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Por: Antonio Mata
A cidade é de quem? É de todos que vivem nela. Das vielas e dos becos, às grandes avenidas, existe a cidade do dia e a cidade da noite. Existe a cidade dos homens e a cidade dos demais.
Nas galerias pluviais e esgotos da cidade, a vida pululava na escuridão dos canais. Ratos de esgoto, jacarés e uma quantidade impensável de insetos habitavam aquele submundo fétido e desprovido da luz do sol.
Junto a antigos córregos, seres humanos amontoados em palafitas e toda sorte de habitações precárias, agora se equilibravam em cima de passarelas improvisadas por sobre aquela água tomada de dejetos. A diferença entre um e outro ambiente, é apenas esta, a luz do sol.
Este cenário de degradação e poluição fazia o pano de fundo para uma forma sutil de se viver. Esta forma, subproduto daquele mesmo cenário, e que surgiu por causa dele, ia para além da resiliência e adaptações animais sugeridas pela ciência. Para funcionar exigia estratégias, conspirações e acordos, muitas vezes espúrios.
Superlotação
O ambiente, o que tinha de escuro e fétido, tinha também até bem pouco tempo, de espaçoso e cômodo, dadas as circunstâncias. Fora das galerias e esgotos, a vida se tornava particularmente perigosa por conta dos seres humanos.
O fato é que na sociedade dos ratos civilizados e urbanos, muitos eram gordos e preguiçosos. Vulgarmente eram conhecidos pelos homens como ratos de esgoto, pecha que nunca aceitaram, pois consideravam tão ofensiva quanto ser chamado de rato do mato.
Afinal, como foi isso? Como conseguiram ficar gordos e preguiçosos? Muito simples, controlando a entrada de comida nas ratoeiras. Sob a alegação de uma melhor distribuição que pudesse atender a todos, cobravam uma taxa pela manutenção da lei e da ordem na ratoeira. Taxa esta que subia lentamente. Onde parte desaparecia desapercebidamente. As quantidades de alimentos obtidas também estavam em declínio.
A convivência entre ratos e jacarés nunca se deu de forma pacífica. Enquanto houve espaço para crescer, estava tudo indo muito bem, até o momento em que o superpovoamento dos canais escuros precipitou as perseguições diárias, ante as necessidades de alimentos. As reuniões em busca de soluções se sucediam.
— Está se tornando insuportável a olhos vistos senhores! Estamos nos sujeitando a um puro e simples genocídio! — Simplício, que de simples não tinha nada, fazia mais um aparte inflamado e contundente do alto de um pedaço de caixote, diante de uma plateia silenciosa e assustada, semimergulhada em água suja.
— Não podemos permitir que a situação continue dessa forma! É um acinte, uma vergonha, um insulto, enquanto jacarés asquerosos engordam, até mal conseguirem passar pelos buracos menores destes esgotos! Concluía o tribuno Simplício.
Um ratinho presente ao evento, confidenciava para sua mãe, logo ao lado, e ambos igualmente dentro d’água.
— Mamãe, esse daí é o rato mais gordo da ratoeira, acha mesmo que ele está passando fome?
— Cale-se menino, não diga mais nada. — Ordenava sua mãe, falando baixinho para não chamar a atenção.
O garoto não falou de graça, e muito menos foi o único a perceber tal situação.
— Caro tribuno, se sua preocupação com a pobreza de nossa própria espécie fosse verdadeira, estaria compartilhando seus estoques de grãos ao invés de comer tudo sozinho. Não é mesmo? — Agora era a vez de Modesto, que também de modesto não tinha nada, alfinetar o tribuno.
— Nós precisamos acima de tudo de um grande acordo, uma negociação com os líderes dos jacarés para definirmos limites. Sem limites continuaremos expostos à fome na medida que a população cresce, mas é acuada pelos terríveis jacarés.
Em tom dramático, Modesto completava sua fala:
— Até para sair dos esgotos, em certos pontos estamos com dificuldades, tocaiados que somos! Vão nos matar aqui!
Um dos presentes na plateia da água suja, gesticulava respingando nos demais.
— Não poderíamos voltar para as matas de onde viemos? Afinal somos de lá. — Era Canuto, um rato acostumado a correr muito e a comer pouco.
— Viemos para cá atrás de maior fartura de comida. Será que a solução está em voltar? Lá já tem comida para todos? Sabem de alguém que tenha voltado? — Era Serrão, um rato de meia idade que arriscava o próprio pescoço, se expondo à noite, para fora dos esgotos à cata de comida nos lixões e latas de lixo nos bares, restaurantes e habitações da cidade, além de buscar furos, entradas para os grandes depósitos de supermercados e atacadistas.
— Serrão está é certo! Ontem raspei metade de uma barra de sabão. Aonde na floresta eu poderia fazer isto? — Era Raí, fazendo bolhas de sabão pela boca, enquanto realizava seu comentário.
Foi Eustáquio, um rato comprido, empertigado e de óculos, que se pronunciou com ares de autoridade, e procurando encaminhar a discussão.
— Não podemos pensar em deixar as galerias, apesar dos riscos que elas oferecem agora. Por outro lado, a nossa saída será o fim dos jacarés. Sair para buscar comida sempre foi a nossa melhor iniciativa, mas estamos chegando a um limite. Isto significa que buscarmos um acordo negociado com os jacarés pode muito bem ser a nossa única saída.
Depois de um certo tempo pensando, enquanto os demais aguardavam dentro d’água de olhos arregalados, pela sua conclusão, ele enfim completou:
— Recomendo a criação de uma comissão de representantes, com poderes para tomar as decisões necessárias. Esta comissão sob minha liderança, entrará em negociação com os jacarés.
Diante dos argumentos apresentados, houve uma rápida votação e a aclamação de Eustáquio como o presidente da comissão dos ratos a negociar com os jacarés.
O acordo
A comissão, reunindo unicamente os seus membros, retomou as conversas e a análise das possibilidades mais uma vez. Havia muita expectativa da população para com o resultado da iniciativa, pois a situação geral ia de mal a pior.
Depois de muito matraquear, foi o próprio Eustáquio que interveio direcionando mais uma vez a conversa.
— Diante de tudo o que já foi narrado aqui, sugiro que amanhã mesmo busquemos os jacarés líderes das galerias e lhes apresentar nossa proposta.
— Qual a proposta Eustáquio, qual a proposta? Diziam todos, no aguardo das palavras do presidente.
— É de simples negociação e de fácil realização. — Aguardou mais um pouco, e finalmente concluiu.
— Vamos oferecer o que temos de mais abundante, e por demais procurado pelos próprios jacarés. Uma proposta irrecusável, que trará tranquilidade a nós, e à população também, basta saberem que será em nome da sobrevivência de todos eles.
— O que vamos oferecer Eustáquio? Perguntavam todos.
— O quê? Ora, vamos oferecer filhotes e ratos jovens. Nascem filhotes o tempo todo. Não é à toa que está ficando tudo tão cheio.
— Isto está correto Eustáquio, vamos entregar os nossos próprios filhos? Indagava o tribuno Simplício, preocupado com a sorte da própria família.
Eustáquio olhou para ele com uma cara cínica, capaz de enojar o próprio capeta.
— É evidente que não meu caro tribuno. É no grosso da população que há um excedente de ratos, não é mesmo? Pois eles então que zelem pelo cumprimento do acordo. Nós mesmos temos poucos filhotes.
— Nossos filhos já estão crescidos e já não temos mais tantos filhotes assim, é por isso. Enviar os filhotes dos demais estaria correto?— Insistia Simplício.
— É claro que sim, ou não quer preservar a vida de seus próprios filhos? Quem iria alimentá-los se a situação continuasse como está, ou até mesmo piorasse?
Diante dos argumentos de Eustáquio, todos os demais silenciaram e estavam a um passo de decidir que esta seria a proposta de salvação da ratoeira das galerias, a ser negociada com os jacarés.
Contudo, havia um senão, no qual ninguém havia pensado.
Um dos comissionados fez a seguinte consideração. Era Modesto.
— Já deu para entender a lógica nesta troca de filhotes pela sobrevivência da ratoeira. Só há um problema, como pretendem convencer as mães a colaborarem, já que de antemão, terão que abandonar seus filhotes?— Parou um instante para aumentar a tensão, até concluir:
— Dizer que são muitos não resolverá nada. Sempre possuem ninhadas grandes, e, portanto, acham normal ter muitos filhotes. Como convencê-las?
O questionamento de Modesto era poderoso. A comissão da ratoeira se entreolhou, sem obter nenhuma resposta. Então os olhares todos, e esbugalhados buscaram o autor daquela ideia sórdida e vil, Eustáquio.
O tempo passava e todos aguardavam sua fala. Eustáquio deu-se conta de que a questão era séria o suficiente para fazer desmoronar sua estratégia covarde.
Esta, basicamente e cinicamente, consistia em empurrar o problema para os demais. Para os mais jovens, e, portanto, os mais prolíficos. Arcariam com o peso da estratégia e da covardia.
O cínico precisava de uma saída rápida. Não queria sacrificar sua fama de rato de liderança. Enfim, sentenciou.
— A consideração feita, é complexa e exige mais estudos. Sugiro que consultemos nossos estudiosos do comportamento, para que tenhamos clareza no propósito. Vamos chamar de estudo de risco, somente isso. Este é desde já um segredo nosso, não sai daqui de dentro, sob pena de morte. Os estudiosos e pesquisadores, também farão silêncio, e certamente suas análises poderão nos ajudar.
Todos concordaram e a decisão teria de esperar.
Estudo de risco
Buscou-se aqueles que mais se dedicavam a conhecer o comportamento e as reações dentro da ratoeira, e sob a ameaça dos jacarés, cada vez mais ativos e mais ferozes.
Um deles se destacava, era Manfred, um rato de meia idade, de óculos metálicos e um rosto fino. Ambrose, responsável pela equipe de pesquisadores, tomou ciência das preocupações da comissão com relação a uma questão extrema que lhe foi oferecida para análise.
Diante do perigo iminente, como fazer para que as mães abandonassem seus filhotes, isto em defesa de suas próprias vidas? Assumia-se então, que agindo dessa forma poderiam ter novas crias no futuro, e assim zelar pela vida de toda comunidade.
Ambrose ofereceu o problema para o seu principal estudioso. Manfred debruçou-se sobre esta instigante e difícil questão, e duas semanas depois retornou com a resposta. Na companhia de Ambrose, apresentou sua conclusão aos dois representantes da comissão, Simplício e Modesto.
— Pude observar que a situação proposta é bastante sensível, podendo desencadear, inclusive, uma onda de indignação entre as mães primeiro, que rapidamente chegaria aos demais. Contudo, há uma possibilidade bastante real de se fazê-lo.
— Qual é? Diga logo! Se enervava Simplício.
— Podemos nos valer de um subterfúgio, um truque que irá encobrir o propósito real, ou seja afastar as mães dos filhotes.
— E que truque salvador é este? Fale! Insistia Simplício.
Sem se deixar abalar, Manfred calmamente fez a sua exposição.
— Muito simples. Meus estudos sobre o necessário para se executar uma fuga com segurança para longe dos jacarés, e com chances de sucesso, se mostraram muito úteis. Descobri que se um rato quiser escapar do ataque de um jacaré, além de estar atento, terá que ser muito hábil em uma corrida muito veloz, mas de apenas dez metros.
— Dez metros, só isso? Continue, continue!— Era mais uma vez Simplício, ansioso pela resposta que levaria adiante o cenário de vilania da comissão de representantes.
— Vivemos todos na escuridão, e os jacarés são animais de sangue frio. Ao passo que os ratos são animais de sangue quente. Em uma corrida, empurrado por uma explosão de força, o jacaré, após os dez metros iniciais, começará a perder velocidade rapidamente, até parar. — Deu uma parada, e muito calmo, sabendo que dominava a curiosidade de todos, completou:
— Não terá energia para prosseguir na perseguição. Ao passo que os ratos por possuírem mais energia continuarão correndo, e assim sobrevivendo ao ataque do jacaré.
Simplício, oportunista e cínico, estava com um sorriso de um canto a outro da boca. Quanta sapiência, quanta inteligência! Não podia deixar de reconhecer. Este Manfred é um assombro!
De súbito, pareceu ter tomado uma martelada:
— Epa! Peraí!— lembrou então de uma coisa:
— Achei fantástico, mas e a situação das mães? Vão continuar agarradas com seus filhotes. Não vão querer largá-los.
— Muito simples outra vez. Basta divulgar isto como sendo um procedimento de segurança que deverá ser atendido por todos, uma verdadeira medida de segurança pública, na defesa contra os jacarés. Assim, dessa forma, retira-se o foco da questão de cima das mães. Passa a ser um problema de defesa da coletividade. Para um mínimo de sacrifício, um máximo de proteção, e com ela o crescimento equilibrado da ratoeira.
— Nossa, não havia pensado nisso. Dizia Simplício.
— Foi por isso que você me chamou.— Manfred lembrava mais exatamente um pombo, com aquele peito cheio, do que um rato.
Simplício retornou para a comissão, agora com a melhor das respostas. Dessa vez Eustáquio ficaria contente com o seu tribuno, o que certamente aumentaria seu cacife junto ao líder. Mais que bajulação, o tribuno agora levava solução.
Finalmente a comissão foi ter com os representantes dos jacarés. O acordo firmado era simples. Uma certa quantidade de alimentos seria deixada de tempos em tempos, à mercê dos jacarés, que poderiam pegá-los, sem maiores problemas. Assim estariam alimentados e dariam sossego para os demais.
Já na outra ponta, a população da ratoeira, o discurso era bem diferente. A população como um todo, particularmente os mais jovens, seriam educados sistematicamente a praticarem a corrida dos dez metros.
Bastaria que o perigo se manifestasse, executava-se então, a corrida de dez metros. Divulgou-se massivamente, que estudos científicos asseguravam que a corrida favorecia a manutenção da vida, e que, portanto, favorecia a todos.
Na prática, estavam convencendo as mães a abandonarem seus filhotes, apoiados em pesquisas.
A grita não demorou.
— Como poderei correr velozmente, e carregando meus filhos? Perguntava uma das mães.
— Você terá que tomar uma decisão, no interesse de todos da população. Não seja egoísta, não pense só em você. O que está em jogo é a vida de todos. Dizia um dos defensores da corrida de dez metros.
Diante da situação, as mães se viram gradativamente isoladas. Por fim, acabaram cedendo à corrida de dez metros.
Corrida pela vida
Não demorou muito para que Manfred, na escuridão das galerias, pudesse constatar o resultado daquele plano sinistro. Tão logo alguém percebesse a presença de jacarés, todos largavam tudo o que estivessem fazendo e partiam em uma correria desabalada.
Os pequeninos, sem entender o que estava acontecendo, abandonados pelas mães que foram, ficavam para trás, totalmente indefesos. Acabavam todos abocanhados pelos jacarés. Com o tempo, passaram a abocanhar também, as mães que insistiram em proteger seus filhotes, pois não corriam suficientemente rápido, carregando seus filhotes. Para os jacarés, nunca foi tão fácil obter carne macia e fresca.
Por conta de uma decisão colegiada, os filhotes estavam sendo deixados para morrer. O que Manfred viu nascer foi a banalização da vida de seus filhos. Quando comessem a maioria dos filhotes, ao longo do tempo, seria a vez dos ratos adultos.
Foi quando Manfred se deu conta de toda a sua idiotice. Foi quando o tiro saiu pela culatra.
Quando os filhotes escassearam, os jacarés investiram contra os adultos. Estes autômatos, colocavam imediatamente em prática a corrida dos dez metros. Dessa vez, ficavam para trás os ratos mais idosos.
Quando os ratos mais idosos entraram em processo de extermínio, os jacarés partiram para cima do novo grupo que acabava ficando para trás, por não serem rápidas o suficiente. Dessa vez eram as mães da ratoeira. Aquelas que já haviam abandonado seus filhos. O restante das matrizes daquelas galerias, no submundo de escuridão.
Já não havia a mais remota sombra de dúvida. Os ratos estavam sendo exterminados.
Os mais jovens e mais fortes buscaram os membros da comissão de representantes, que já por aquele tempo, havia se tornado a junta de governo da ratoeira. Estavam enfurecidos vendo suas famílias sendo devoradas sistematicamente, por terem cumprido as normas e orientações da junta governativa.
— Eustáquio, você é o líder dessa porcaria. Foi você que criou esse monstrengo e trouxe para a ratoeira. Dizia um dos jovens, em um tom bem agressivo.
— Eu criei? Eu criei? Quem criou isto foi o idiota do Manfred, aquele cientista louco. O inútil deveria ser exterminado.
— O que você está dizendo? Isso tudo foi ideia do Manfred?
— Sim, isso mesmo que você está ouvindo. Do Manfred e do asqueroso do Simplício. Fizeram isto em conluio. Eu quis tentar evitar, mas vieram com essa conversa toda de ciência. Acabaram votando e aprovando.
Um grupo enfurecido apanhou Simplício e o suspenderam do chão.
— Para onde estão me levando? Eu não fiz nada, não fiz nada!
Outro grupo encontrou Manfred.
— O que tens a dizer em tua defesa Manfred?
De forma tranquila Manfred encarava seus captores.
— Em minha defesa? Acreditava estar fazendo algo bom para todos. A corrida de dez metros era e é capaz de salvar vidas. Quer uma prova? Vocês estão aqui, vivos e fortes.
Tiveram que reconhecer que Manfred tinha razão, pelo menos nisso. Só havia um problema. A sorte dos filhotes, das mães com filhotes, depois dos idosos, e depois das mães. A ratoeira havia entrado em processo de extinção. Manfred então expôs como via aquilo tudo:
— A corrida de dez metros foi concebida para ser um instrumento de defesa pessoal, ante o perigo iminente. O que se fez foi transformá-la em uma medida geral, uma política que deveria alcançar a todos. Deixamos de pensar uns nos outros e nos tornamos verdadeiros robôs, aceitando tudo. Foi assim que o tiro saiu pela culatra, e liquidou a nós mesmos.
Simplício, que estava sendo carregado de cabeça para baixo pelos demais ratos, botou para falar:
— Tiro pela culatra, de quê jeito? A ideia toda partiu de Eustáquio. Negociou com os répteis. Entregaria os filhotes para que os mais velhos pudessem continuar vivendo, ao invés de serem caçados. A corrida de dez metros criada por Manfred, foi utilizada como uma cortina de fumaça para que as mães não se importassem em abandonar seus filhos e fugissem junto com os demais.
Os olhos dos mais jovens e fortes estavam coléricos.
— Tragam Eustáquio, se reagir, arrastem-no. Ordenava o líder.
— Só mais uma questão, que orientação vocês receberam de Manfred?
Agora foi a vez de Modesto largar a modéstia de lado e lutar pelo próprio pescoço:
— Foi ele que afirmou que se poderia ludibriar as mães, confundidas pela aplicação da corrida de dez metros.
O rostos estavam para explodir.
— Peguem Manfred.
Em pouco tempo reuniram a quadrilha. Eustáquio, Simplício, Modesto e Manfred estavam suspensos, amarrados e conduzidos como se fossem toras.
— Fiz tudo isso pelo bem de todos, o meu povo, a minha ratoeira. Me ajudem! Implorava falsamente Eustáquio. Ninguém lhe ofereceu nenhuma resposta.
Em um dado momento, surgiu no ar um certo cheiro de urina de rato. Era Modesto, desesperado com a própria sorte, enquanto caminhavam por sobre os esgotos, conduzindo amarrado, o velho rato trapaceiro e mentiroso.
Seguia na frente daquela espécie de cortejo fúnebre, o orgulhoso, falso e inescrupuloso Eustáquio. Eram conduzidos pelas mãos daqueles aos quais haviam enganado e tripudiado. Seguiam naquela fila indiana, uns choramingando, outros fazendo imprecações. Manfred seguia em silêncio.
Percorrendo uma grande galeria, deixaram o trecho ainda cheio d’água e passaram para uma pequena elevação, quase seca. Logo adiante encontraram aqueles que estavam buscando. Os répteis, as lideranças dos demais.
Ao se aproximarem do outro lado da galeria, onde a elevação terminava e a água pútrida tornava a invadir o ambiente, por uma mínima fresta de luz que partia da superfície, puderam delinear na escuridão, centenas de olhos arregalados.
Uma voz medonha se dirigiu cinicamente ao grupo:
— Não estou entendendo. Onde estão os representantes da junta governativa?
Suspenderam Eustáquio mais alto, assim como os demais.
— E o que esperam que eu faça? Perguntou o réptil.
Ao que teve como resposta:
— Leve-os com vocês.
Então, os cabeças da junta governativa foram postos no chão, na beira da elevação, próximo aos jacarés. Deram as costas e se afastaram.
— Nós temos um acordo! Nós temos um acordo! Era o covarde Simplício a gritar.
— Está bem, então. Vamos cumprir o acordo. Peguem todos eles!
Ao comando do líder, Simplício o hábil negociador, foi abocanhado pela barriga e jogado para o alto. Bocarras abertas logo abaixo, disputariam, cada uma, um pedaço. Eustáquio teve sua cabeça arrancada, sendo esta engolida com óculos e tudo.
Modesto foi posto numa brincadeira macabra, onde cada um queria tirar o seu pedaço. Já Manfred, dos quatro, foi aquele que teve mais sorte.
Momentos antes de ser abocanhado, começou a gritar:
— Eu tenho um conhecimento que poderá ajudá-los! Poderá ajudá-los! É verdade!
O líder dos répteis, então deu a ordem.
— Deixem o idiota viver.
Assim terminava a aventura silenciosa e suja das galerias e esgotos da cidade.
A saturação, por conta do crescimento populacional em um ambiente que logo se perceberia incomparavelmente restrito, se posto lado a lado com os campos e florestas ao redor, tenderia a chegar de qualquer maneira.
O acirramento das questões internas entre ratos e os jacarés, estes mais fortes e mais capazes, acabariam empurrando os roedores de volta para as tocas escavadas debaixo da terra, como viviam a milhões de anos. As galerias e esgotos, não passavam de uma opção, que por um bom tempo se mostrou proveitosa na oferta de proteção e comida. Não foi à toa que cresceram tanto.
Tanto mesmo, a ponto de chamar a atenção dos jacarés, que descobriram a mesma coisa que os roedores. Lá dentro pode ser escuro e sujo, mas tem comida e proteção. Se adaptaram àquela vida escura e suja. Foi assim.
As saídas foram bloqueadas pelos jacarés.
Quem escavou as novas tocas nas frestas de concreto? Até abrir acesso para a terra ao redor e saídas para a superfície, em quintais e descampados?
Resposta: os mais jovens e fortes.
Precisavam de uma rota de fuga, e de um meio de sobrevivência para suas fêmeas e os novos filhotes. E assim o fizeram.
O conhecimento útil que Manfred possuía para oferecer aos répteis, era esse, a rota de fuga de seus companheiros de espécie, que se viram atraiçoados mais uma vez.
Não demorou muito para entenderem que, por serem animais grandes demais, não podiam entrar nas frestas. Mesmo montando guarda, milhares conseguiram escapar das galerias.
Os répteis acabaram se aborrecendo com as ideias de Manfred, e este acabou tendo o mesmo destino dos demais ratos capturados.
Conhecimento verdadeiro, é aquele dedicado ao bem e à fraternidade universal.
Um dia aquela cidade, aquela civilização, haveria de passar, tanto quanto outras que já se foram também, e hoje só existem ruínas. Os ratos e répteis, então retornariam ao meio natural.
Quando isto acontecer, estarão apenas repetindo algo que os seus ancestrais já fizeram, há muitos milênios no passado.
FIM