Por: Antonio Mata
Os sons da natureza constituem indicações de vida. Da chuva que cai ao marulhar das águas do rio, do vento nas folhas das árvores à relva do campo. Do canto dos pássaros no amanhecer, à revoada no fim de tarde.
Ainda assim, entre um som e outro, é em silêncio que parte significativa da vida de natureza se faz. Cruzava a divisa entre o cerrado e a grande floresta. O ambiente de plantas rasteiras, se afastando da floresta densa, lhe pareceu adequado
O viajante solitário, portador de poderosa visão, avança alto, até identificar sua área para caçar. Uma vez identificada, costuma voltar todos os anos para o mesmo lugar. Então, era assim.
Em dado momento soltou seu grito estridente, sem que, lá embaixo, pudessem identificar do que se tratava. Não demorou muito, viriam a saber. A pancada forte na nuca partia o pescoço e atirava o animal no alto, em uma velocidade estonteante.
Depois, era só recolher a refeição. No ar não era diferente. Pombos, andorinhas e pardais. Além de diversos outros pássaros que aparecessem. O Falcão Peregrino, atento, destemido e veloz tornou-se o senhor do enclave no final da floresta.
— Agora estão nos matando de um jeito tão rápido que não dá nem tempo de saber o que está acontecendo! — Dizia o gambá.
— É mesmo, ele vem em silêncio e ataca muito rápido. Acho que é o dono daquele piado barulhento e diferente. — Concordava o rato do cerrado, só com a pequena cabeça para fora da toca.
— Não vai poder ficar aí o tempo todo ratinho. Terá de sair para comer. É quando ele, inhaco! Te pega. Assegurava uma cutia. A solução é muito simples. Vamos todos para a floresta.
— É preciso que se faça algo. Sempre houve um grupo de animais dispostos a viver perto do rio, mas, fora da floresta. Aqui estamos na divisa. Podíamos escolher onde viver. Estamos perdendo nosso direito de escolha. — Assim comentava o gambá. Mais conhecido como mucura. Um primo fedorento lhe havia roubado o nome.
— Não me preocupo comigo, mas com meus filhotes. Logo vão querer circular pelo campo. — Havia sim, um risco real e a cutia sabia que seus filhotes não estavam em segurança.
De todo modo, a situação assumia ares de risco iminente. Se nada fosse feito, teriam de assumir ter de viver com a morte repentina. Os falcões não voam em grupos. Isto já tinham percebido. O foco do problema era ter de aceitar um novo predador, assim sem mais nem menos. Só porque ele apareceu e não quer ir embora.
Um pombo que circulava pelo lugar entrou na conversa.
— Não são apenas vocês. Mesmo voando pelo local, mesmo sobrevoando a floresta, ele chega por sobre nós. Já perdemos pombos assim, em pleno voo. É rápido demais não dá tempo de descer e se proteger nas árvores.
Um pardal atento a conversa, pois sabia que já estava vulnerável, simplesmente se afastou, tomando rumo ignorado. Sem que ninguém se desse conta de sua presença. De fato, fora buscar ajuda. Mesmo que se expondo ao perigo.
Avançou uns dois quilômetros, sobrevoando a floresta de transição e então desceu próximo a uma lanterneira amarela. Junto a ela, logo encontrou certa árvore que procurava. A moradia de outro predador.
Saltitante observava, buscando encontrar o inquilino. De preferência, que fosse logo. Não chegou a vê-lo, mas foi ele mesmo que acabou sendo encontrado. Garras potentes o seguraram envolvendo suas asas e o peito.
Levantou a cabeça e pode ver o Murucututu, com seus grandes olhos bem de perto. A coruja de óculos.
— Para um pássaro tão pequeno, você é muito corajoso. Se antes disso, não for muito burro. O que está fazendo aqui a essa hora? Resolveu morrer mais cedo?
O pequeno pardal se esforça por manter a calma. Precisava expor a situação antes que pudesse acabar morto. Começava a questionar o valor daquilo que fizera.
— Ehh, não, de jeito nenhum. Há algo importante que precisa saber, já que se trata de um grande caçador da floresta. Acostumado a pôr ordem nas coisas.
O Murucututu o olhava com ar de desconfiança.
— Fale de uma vez. — O pardal procurou superar o medo e ser o mais claro e breve possível.
— Os animais das terras do cerrado, no final da floresta estão preocupados. Chegou um bicho novo naquelas terras. É um pássaro muito rápido e muito forte. Está capturando muitos deles.
— E eu com isso? Não tenho amiguinhos no cerrado.
— Essa é a questão. Se trata de um Falcão Peregrino. Se deixar, ele vai se estabelecer e o campo de caça passa a ser dele, pois é muito rápido para ser pego. Mesmo pelo Murucututu.
— Além do quê, não costumo pegar pardais. Um rato ou uma cutia é mais fácil e são mais gordinhos. Diferentemente do Falcão Peregrino, que pode lhe pegar até no ar. Lá pelas bandas do cerrado. Não é passarinho?
O velho Murucututu dava um susto no pardal, mas de fato, não tinha pensado nessa possibilidade. Dividir seu campo de caça com outro predador. Doravante teria de prestar naquele forasteiro.
O falcão também não era um pássaro qualquer. Era rápido, preciso e forte para bicar com força no lugar certo. Resolveu pensar primeiro. Precisava de tempo.
— Você volte, enquanto isso vou pensar em algo. Não precisa dizer nada a ninguém. Quando chegar a hora, eu mesmo falo. Você entendeu passarinho?
— Sim, sim, claro. Está bem, vou voltar em silêncio.
Isso não seria fácil. No rol dos conhecimentos dos pássaros, assustar, pegar ou derrubar um falcão, não seria nada parecido com tiro e queda. Corujas fazem seus ataques planando no ar. Não conseguiria pegá-lo. Já o falcão mergulhava velozmente.
O pequeno pardal retornou e tratou de se cuidar evitando exposições desnecessárias. Passou o primeiro dia, o segundo e o terceiro. Nada do Murucututu aparecer. Até que no quarto dia surgiu na borda da floresta, por entre as embaúbas, com suas folhas se abrindo em leque.
Silencioso, porém, visível.
Ao vê-lo o pardal apenas chamou pelos demais animais.
— Venham todos até aqui. O Murucututu precisa falar algo. É sobre o falcão que tem atacado por aqui. É melhor ouvir.
Desconfiados e arredios, ficaram sem saber o que fazer. Uma voz grave e meio cavernosa se fez ouvir.
— Não se assustem à toa. Podem vir sem medo. Estamos aqui por uma causa comum.
O pardal buscava sensibilizar os demais.
— Vejam, ele só veio para conversar. Não está preocupado em atacar ninguém por aqui. Além disso, têm a fama de serem animais sábios e muito inteligentes.
Um sanhaço que ouvia aquela história, retorquiu ao pardal.
— Vejo que você andou lendo muitas fábulas. Só que esquecem de dizer que as corujas são grandes predadores. Com muita sabedoria e inteligência adoram comer a carne dos outros.
— Mesmo assim. É exatamente por ser um predador que poderá nos ajudar.
— Espero que você tenha razão. Pelo sim e pelo não, não vou ficar muito perto dele.
Finalmente o Murucututu começou a expor sua fala.
— Como todos já sabem, temos agora a presença de um forasteiro. Ele é ágil e certeiro. Sem dúvida está fazendo um grande estrago. Mas nem tudo está perdido. Ainda podemos retornar aos nossos tempos habituais, quando havia espaço para todos, fosse na floresta, fosse no cerrado.
Deteve-se um instante e depois, prosseguiu.
— Só há uma forma de vencer um falcão em seu mergulho certeiro. Qual seria esta forma? — Fez-se total silêncio. O Murucututu insistiu.
— Estando no cerrado, praticamente em campo aberto e no solo. Tem de ser no solo. No ar não irão conseguir. Como vencê-lo no solo ao invés de virar comida de falcão?
Mais uma vez um enorme silêncio.
— Respondam, seus inúteis! Bradou a coruja. — O sanhaço fez menção de sumir dali, mas depois desistiu, quando de repente, começaram a responder.
— Saindo da frente dele. — Arriscou o sanhaço.
— Se escondendo debaixo de uma pedra. — Completou a cobra.
— Já sei, ficando atrás do pequizeiro! — Gritava o gambá.
— Se abaixando atrás de uma moita! — Era a vez do papagaio.
— Se escondendo em um buraco! — Dizia o rato.
A coruja de óculos se enfureceu.
— Seus inúteis! Seus inúteis! Mil vezes inúteis! Pensem, pensem! É para vencê-lo, bicharada sem miolos!
O pardal, ainda meio intimidado, resolveu falar.
— Ehh, seria um obstáculo? Criar um obstáculo? Para impedir que atinja o alvo e mate um de nós?
O Murucututu fixou os grandes olhos no pardal que tremia, pensando ter dito alguma asneira.
— Finalmente salvos por um pardal. Não é passarinho? — O pardal respirou aliviado.
— Pois bem, é um pouco de cada coisa. Entretanto quando estou na floresta preciso achar uma posição alta. Mas, sem obstáculos pela frente que me dificultem o planeio e a visão. Vocês entenderam? Pronto..., acabei de dizer como se caça.
— Mas, o que é que dificulta o planeio e a visão coruja? — Se arriscava o gambá.
— Passe na floresta gambazinho que eu te mostro.
Foi mais uma vez o pardal que disparou a resposta.
— Os obstáculos é que atrapalham. Estando na floresta, só podem ser os galhos cheios de folhas!
— Estou maravilhado passarinho! Quer mesmo saber? Nem vou comer você. — Pela primeira vez o Murucututu fazia uma cara alegre. O que era um ótimo sinal.
O pardal, então prosseguiu.
— Eu já entendi que precisa ter um obstáculo. Mas, onde vamos achar um? Além do quê, o falcão não é bobo, ele vai ver.
— Ora passarinho, juntando um pouco de cada coisa. Vocês já falaram de coisas que existem por aí. É só organizar e juntar tudo. Uma moita junto a uma pedra, com alguma coisa em cima, parecendo apetitoso. Perto de um pequizeiro. Onde um galho novo possa ser repuxado até dobrar.
Uma luz piscou na pequena cabeça de um pardal.
— O falcão desce em velocidade. Vai bicar com força alguma coisa parecendo um animal. Só que por debaixo, escondido em um buraco, isto vai acionar um gatilho. Então, que vai liberar o galho esticado. Quando este voltar à sua posição normal, vai de repente encontrar o pardal pelo caminho. É estupendo!
— Exatamente passarinho. A árvore não pode ficar muito perto da moita, da pedra e do buraco. Para dar tempo de acionar o galho e ele poder se deslocar até a posição onde vai encontrar o falcão e derrubar o intruso.
— Agora já chega! Já sabem o que fazer. Mãos à obra! Vou voltar para a minha floresta. Quanto a vocês, mais que boa sorte, uma boa caçada. Pois é isto que estarão fazendo.
Não foi fácil nem um pouco, achar as posições corretas e reunir tudo nas proximidades de um pequizeiro. Outro drama foi esticar um galho novo e cheio de folhas do pequizeiro. Os cipós fortes o suficiente e deixar tudo amarrado, outra aventura.
Cutias, mucuras e macacos. Até antas e tamanduás vieram ajudar a esticar os cipós, naquele artefato tão diferente quanto incomum. Tudo saído da cabeça de uma coruja de óculos. Restava saber se tanto esforço iria dar certo.
Penas de pássaros enfeitavam pequeno pedaço de balsa, que balançava ao menor vento. A moita na frente de tudo, porém deixando o pássaro de balsa bem visível. Uma pedra servia de apoio. Um buraco cheio de folhas escondia o mecanismo de gatilho. O cipó esticado, com outros pelo chão, não chamava a atenção. Um pequeno mecanismo de contrapeso fazia a cabeça do pássaro de balsa sacodir de um lado para o outro. Parecia que estava tudo pronto. Agora era esperar.
Já se passavam cinco dias sem que nada acontecesse. Já havia entre os animais, quem pensasse que o falcão já teria descoberto tudo com sua ótima visão. Foi ainda na tarde do quinto dia que a coisa aconteceu.
Rápido, tudo muito rápido. Em velocidade alucinante, o falcão mergulhou, bicando o pássaro de balsa. Este se despedaçou todo no ar. Mas, não sem antes acionar o gatilho.
O falcão, em alta velocidade, sem o saber, caiu na armadilha e em seguida começou a subir. Gatilho acionado, liberou o cipó com o galho de pequizeiro se deslocando na direção do falcão caçador.
O choque no ar foi inevitável. O falcão voou encontrando repentinamente o galho em seu caminho. Foi uma lapada e tanto! Barrado em seu movimento, o falcão se depenou e já abatido, caiu no chão logo adiante.
Por de trás das moitas surgiram cutias, gambás e serpentes. Além de passarinhos que não paravam de bicar o caçador assustado e ferido. Agora transformado em caça.
Saiu dali todo machucado e humilhado. Sem compreender o que havia acontecido. Nunca mais foi visto. Nem voltou no mês de outubro, quando costumam chegar no Brasil, vindos dos EUA.
Não voltou nem no ano seguinte, nem depois. Não naquela faixa da floresta de transição, que demarcava os limites finais da grande floresta Amazônica. Já o pequeno pardal foi aclamado o Protetor daquelas terras.