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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A casa no fim da rua

                                                       

                                                                                                                       Imagem: Waldryano por Pixabay

Por: Antonio Mata

Há tempos que o dinheiro pequeno de ambulantes era aplicado na pequena construção. Chamava a atenção pelo colorido do jardim, sempre vistoso e bem cuidado. Por ser uma rua sem saída, era avistado por poucos. Talvez, e também por isso, fosse tão lembrado e gostassem tanto dela.

Pequena calçada logo após o portão conduzia até a varanda, igualmente pequena. Aliás a característica comum dos cômodos da modesta residência. Nada propriamente a salientar que saltasse aos olhos, não fosse pelo jardim. Contudo, a quietude reinante, aliada à singeleza do lugar, falavam daqueles que lá viviam e que com a mesma simplicidade cuidavam de seus dias.

As sucessivas puxadas lembravam que a família cresceu aos poucos e que aos poucos, tudo foi se adaptando, ate perder as linhas originais daqueles primeiros dois cômodos. Simplicidade, porém, apoiada na criatividade popular. Aquela coisa de se enxergar aplicações, que aparentemente não estão lá, porque ninguém vê, a não ser aqueles que realmente precisam dela.

Isto resumia a empreitada do velho Romualdo e de Estela. Os filhos, todos adultos, já haviam partido e cuidavam de suas vidas. Para Romualdo ficou ainda a necessidade de, aqui e ali, cuidar de uma ou outra coisa. Aquelas que suas costas ainda permitiam, enquanto Estela se dedicava ao jardim, que nunca foi esquecido, e dos costumeiros afazeres que sempre prenderam sua atenção.

Depois das quatro da tarde, sentavam-se junto ao jardim. Era quando a história, aquela que cada um escreveu aflorava entre conversas, observações e lembranças.

— E aí, como foi hoje, deu tudo certo?

— Não sei Estela, não sei não. Apareceu uma história de que vão ter que demitir. Só vão manter uma parte do pessoal. Quem trabalha na linha de montagem, já é o primeiro a ir embora. Se tiver que recompor a linha depois, é o que mais tem para chamar.

— Tenha paciência e tenha fé. Depois tudo se ajeita.

— Tudo se ajeita, tem certeza? Vai ser a terceira demissão em dois anos, ou menos. Como é que vou viver desse jeito?

— Olha, eu costuro. Acha que é todo dia que tem pedido de costura? Mas, eu continuo costurando.

— Gostaria de ter essa tua tranquilidade. Às vezes, isso me faz muita falta. Fazer o que tem de ser feito, sem ter que ficar chacoalhando dentro de ônibus.

— Não ligue, não. Um dia desses, quando menos se espera, você descobre o que você quer de verdade.

 O que antes era só expectativa, acabou acontecendo e quase metade dos trabalhadores foram demitidos.

Foi ser ajudante de entregas, distribuindo garrafões de água mineral pela cidade. Trabalho tão simples quanto desgastante. Até certo ponto perigoso, no tempo dos garrafões de vidro. As histórias de quem perdeu um olho ou um dedo, eram comuns.

Como uma coisa puxa outra, começou a prestar atenção naquelas pessoas chamadas de trabalhadores informais. Nos momentos de folga, passou a puxar conversa com estes informais.

Foi assim que decidiu abandonar de vez seu contrato de trabalho, em favor daquele tipo de atividade. Quando você ganha, o dinheiro é seu. Quando não, a dureza é sua também. Romualdo tornou-se um vendedor ambulante. Talvez, o ofício mais popular dentre os informais.

Teve seus dissabores, e aquelas ocasiões de voltar para casa sem um tostão. Até aprender a observar com mais clareza o que as pessoas queriam e em quais épocas. Adotara uma espécie de mala, com pés retráteis, onde ainda acoplava um guarda-sol.

Foi só uma fase. Até notar que sempre tinha alguém querendo comer alguma coisa. Abandonou as bugigangas e investiu em uma bicicleta com dois bagageiros. Passou a vender salgados e refrescos onde as pessoas se concentravam.

Quando surgiu a possibilidade, trocou a bicicleta por uma motocicleta, na qual fez as adaptações necessárias. Aquela Honda 100cc circularia por décadas, já que não precisava ser veloz nem de carregar muito peso.

Pode-se dizer que, em vistas das circunstâncias, Romualdo era criativo, dedicado e empreendedor. Criara um pequeno negócio de muito baixo custo, de horário flexível e que o permitia chegar cedo em casa.

As casas próximas do fim de uma rua sem saída, são aquelas mais bafejadas pelo sossego, só interrompido pelo barulho das crianças brincando. Mesmo este, por simpático que fosse, sempre teve o tempo certo de acabar. Entretanto, nem sempre era assim.

Tempo das brincadeiras de manja, de correr, de se esconder e de se achar. Mesmo que fosse pelo portão afora.

Laurinha, a primeira filha do casal, corria para se esconder. A árvore, do outro lado da rua, um pouco à esquerda de quem sai era um ponto muito comum e fácil de se achar. Nem por isso perdia o seu charme na correria infantil.

Rompeu pelo portão que já se encontrava aberto. Já que poucas vezes ficava fechado. Mera delimitação do terreno, em meio a mureta de um metro de altura. Saiu do outro lado cruzando a calçada de apenas um metro.

Um motoqueiro perdido, achou Laurinha na saída de sua casa. Ainda que não estivesse correndo propriamente e não tivesse a chance de frear, o peso e o impacto foram suficientes para projetar a menina mais de dois metros à frente.

— Dona Estela, dona Estela, a moto bateu a Laurinha! — O gritinho agudo de criança ecoava pela rua sem saída.

Quase certo que um monte de gente mantinha suas janelas abertas. Apareceu do nada, um monte de gente. Até quem não morava no fundo da rua e nem na rua, apareceu. Gente sem ter o que fazer, paraquedistas de ocasião e até os vizinhos.

Momento difícil, socialmente dramático. Não havia definição de quem estivesse mais desesperado. O motoqueiro com os olhos arregalados, vendo o montão de gente em volta da moto e principalmente dele mesmo, ou a Estela procurando socorrer sua filha, que ainda estava caída no chão, porém com os olhos bem abertos, assustada com os gritos de sua mãe.

Alguém chegou e dava instruções:

— Laurinha não se mexe, não se mexe! Agora olha para o meu dedo. — Laurinha olhou para o dedo indicado.

— Agora olha para o outro dedo. — Laurinha virou ligeiramente a cabeça e olhou para o dedo do lado esquerdo.

— Agora levanta esse braço. — A menina levantou o braço.

— Agora o outro. — Levantou o outro braço.

— Agora mexe o pé e levanta essa perna. — A menina atendeu ao pedido.

— Agora faz a mesma coisa no outro Laurinha. — Laurinha atendeu.

— Você consegue levantar Laurinha?

— Consigo sim tia Luiza. – Em um pulo Laurinha se pôs de pé.

Havia ralado o antebraço direito quando bateu no asfalto, mas isso foi tudo. A menina, felizmente estava bem.

— Pelo sim e pelo não é melhor passar no hospital. — Estela concordou e foram ao hospital mais próximo, com o motoqueiro acompanhando os demais e já mais aliviado.

Atendida a menina e constatado que estava tudo bem, o motoqueiro pôde seguir seu caminho e Estela retornou para casa com Laurinha e Luiza sua vizinha.

Dos males, o menor. O portão passou a ficar trancado e para sair, só com o conhecimento de Estela. As coisas foram se ajeitando.

Os casos dos tempos de escola, vez por outra visitavam as mentes do casal, balançando no fim de tarde. Nada de espetacular, mas que nem por isso mereceram o esquecimento.

Em certa ocasião, Arnaldo chegou em casa com um bilhete na mão. Entregou à sua mãe e foi logo tirar a farda, sem falar muito ou justificar o que quer que fosse.

Estela, com o bilhete na mão, pôs as mãos na cintura e depois leu o pequeno bilhete. A professora de Arnaldo pedia sua presença na escola.

— Arnaldo o que foi que você fez? Fale agora e apanhe de uma vez, para não ter que apanhar depois.

— Então é melhor a senhora falar com a professora e eu apanho depois. — Intimamente, Arnaldo já havia entendido que em certas situações críticas, o fator tempo nunca pode ser desmerecido. Assim, nada como dispor de um segundo round.

No dia seguinte, Estela procurou pela professora na escola.

— Oi Estela, como vai? Senta aqui para lhe mostrar uma coisa.

A coisa que a professora queria mostrar, era o boletim do Arnaldo. Ele mesmo havia assinado o documento, como uma forma de esconder algumas notas mais comprometedoras e que poderiam sacrificar a confiança que Estela lhe depositava. Afinal, aos nove anos, todo apoio é sempre bem-vindo.

O rabo do porco só entortou porque o Arnaldo fez confusão e assinou o bimestre encerrado e os seguintes também. O boletim era daqueles de uma folha só, para ser usado o ano todo.

Tudo um problema de ordem técnica. Viu aquelas linhas em branco, se empolgou com a ideia e entendeu que era melhor deixar tudo pronto, bem feito com o nome do pai ocupando as linhas, de modo a não despertar suspeitas desnecessárias. Estava tudo certo, assinado até o final do ano. Pelo menos para ele.

Estela desculpou-se e retornou para casa na companhia do filho.

— Em casa você Arnaldo vai me pagar essa humilhação.

— Mas mamãe, eu é que fui humilhado. Vão me chamar de mentiroso, e eu só queria deixar tudo assinado.

— Você deixe de mentira. Eu vi as notas também.

— A tia falou que é só fazer recuperação.

— Arnaldo cale a sua boca. Em casa eu falo contigo.

Já em casa, entrou sem dizer palavra.

De maneira incomum Romualdo estava em casa. Explicou que havia chovido no centro da cidade, o que atrapalhou o movimento. Voltaria mais tarde para vender alguma coisa e não estragar os salgados do dia.

Estela, aborrecida contou-lhe a última presepada do pequeno Arnaldo. Romualdo ouviu tudo. Sem que Estela entendesse porque, Romualdo se pôs a rir, como se tivesse acabado de ouvir alguma piada.

— Você está rindo do quê, posso saber?

— Estela, se eu lhe disser que eu também já assinei meu boletim, você acredita em mim?

— Então quer dizer que o Arnaldo já tinha a quem puxar?

— Estela se acalme, essas coisas a gente resolve.

— Então vá e resolva, antes que ele entre no couro.

Romualdo chamou o garoto e adepto de trocar a surra por um castigo, porém com a palavra de homem empenhada e garantida por um acordo, as coisas regressaram ao normal. Acompanharia o filho, pelo tempo que fosse preciso, o que no final, deu certo.

Os pequenos desenganos fariam fila no curso dos anos. Uns mais simples, outros mais exigentes. Quando um destes alcançou Hermínio, o mais velho, dessa vez foi bem diferente. O rapazote cruzara os 15 anos e já se assanhava, se afastando da figura materna. Para uns, um sinal de autonomia verdadeira, para outros só a vontade de se sentir mais livre.

Era o tempo das galeras, sendo que um adolescente costuma dar satisfações ao grupo. Hermínio, além de outros garotos passaram a receber e repassar papelotes. Sobreveio o conflito e a briga com um grupo rival.

Valente e esperto, Hermínio resolveu participar da briga, onde acabaram levando ligeira vantagem na troca de socos e pontapés. Na semana seguinte, Hermínio e mais um outro garoto foi encontrado em um terreno baldio, ambos crivados de balas.

Romualdo, ao chegar em casa foi surpreendido por dois policiais que o chamavam para seguir até o necrotério, para o reconhecimento do corpo dos meninos. Já no local, não havia o que questionar. Um deles era o corpo do garoto Hermínio.

Estela custou a superar o impacto do ocorrido. Guardou roupas e demais pertences, por mais que parentes e amigos lhe dissessem para não fazer isso. Entretanto, a vida precisava prosseguir, como sempre acontece. O tempo acaba servindo de remédio.

Um a um os demais filhos foram deixando a casa. Até que um dia o próprio seu Romualdo, já há muito aposentado dos negócios de rua, também se foi.

Sem muito alento, logo foi a vez de Estela. Enjoou de passar a semana toda sozinha, até receber a visita dos filhos e noras nos fins de semana.

O que o seu coração sentia falta mesmo, era de Romualdo, o homem simples, de ideias simples, com quem vivera por mais de 40 anos. O tempo fez a sua parte, quando então, a casa do final da rua ficou vazia e foi finalmente vendida.

Casa simples, feita na base da puxada, certamente que não valia grande coisa. Assim o novo proprietário achou por bem colocá-la abaixo e fazer outra, dentro dos moldes legais e arquitetônicos.

O novo casal de moradores não tinha filhos e o próprio bairro envelheceu. As crianças já não se reuniam mais para brincar nos fundos da rua sem saída.

A manja tornou-se tão manjada, até que um dia simplesmente desapareceu. Os pequenos e sadios pulmões que a impulsionavam, já não estavam mais ali.

Hoje centenas de ruas com o mesmo perfil podem ser vistas nas imagens digitais da Web. Já as brincadeiras, os gritos e sorrisos infantis, estes se tornaram tão distantes no passado, quanto as histórias da casa no fim da rua, substituídos que foram por computadores e smartphones nas mãos das crianças.

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