Foto: Wikimedia
Por: Antonio Mata
A situação geral era difícil e inspirava cuidados. A reunião, marcada sem demora, visava discutir questões de máxima urgência, dada a condição calamitosa em que todos se encontravam.
Após diversos deslocamentos na busca de um lugar de maior adequação para todos, a tão esperada condição de melhoria não se apresentou. O clima era de desilusão. Todos aguardavam em silêncio.
Por fortes e longevos que fossem, acostumados a dominar os demais por onde passassem, percebiam com preocupação a presença e ampliação de cenários difíceis. Orgulhosos e decididos, encontravam dificuldades em se adaptar àquelas mudanças extremadas.
Tais mudanças pareciam ter tomado conta do seu mundo de uma forma tão intensa quanto permanente. Parecia não querer passar, seu mundo desistira de voltar, de ser o que era antes. Por onde passavam era a mesma desolação, o mesmo medo, a mesma fome.
A verdade inegável é que não havia mais alimento para todos aqueles predadores e todos os seus rebentos, tão famintos quanto eles, a ponto de os mais velhos e mais fortes devorarem os próprios filhotes. Era o exercício da lei da sobrevivência pura e simplesmente.
Seus corpos já começavam a se ressentir da falta de umidade, enquanto seus habitats se tornavam possas de lama, até começarem a petrificar. Os peixes desapareciam, as caças se evadiam. O seu mundo estava secando.
Os mais fortes e capazes do grande grupo de retirantes, abandonando lagos e rios secos, haviam se reunido para buscar uma solução. Havia informações da existência de uma laguna a uma distância relativamente curta, e que poderia ser alcançada facilmente por todo o grupo.
O plano geral era muito simples e conhecido. Se apoderar da laguna, assumir o controle de suas margens e espreitar todos que se apresentassem, sedentos e desejosos de um pouco de água. Durante a noite espreitariam os últimos grandes caçadores do lugar. Durante o dia a qualquer um que se atrevesse a se aproximar daquela armadilha viva. Um dos répteis enviados ao local, retornou tendo comunicado que a laguna era habitada por uma população de quelônios, as tartarugas.
— Quero deixar bem claro que somente estou aqui por conta da grande dificuldade enfrentada. Salientou um jacaré, forte sim, mas novato e inexperiente. Os demais se puseram a ouvir seus argumentos.
— Vamos nos reunir para reconhecer e cercar todo o lago. Feito isso atacaremos as tartarugas maiores primeiro. Assim eliminaremos toda a resistência dos animais maiores, fazendo com que os mais fracos fiquem indefesos aos nossos ataques. O lago rapidamente será nosso.
A jacarezada, exultante com a brilhante estratégia apresentada pelo Novato, vibrava emitindo sucessivos grunhidos, com as bocarras abertas e repletas de dentes. Por antecipação, já se sentiam os vencedores. Grande estratégia e argumentação aquela, considerada como uma proposta irrecusável e infalível.
Um dos presentes na reunião, se vira para o Velho e pede a opinião do antigo réptil, quanto à estratégia do Novato, que tinha tudo para ser um sucesso.
Jacaré grande, o Velho, ouvia tudo com calma e senso de observação. O silêncio típico do predador que aprendeu a prestar atenção em tudo, em cada detalhe, imóvel e de olhos bem abertos. Com mais de oitenta anos, conhecia bem aquelas estiagens. E sabia que elas podem se estender por longos períodos. Quando então, a morte se aproximava perigosamente, até mesmo dos grandes e mais fortes jacarés.
Com a fala calma e grave, Velho expôs seu ponto de vista.
— Temo que esta laguna seja uma das poucas em muitos dias de viagem. Basta lembrar do tempo que passamos procurando por ela. Sendo assim, qualquer estratégia que se queira adotar precisa ter em conta três coisas. A primeira, a água está secando em todos os lugares. A segunda, com a seca da laguna vai embora a comida existente. A terceira, não sabemos quando a seca vai terminar.
A jacarezada, que a pouco tempo exultava com a grande estratégia apresentada pelo Novato, ficou de olhos mais arregalados ainda, do que de costume, ante a experiência e segurança da fala do Velho. Muitos, por uma questão de senso de sobrevivência, aceitaram sua argumentação.
Novato, orgulhoso e sentindo-se humilhado pelas objeções do Velho, que desqualificavam a estratégia que havia criado com tanta astúcia, ainda tinha uma cartada para tentar desacreditar Velho e recuperar o seu prestígio.
— Ouvi e entendi bem a voz da experiência, mas que infelizmente, já não dispõe mais da agilidade dos mais jovens, na captura da caça. Teria o Velho uma estratégia mais adequada ao grupo, incluindo aí os filhotes? Ou deveríamos todos se sentar e esperar?
Aquilo era um verdadeiro insulto, pois não estavam falando de onças ou sucuris. Estavam falando de tartarugas. O Velho olhou demoradamente o Novato insolente e completou.
— Tenho sim, meu querido e amado Novato. Respondeu o Velho ao jacaré sem noção do perigo, com a cabeça a poucos metros do Velho. Então, expôs a sua estratégia para o grupo.
— Vamos controlar a laguna, isto é certo. Vamos encurralar as tartarugas, isto também é certo. Porém, vamos atacar as menores primeiro, e aos poucos. Assim teremos comida suficiente, além de outros animais que vierem beber água nas margens do lago. Dividiremos a comida, dessa forma atenderemos também aos filhotes. Prosseguiu o Velho, com a fala mansa e segura.
— Agindo assim, preservaremos nossa caça por mais tempo. Disso nós podemos cuidar. Se a laguna secar, não haverá nada que possamos fazer, a não ser ir embora. Enquanto houver comida e água, iremos ficar, até a seca passar.
A jacarezada entendia as palavras do Velho, mas havia aqueles, que a exemplo do Novato, desejavam se fartar de tartarugas logo, enquanto estavam vivas e dentro do lago.
Discussões se seguiram, sem que se chegasse a um consenso e o grupo rachou em dois. Um grupo decidiu seguir o Velho, o outro bando, formado pelos mais jovens e atirados, preferiu acompanhar o Novato.
Apressado e faminto, o bando liderado por Novato chega à laguna. Se depara com uma cena digna de um paraíso. O paraíso dos jacarés, é claro. Milhares de quelônios nadavam livres e pacientemente nas águas do lago.
Imediatamente, Novato no seu papel de líder, põe seu plano em execução. O lago é totalmente cercado. A margem esquerda é ocupada pelos jacarés, que empurraram as tartarugas assustadas para o lado direito do lago. Uma a uma, localizaram as tartarugas maiores e passaram a atacá-las.
Já nas primeiras investidas, descobriram algo que os jacarés que seguiram na frente não haviam percebido. Estavam diante de uma colônia de tartarugas bico-de-arara, também conhecidas como cabeçudas. Se encurraladas, ainda que lentas, mas protegidas pelo casco resistente, se tornavam animais perigosos. As tartarugas maiores e mais velhas, eram também as mais corajosas, e portadoras de um bico maciço muito bem encaixado em mandíbulas poderosas. Aquele bico funcionava tal e qual um alicate de dentista.
Lutando pela própria vida, e a de seus filhos, arrancavam nacos de carne das patas dianteiras, quebravam a mandíbula dos jacarés atacantes, perfuravam seus olhos e traziam junto pedaços de ossos da abertura ocular. Vendiam muito caro suas vidas e sua laguna.
O bando do Novato rapidamente se deu conta da precipitação. O jacaré, porém, orgulhoso e tolo, não querendo se dar por vencido ordenou novos ataques. Acreditava que não resistiriam por muito tempo, o que não deixava de ser verdade. O problema todo, era o preço para se obter aquela vitória.
Que seu bando vencia a maioria dos combates, isto era fato. O grande número de ferimentos entre os jacarés mais jovens é que estava se tornando proibitivo. Quem perdeu um olho, tinha medo de partir para uma nova refrega. Quem perdeu parte da mandíbula, viu sacrificado seu principal instrumento de caça, agora fragilizado pela impossibilidade de segurar a presa com firmeza. Os que perderam pedaços de ossos das patas tinham que curar suas feridas antes de voltar ao combate. Tudo isso significava parar de comer à vontade, conforme desejavam.
Finalmente foi a vez do Novato ser agarrado pela mandíbula inferior direita. No esforço para se soltar e abocanhar a cabeçuda, partiu sua mandíbula, dando fim ao combate. Doravante teria de buscar caças mais frágeis, se quisesse comer.
O Velho chegou a tempo de assistir pessoalmente, a batalha particular do Novato, líder dos mais jovens. Ele então, mais experiente, adentrou a laguna, contornou as tartarugas maiores, e avançou. Acompanhado dos jacarés mais velhos, abocanharam as tartarugas menores, e se retiraram para comer, deixando o suficiente para os filhotes.
Em seguida ordenou a Novato e a seu bando que assumissem os últimos lugares na fila, depois dos filhotes. Doravante, o jacaré presunçoso e seu bando seriam os últimos a comer.
Sem condições de reagir e sabendo que poderiam muito bem morrer de fome, todo o bando, ferido no corpo e no orgulho, se dirigiu para o final da fila.
Moral da história:
Iniciativa é importante, mas a experiência de quem já viveu não é nada para se jogar fora.