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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A emboscada

Por: Antonio Mata

Já estava quase pronto, ainda que tenha levado umas duas horas para fazê-lo. Com cuidado alisava as paredes com as mãos. O balde e a pazinha de plástico não eram mais necessários.

Concluiu, afastou-se alguns passos enquanto apreciava seu novo castelo. Olhava para seu pai ali perto, enquanto aguardava seu veredito. Afinal, sua opinião era importante.

— Ficou ótimo. Qualquer dia desses você vai querer fazer um de verdade. Agora vá brincar com as outras meninas. Daqui a uma hora, nós já vamos para casa.

Quando foi mesmo que aquele imenso litoral, de praias infindáveis, se tornou o manancial de paz e harmonia? Lugar de reposição, de captação de novas energias, pensamentos e sentimentos. Eram tantos que seguiam para lá.

Melhor foi encher aquelas terras com praias, dunas, rochedos, mangues. Além de florestas, rios e campos imensos. É assim que se delineia um hospital de almas.

Então, poderá acolher os atormentados de toda sorte de flagelos. Fruto da mente dos homens. Foi concebido para tal. O hospital de almas os recebe para a cura, se assim o quiserem.

Escura e tensa era a noite.

O bebê no colo dormia tranquilamente. Alheio ao ar denso, fruto do medo, intrigas e perseguições. Tinha o mérito abençoado de não reconhecer coisa alguma.

O caminhão de lona suspensa acomodava, pobremente, mais de trinta pessoas. Noite alta e sem lua, fazia caminhos secundários entre bosques e florestas. Não houve chuva, então não havia o risco de atolar. O medo era outro.

Tomou um trecho que o levaria a uma estrada de paralelepípedos. Todos permaneciam em silêncio, aguardando a conclusão da viagem. A pista calçada era sinal de que a cidade estava próxima. Não havia mais nenhum atalho. Precisava cruzar as ruas desertas do lugar e prosseguir.

O bebê dormia, enquanto sua mãe pensava nos passos seguintes. Era fundamental deixar a França, recém invadida pelo exército alemão e chegar na França de Vichy. Assim chamado o território que permaneceria administrado por um governo francês.

Com os alemães veio a perseguição aos judeus. Com ela, tudo o que isto poderia significar. Noemy se perguntava e se condenava por demorarem tanto a sair dali. Não foi a primeira nem a única. Foi tudo muito rápido. Porém, havia sinais.

A Kristtalnacht, a Noite dos Cristais, fora o último pogrom realizado contra judeus, em novembro de 1938. Tinha ocorrido há apenas um ano e meio quando a França foi invadida. A invasão de sinagogas, profanação de túmulos, destruição de lojas e a morte de dezenas de judeus.

O aviso dado em todo território controlado pelos nazistas não poderia ter sido mais claro. Na França invadida iria se repetir.

Não passava nas mentes de ninguém o que ocorreu nos dias seguintes a 10 de maio de 1940. França, Bélgica, Luxemburgo e Holanda foram invadidos. Em 14 de junho, Paris foi ocupada.

O exército francês se desintegrou de um mês para o outro. O impensável acontecera. Agora, era sumir dali o mais rápido que pudessem. O tempo das intrigas e delações havia começado.

Nazistas não respeitavam a cidadania de nenhum judeu.

As luzes da cidade logo surgiram indicando um momento crítico. Alguém buscava tranquilizar os demais. Pois, superado o trajeto, o restante seria bem mais fácil. Segundo informações, não havia mais a expectativa de patrulhas alemãs na região.

Noemy tranquilizou-se enquanto o caminhão avançava. Lá fora, na rua iluminada, por uma fresta na lona, pôde ver de pé na beira da calçada, algo que a fez enregelar.

Um oficial alemão e um homem em vestes sacerdotais pareciam conversar, enquanto o caminhão avançava. Era a delação.

Noemy principiou a gritar.

— Não parem, não parem! É uma emboscada! É uma emboscada! Não deixem parar, não parem!

Sentiu o veículo se deter. Foram oito ou nove segundos de silêncio. Sabia que haviam sido pegos. Cercados, bastaria abrir a capota de lona. Isto não viria a acontecer.

Olhou para seu marido como quem já entendia. A seguir, sobreveio o fim de uma agonia e o início de outra.

O estampido dos disparos tomou conta do ar. Fuzis e metralhadoras varreram todo o caminhão. Um balaço atingiu Noemy pelas costas, varou seu corpo chegando até seu bebê. Todos foram mortos ali na rua, naquela noite.

Era só o início do maior pogrom jamais realizado em todo mundo.

— Tá bom filha, agora está na hora. Vem se limpar da areia e vamos tomar sorvete. Tem que ser logo, se demorar muito sua mãe vai querer reclamar na hora do almoço.

O homem fere, o amor de Deus cura.

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