto para Berenice que já tinha ido embora. Mas, não para Hugo. Apreciava o frescor da manhã, o dia clareando, tanto quanto o friozinho na barriga.

Bastou um ligeiro clarear para saber que não estava mais sozinho. Tinha uns caras acordando àquela hora. Só esperava que não representassem maior perigo. Afinal, não costumava se preocupar com estes aí. Muito menos o monte de pequeninos saltitantes que apareciam logo a seguir.

Não tanto pela presença deles, pois sequer representavam grande coisa, não faziam propriamente concorrência. Hugo não era nenhum tolo perdido nas ruas. Perambulava pela noite empurrado pela necessidade.

As preocupações começavam por parte daqueles que poderiam vir atrás dos primeiros.

Isto, sim, se mostrava bem mais perigoso. Bastava amanhecer o dia e uns e outros possuíam o hábito de colocar seus animais para a rua. Estes, sim, aumentavam o risco de circular nas ruas. A ponto de expulsar todo mundo.

Já não havia segurança para pombos, demais passarinhos, todos catadores de grãos e sementes no chão. Muito menos para Hugo ou sua irmã Berenice. Ela que passava a ter razão quando o chamava de rato-de-esgoto. Aliás, os dois, além de milhares de outros escondidos nos subterrâneos da cidade.

Já Cara Preta e seu bando de urubus, nem pensar. Não permitiam que se aproximassem das ruas. De tanto serem recebidos com tiros, pedras e paus, acabaram cedendo. Se reuniam nos descampados, onde houvesse qualquer tipo de sobra.

Já os pombos, lhes restava o mesmo papel dos demais passarinhos habitantes da cidade. Devorar tonelada após tonelada de insetos, e fazer isso rápido, tão logo acordassem. Por quê? Porque a noite é dos morcegos. Faziam o mesmo que os pássaros, só que dessa vez era no escuro. Parece que não gostam de aparecer. Ou será que não gostam de vê-los? Cidade estranha de relações cada vez mais estranhas.

Haja insetos e haja limpeza. É complexo o equilíbrio destas relações. Em certos momentos, parece que este equilíbrio vai se romper e alcançar a cidade toda, tal e qual uma bomba. Contudo, que não se esqueça que nem os pássaros e nem os ratos são responsáveis por amontoados de lixo pelos cantos, ao ar livre.

De qualquer modo, a vida de Hugo e Berenice não parecia ser das mais fáceis. Não com os bandos de jacarés que cresciam nas galerias, esgotos e igarapés que cortavam a cidade.

— Não perca seu tempo querendo morrer primeiro. Nosso lugar é aqui. Longe do interior dos esgotos, porém próximos da saída para a rua. É o melhor lugar. — Dizia Berenice.

— Para sair correndo dos jacarés que venham do esgoto ou entrar correndo fugindo dos gatos, dos cães e dos homens. Você já me falou isso. Estamos sempre fugindo de alguém.

Em que pese a insatisfação, Hugo Weser expressava sim uma grande verdade. Eram os menores dentre os habitantes terrestres. Fora os insetos, claro. Todo cuidado era pouco. Toda atenção necessária. Ainda assim, não eram os únicos.

Os passarinhos não viviam na cidade só para encantar os homens com o seu gorjeio. Afinal, é mais seguro nas árvores dos quintais da cidade, do que na floresta, onde as serpentes gostavam de procurá-los durante a noite. É assim, a cidade tem suas vantagens e cada um se adapta como pode.

E assim caminha toda a cidade. Uma das razões que levou Hugo a optar pela vida urbana foi a grande oferta diária de uma coisa muito apreciada por ele, é claro, o lixo. Hugo não conhecia o entorno da cidade, assim como Berenice e todos os seus amigos também não. Eram todos urbanoides de nascimento.

Não demorou muito para que o cenário desenhado por Hugo ganhasse força e ares de realidade. Teria de mostrar se era rápido o suficiente e fugir das armadilhas do dia.

Manhã tranquila como de costume. Sai até a abertura da boca de lobo e arisco, presta muita atenção nos movimentos, nas vibrações e nos cheiros.

Tudo em ordem, corre, atravessa a rua e se aproxima de uma cesta de lixo, daquelas elevadas. Escala rápido a estaca metálica com facilidade, chegando no alto. Rapidamente fuça tudo, até achar o que procurava. Sobras de pão de forma. Reúne um bocado e parte para fazer o retorno.

Enquanto isso, o vizinho da frente havia deixado aberto o portão para que Nestor, o cachorro da casa, pudesse sair para fazer suas necessidades na rua, sem ter que dar trabalho a seu dono. Quincas, que cresceu junto com Nestor, aproveita para sair junto.

— Nestor, hoje estou atrás de carne. Lá de cima do muro dá para ver um ratinho abusado que circula por aqui todas as manhãs.

— Tá bom Quincas, se ele aparecer você me avisa.

Nestor não tinha o menor interesse em correr atrás de ratos, todavia, o gato era quase que um irmão. Por pura camaradagem, resolveu acompanhar o Quincas nessa caça.

Bastou Hugo descer da cesta e tentar atravessar a rua, que o primeiro susto apareceu. Quincas, o gato da casa da frente já estava na rua, e dessa vez, não vinha sozinho. Um vira-lata barulhento corria atrás como se fosse uma sombra.

O rato dispara na direção da caixa de escoamento de águas mais próxima à esquina, e se atira no ar, de modo a entrar na caixa de concreto, o mais rápido possível.

Com o salto, cai dentro d’água e corre desesperadamente para o local de onde veio, o interior de um dos tubos. Quando salta pela segunda vez, já dentro do tubo, de repente enxerga algo que nunca tinha visto antes. Nunca, pelo menos ali.

A maldição da escuridão, o castigo dos ratos, serpentes e de quem mais se atrever a ficar circulando no interior das galerias sujas e úmidas dos esgotos da cidade.

Um jacaretinga, por ser menor que os outros jacarés, conseguiu acompanhar Hugo, e agora estava reivindicando a carne de rato daquela manhã. Saltou para trás e meio torto, mudou sua trajetória caindo a um ou dois centímetros da boca aberta do predador, prejudicado pelas paredes do tubo, o que dificultava sua movimentação. Ponto para o rato.

Corre para a saída da caixa de escoamento de águas. A essa altura o café será sem pão, pois já havia largado tudo belo caminho. Diante de Hugo, esfogueado e com o coração na mão, vê a saída bloqueada por Nestor e Quincas. Não tinha jeito, nem do que reclamar, um dia acabaria acontecendo.

Olha ligeiramente para trás e vê o jacaré se preparando para saltar, já com parte do corpo fora do tubo. Instintivamente, aposta na força das suas pernas traseiras, pulando mais uma vez e jogando o corpo para a direita.

O cachorro e o gato, ato contínuo, avançam por sobre a caixa com tampa de ferro fundido, enquanto o jacaré investe, buscando abocanhar não esses dois, pois não os esperava, mas o ratinho que ardilosamente consegue escapar.

Enquanto isso, o jacaré era detido pelas grades da tampa de ferro. Já o cachorro e o gato, pegos e surpresa, tomam um baita de um susto, com aquela boca grande e cheia de dentes logo abaixo de seus pés.

Nunca tinham visto aquele tipo de bicho, muito menos poderiam imaginar que o tinhoso habitasse os esgotos da cidade. Jacaré preso, cachorro e gato em estado de choque. Hugo sumiu dali.

Vida na cidade, dramas urbanos que ocorrem todos os dias, sem que ninguém, logo acima, se dê conta do que se passa logo abaixo. Dramas silenciosos que contam a história da luta pela vida. Só os vemos passar, vez por outra.

Já mais sossegado, ainda que branco de susto, Hugo retorna para casa por outro caminho. Encontra Berenice.

— Você não faz ideia do que foi que aconteceu hoje. Se eu te contar, você não vai acreditar.

— Acha mesmo? O gato e o cachorro do vizinho te puseram para correr, ao fugir para o esgoto, deu de cara com um jacaré e pensou que iria morrer hoje mesmo.

Hugo ficou meio sem graça.

— Como você sabe? Está debochando de mim.

— Olha, saber eu não sei de nada. Cadê o pão, você trouxe?

— Perdi o pão enquanto fugia do jacaré.

Berenice se deu conta de que seu irmão não estava branco feito vela à toa. Algo realmente havia acontecido. Ficou pensando, enquanto olhava para ele.

— Ah, deixa isso pra lá. Amanhã você tenta de novo. Vê se não vira comida de jacaré, nem de gato, nem de cachorro.

É o andar de baixo, o lar doce lar de um monte de bichos. Atenção, astúcia, força e velocidade, às vezes se fazem necessários. Anoitece, tanto em cima como embaixo. Hugo e Berenice, saem mais uma vez, para aproveitar a ausência de cães, gatos e de homens. Nada como um dia após o outro.

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