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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A confiança e o risco

                                                                            

                                                                                                                                         Foto: Free-Photo by Pixabay

Por: Antonio Mata

Da varanda corriam e saltavam em direção ao extenso e arborizado quintal, onde a correria prosseguia incansável.

Por entre brincadeiras, só interrompidas pela tia Neuza, chamando para comer alguma coisa, os dias de dezembro se apresentavam como um grande presente, repletos de luz e calor.

Júnior e Mike, eram só alegria, não queriam nem deixavam passar nada, tudo era motivo para mais uma diversão. Porta da sala e porta dos fundos abertas, significavam apenas mais uma sequência de obstáculos a serem vencidos, rumo a mais uma aventura juvenil.

Pedras pelo caminho, raízes das árvores, canteiros de plantas, verdadeiros convites para correr e saltar à vontade.

Foi Mike o primeiro a notar uma coisa diferente, bem nos fundos do quintal. Estancou a correria, quase sendo atropelado pelo Júnior.

— Ficou maluco! Não pode parar na minha frente desse jeito! Ainda vai quebrar meus ossos.

— Fica quieto e não atrapalha. Não vê que estou me concentrando em algo? Fica quieto.

— Tem aranhas que sobem pelo muro. Eu já sei disso, seu panaca. Depois que a tia mandou caiar o muro, aparece tudo. Vejo qualquer coisa que se mexa. Aranhas, formigas, baratas.

Júnior era o mais barulhento e atrevido, atrapalhando a atenção de Mike.

— Até quando levei uma barata para mostrar para a tia, ela só faltou ter um troço. Só por causa de uma barata.

— Pois, é Júnior, continue levando pra ela todo tipo de porcaria que você encontrar pelo chão e logo, logo, ela não vai mais deixar brincar aqui.

— Não fiz nada de errado, só quis mostrar, só isso. Não tenho culpa se ela morre de medo de qualquer coisa que se mova em volta dessa casa. Tia Neuza deveria morar em um apartamento.

— É isso mesmo Júnior, tem toda razão. Tia Neuza compra um apartamento e se desfaz dessa casa. Você tá certo, seu pateta.

— Eita, não pensei nisso. Foi mal.

Agora, fica quieto e presta atenção no muro de novo. Olha direito, com vontade de enxergar. É lá no alto, bem no canto.

Júnior fixou a vista na extremidade direita do muro e viu o motivo de toda a atenção de Mike.

— Que será aquilo se mexendo ali Mike? É diferente, eu nunca vi antes. Balança, depois sobe e desce. Só faz isso e mais nada.

Mike olha para o amigo atrapalhado, com ar de desdém.

— Balança, depois sobe e desce. Só pode ser uma cobra. Dizia Mike, zombando do Júnior.

— Uma cobra? Eu poderia jurar que é um rabo, a ponta de um rabo peludo, balançando. Desde quando cobra tem pelo Mike? Tá parecendo mais o rabo de um gato.

Dessa vez Mike fez menção de rosnar e mostrar os dentes. Era demais para sua paciência.

— Vamos olhar mais de perto, se você fizer barulho vou te morder; seu palhaço.

— Se você me morder vou gritar tanto, que a tia Neuza vai chegar até aqui...

Resolvidos os conflitos, se aproximaram do muro cautelosamente, de modo a não assustar o bicho. Já próximos do muro, o gato Angorá do vizinho dos fundos, branco, tal e qual a caiação que a tia Neuza mandou fazer, se esticou, acomodou-se sem pressa; e prestou atenção nos dois vizinhos lá embaixo.

Com ar antipático e de pouco caso, se dirigiu aos vizinhos.

— Posso saber o que estão fazendo aqui? Não acham melhor voltar a correr, já que fazem isto o tempo todo? Cuidado que a tia Neuza pode estranhar o silêncio.

— Nós é que queremos saber o que você está fazendo em cima do nosso muro. Retrucou Júnior todo eriçado.

— Eu não sabia que o muro era de vocês, pensei que fosse aqui de casa. Agora, que mal pergunte, e daí?

Mike e Júnior estavam perdendo a paciência com aquele gato insolente.

— É claro que é da tia Neuza, foi ela que mandou fazer a caiação.

— Foi mesmo? Aqui desse lado tá tudo descascado e sujo. Avisa ela para caiar aqui também.

— Desce do muro da tia Neuza, tô avisando! Rosnou Mike em uníssono com Júnior, diante daquele gato que balançava a cauda, como a desdenhar mais ainda dos dois valentões lá embaixo.

— Querem saber, de quem é o muro não me interessa, e eu não vou descer coisa nenhuma.

— Desce daí, agora! Rosnou Mike, já transtornado.

— Estou morrendo de medo, vou acabar caindo aí embaixo. Vocês aí, não passam de dois cachorros idiotas. Espia só o meu saco balançando, olha. Instigava o gato, bem protegido pela altura do muro.

Acomodou-se mais ainda, fechou os olhos, como quem se prepara para tirar um cochilo, sacudindo acintosamente a cauda. Como quem diz, “aqui em cima quem manda sou eu”.

A conversa desandou em uma barulhada infernal. Dona Neuza chegou até a porta da cozinha, deu uma olhada e entrou de novo.

— É toda vez a mesma amolação. Gatos da rua por cima do muro atiçando os cachorros. Quando é que isso vai acabar?

Entrou e foi cuidar de seus afazeres, já interrompidos tantas outras vezes por aquela baderna nos fundos da casa. Já não se importava mais com aquele barulho todo.

Poucas horas depois, chamou Mike e Júnior para lhes oferecer alguns biscoitos. Lhe contaram que eram úteis para manter os dentes limpos. Não demorou muito e os dois apareceram ofegantes e alegres como de costume. Foi Júnior quem se voltou, e retornou ao fundo do quintal; apesar de dona Neuza insistir para que não se afastasse dali.

Finalmente Júnior voltou, contente como sempre, e satisfeito por poder oferecer mais alguma coisa à sua tia querida. Colocou no chão, alegre abanava a cauda enquanto olhava sorridente para tia Neuza. Essa sim, já não conseguia mais fechar a boca.

Dois centímetros, é mais ou menos o tamanho de uma unha. Foi tudo o que precisaram da ponta daquele rabo branco e peludo.

Moral da história:

Ter confiança é algo muito bom; confiar em excesso é assumir  todo o risco.

 

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