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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A fuga

          

 

Por: Antonio Mata 

 

Bem que buscaram vencer as dificuldades no esforço e na coragem. Sem ilusões, eram todos marinheiros de primeira viagem. Sempre desejosos de que a viagem fosse a única.
 
Combinou-se então que tudo deveria ser feito sob o máximo sigilo, ao conhecimento apenas de quem estivesse diretamente envolvido com a empreitada. Naquela noite deveriam reunir uns poucos pertences. A ideia toda era partir logo no início da madrugada.
 
De fato, o projeto nasceu sob improviso, sete meses antes, reunindo a madeira disponível, uma peça por vez, além de chapas metálicas que não passavam de latas de tinta, dobradas e soldadas uma a uma. 
 
Visavam aumentar a resistência da pequena estrutura, oferecendo cintas de reforço em dois ou três pontos que envolviam o bote todo remendado. 
Os engenheiros navais, temiam que as tábuas, de diversos tipos, tamanhos e usadas, rompessem no inevitável movimento quando estivesse ao mar. O mar agitado, mais que uma certeza, era uma verdadeira agonia.
 
A bússola, o único instrumento náutico disponível, era de brinquedo, porém funcionava.
 
A embarcação por vez, havia sido projetada para conduzir oito pessoas, dois remos, água potável e algum alimento. Um mastro improvisado, com uma vela de diversos panos remendados, mais improvisada ainda, completavam o projeto. Primário de meter medo, genial no nobre propósito.
 
Em meio ao plano, surgiu a melhor das notícias. Obtiveram um motor de 125 cc, de motocicleta. A ideia era adaptá-lo para uso no barco. Sem muito conhecimento para fazê-lo, o colocariam para funcionar como um motor de rabeta, além de separar combustível para a viagem.
 
Com mais de uma semana de atraso por conta da instalação do motor, e preocupados com a segurança, com a quebra do sigilo, completaram o bote improvisado. Fixou-se o dia e a hora. Seria naquela mesma quinta-feira de ventos intensos, às 18 horas.
 
Dolores preparou uma bagagem mínima, não antes de reunir o equivalente a duas malas grandes. Não foi sem esforço que aceitou reduzir a um quinto do que havia imaginado. Umas poucas roupas, alimento e água.
 
Foi às 17 horas, de céu nublado e muito vento.
 
Chegava o aviso para todos se dirigirem a determinado ponto da praia. Deixaram seus lares aos poucos e em silêncio. Em menos de uma hora, estariam todos na praia, se afastando de Santa Cruz del Norte.
 
Ao se aproximarem do local combinado, notaram algumas cabeças aqui e ali. A primeira reação foi o frio na espinha por conta de uma delação. Seria a polícia e acabariam todos presos.
 
Contavam que todos estariam ocupados buscando se proteger do monstro que se aproximava. Houve quem começasse a se arrastar já se sentindo como gado a caminho do abatedouro. 
 
A polícia deveria estar apenas aguardando a chegada de todo o grupo. Uns e outros olhavam ao redor procurando ver se já não estariam cercados.
 
Se arrastando ou não, todos chegaram ao local, quando então puderam delinear à meia distância, algumas outras pessoas que se aproximavam também. Não havia polícia no local. A encrenca, logo após o susto, é que então descobriram que todos queriam a mesma coisa. Contou-se na ocasião, 19 pessoas adicionais, incluindo mais crianças.
 
Gomez, um dos construtores do bote, teve um ataque de histeria.
 
— Impossível! Impossível! Como levar tanta gente? Gritava sem parar, como se estivesse em um mercado. Ainda emendava a sua histeria:
 
— É suicídio premeditado!— Disparava seu palavreado encolerizado, sem perceber o escândalo que estava fazendo.
 
—  Vamos afundar com apenas uma marola, quanto mais uma onda em alto mar!
 
— Gomez cale a boca, você vai nos denunciar! Dizia Roberio, o outro construtor e sócio naquele quase suicídio.
 
A discussão se sucedia lembrando certos filmes italianos, onde ninguém se entende. Seguiam-se sucessivos pedidos para se falar baixo, antes que delatassem a todos.
 
De um lado sustentavam-se razões técnicas para se manter apenas os oito passageiros já previstos no plano. Espaço físico; deslocamento; velocidade; segurança; ondas; ventos, escuridão; água; comida. Era preciso demover os demais de seu intento e dar o fora dali rápido, pois os demais poderiam se tornar delatores em potencial.
 
Do outro lado, aspectos políticos e humanitários, tudo já conhecido, e pior, tudo verdadeiro. Além de muito desespero justificavam o embarque no suicídio encomendado.
 
O entrevero, entre sussurros e meia voz, prosseguiu por mais uns cinco ou sete minutos, até chegarem a uma decisão. Partiriam 15 pessoas, incluindo 4 crianças, em um bote reconhecidamente perigoso, frágil e pequeno.
 
Desolação
Como começou esta história? Diferentemente de outros ofícios que se viram beneficiados com o advento do turismo nas ilhas, Roberio desde garoto aprendera a trabalhar com capotaria acompanhando seu pai.
 
A lógica era muito simples. Ganhava em pesos cubanos para reformar bancos de automóveis, mas também sofás e poltronas, quando havia serviço. 
 
Um proprietário, com seus bancos reformados em vermelho carmim, em seu Ford 55, branco conversível, de aros cromados, recebia em dólares. Algo como vinte vezes mais. 
 
Até uma pequena gorjeta era o suficiente para pagar os serviços de Roberio. Não bastasse isto, começou a faltar comida regularmente, e para além do habitual. Havia sim, para quem pudesse pagar em dólar. Podia encontrar fácil o arroz. Bastava pagar 2,35 dólares o quilo.
 
Assim, via-se fora das oportunidades de melhoria, com isto se arrastando desde o seu nascimento em julho de 1980. Não possuía amizades influentes no governo, não teve acesso a uma melhor formação, o que ainda assim teria contribuído muito pouco para uma mudança real. 
 
Contudo, Dolores e o casal de filhos, de nove e sete anos estavam com ele. Seus filhos já sentiam a falta de leite e cereais. A escassez de alimentos rondava a pequena família sem que pudesse oferecer mudanças mínimas.
 
Gomez, um soldador, não teve sorte diferente. Em comum com Roberio, apenas o desejo de deixar a ilha. Perdera a esposa com complicações de parto e a criança não sobreviveu. 
 
Decidiu prosseguir sozinho. Taciturno e distante, não tinha nada que o prendesse onde se encontrava. Só não sabia se deter em suas crises de ansiedade. Daí os escândalos. Muito péssimo para quem precisava guardar segredos.
 
Foi o beco sem saída em que suas vidas se transformaram que passou a impulsionar os desejos daqueles homens.
 
Preparativos
Haviam feito uma tentativa em agosto daquele ano, porém o bote vazou água e tiveram que escondê-lo rapidamente. Descobriram a tempo um problema de calafetagem que poderia ter condenado a todos. Suspenderam a partida e resolveram verificar tudo de novo. Roberio buscava tranquilizar os demais.
 
— Mais estopa e cola, é só isso que precisa. Não se encontrou outros defeitos, é só isso.
 
A ideia era partir três dias depois, o que também não aconteceu, pela presença de uma patrulha de polícia que se estendeu até tarde da noite circulando pela praia e imediações.
 
— Estão no nosso encalço, eu sabia. Devem estar reunindo depoimentos. Logo irão nos delatar. — Choramingava Gomez.
 
— Você contou para alguém?
 
— É claro que não!
 
— Então ninguém sabe de nada. Vamos deixar tudo como está. O bote permanece escondido. Só o buscaremos quando tivermos certeza de que podemos partir.
 
Logo no início haviam pensado em cinco pessoas no bote, um número ótimo, pois haveria mais espaço, pensavam. Basicamente a família de Roberio e Gomez. Porém, o medroso Gomez não estava de todo equivocado. 
 
Seu irmão, Ezequiel, se deu conta de uma movimentação diferente, e passou a implorar para ir junto levando a mulher e uma filha de doze anos. Se viram meio sem saída. 
 
Desapontar Ezequiel, que já havia se dado conta do que estava acontecendo, poderia se tornar proibitivo. Resolveram fazer pequenas mudanças para acomodá-los. Foi assim que surgiu o sexto, o sétimo e o oitavo passageiro.
 
Ezequiel, preocupado com o andamento da situação, conversava com Roberio quanto às chances de sucesso na viagem, perigosa por si só.
 
— Estamos em agosto, o que vale dizer que entramos na temporada dos furacões desde o mês passado. Isto cria uma complicação adicional. E este barco tão cheio de gente. Você não acha? Talvez fosse o caso de uma pequena mudança.
 
— Uma pequena mudança? Ah, é claro. A temporada de furacões prossegue até novembro. O que acha de partirmos em dezembro? O que acha de fazermos isto na noite de ano novo?
 
— Isto é sério Robério. Não vai querer expor a sua própria família. Você mulher e filhos. O que acha de uma pequena mudança... — Antes que pudesse concluir foi interpelado por Roberio.
 
— Quanto mais se estende a permanência na ilha, maior a chance de sermos descobertos. Do jeito que está, meus filhos já passam fome. Se formos pegos, seremos todos presos e depois, iremos todos para o final da fila, quando já não houver mais nada.
 
Ezequiel calou-se.
 
Afastou-se do local, sabia que a sugestão de Ezequiel, não era viável. Entretanto, a fala do homem lhe fez pensar em outras dimensões ligadas à mesma questão. Foi caminhar um pouco, e ao escurecer, sentou-se na praia olhando para o mar que se perdia em escuridão com o pôr do sol. Um furacão, seu avô lhe contara a  história de um furacão, na realidade dois deles.
 
Um destes monstros havia visitado Cuba em outubro de 1910, destruindo tudo, levando milhares de pessoas ao desabrigo e matando pelo menos uma centena delas. 
 
Outro monstro vindo do oceano foi o Furacão de Novembro de 1932, conhecido como o Furacão de Santa Cruz do Sul. Atingiu Cuba na altura da província de Camaguey, com ventos de 240 km/h, provocando marés de tempestade.
 
Estas marés, por efeito da baixa pressão no centro do furacão, as águas são recolhidas das praias, parecendo secar. Não secaram não, foram levadas às alturas e depois arremessadas violentamente por sobre as terras. Atravessou a ilha arrasando casas, homens e animais.
 
Um furacão em 1910, há 107 anos atrás, e outro em 1932, haviam se passado 85 anos. Então era verdade, eram perigosos, destruidores, levando um flagelo por onde passavam, e mais uma coisa. Eram relativamente raros.
 
Raramente tocavam a ilha, ainda que fossem mortais quando o faziam. Fora isso, o clima era de muito calor, entremeado de chuvas intensas.
E se houvesse um jeito de fazer um desses trabalhar a seu favor? Isto é, caso aparecesse.
 
Acreditava ser burrice esperar dezembro, como Ezequiel havia sugerido. Melhor seria sair o mais breve possível. De qualquer modo o mês de agosto estava caminhando para os seus últimos dias por conta da presença da polícia que deteve seus movimentos. 
 
Ao que parecia, não estavam no encalço dele e de seu grupo. Assim poderia aguardar que se afastassem para outra área, e então poderiam deixar a praia mais tranquilos.
 
Em 17 de agosto iniciou-se o desenvolvimento de um furacão, porém dirigiu-se para o mar do Caribe, para Yucatán, no México e depois para o estado do Texas, nos EUA, onde matou dezenas de pessoas. Este foi o furacão Harvey, e ainda não era o furacão esperado por Roberio.
 
Os últimos dias de agosto se passaram entre a vontade de se lançar ao mar e o medo de serem pegos. Bom ou ruim, chegou-se ao dia 02 de setembro.
 
Pelo rádio dava-se conta de que um furacão esteve se formando por volta do dia 30 de agosto, a 650km do litoral africano, nas proximidades do arquipélago de Cabo Verde. O movimento então passava a ser monitorado. Alimentado pelo calor das faixas tropicais e pelas águas quentes do oceano, no início de setembro já havia iniciado a travessia do oceano Atlântico rumo ao Caribe. 
 
Somente haveria um alerta de furacão quando tivessem certeza de sua potência e de seu deslocamento.
 
Procurou Gomez para conversar e expôs o seu plano.
 
— Já ouviu o rádio? Tem um furacão cruzando o Atlântico, e pode muito bem chegar por aqui.
 
— Um furacão? É piada, você disse um furacão?
 
— É lógico que é um furacão. E é tudo muito simples. É claro que tem suas complicações, mas pode muito bem dar certo.
 
— O que você tem em mente fazer?
 
— Vamos acompanhar o noticiário pelo rádio, para sabermos se realmente está se aproximando. Uma vez confirmado isto, saberemos do dia de sua chegada.
 
— Sim, e daí?
 
— E daí, que logo antes da sua chegada, nós entraremos no mar e iremos embora.
 
— Deixa ver se eu entendi. Você está dizendo que nós vamos sair daqui oito pessoas dentro de um bote, com um furacão enfiado no rabo? Acertei, eu ouvi direito, é isso mesmo?
 
— É isso mesmo, você acertou.
 
— Enlouqueceu? Esqueceu que Dolores e os meninos estarão no bote?
 
— Não esqueci de nada. Presta atenção.
 
— Quando o furacão se aproximar daqui ele passará a ser o centro das atenções. Vão estar todos muito ocupados se preparando para sua chegada. É quando então saímos. Nos deslocamos na direção de Florida Keys, 150 km à frente. Acredito que possamos chegar pela manhã, logo após a partida, com o furacão logo atrás. Isto vale dizer que em Florida Keys estarão igualmente ocupados esperando o furacão. Será a nossa melhor chance. Não estarão preocupados com imigrantes.
 
Gomez ouvia aquela história de gente perturbada e não se convencia de jeito nenhum. Começava a desacreditar das chances de que tudo pudesse dar realmente certo.
 
— Os mais antigos contam que o furacão de 32 varreu o centro da ilha de Cuba com enxurradas e muito vento, atravessando de um canto a outro. Como acha que poderá sobreviver em Florida Keys? Aquilo vai encher d’água. Seremos atirados para o outro lado daquelas ilhotas pelo vento. Não dá, este é o pior plano que já ouvi até hoje.
 
— Também andei conversando com os anciãos. O que pude levantar é que esse negócio de preparatório para enfrentar a chegada de um furacão, tem lá sua razão de ser.— Deteve-se por um instante, e então concluiu.
 
— O uso de tapumes nas janelas. As casas construídas com a quina para o vento predominante nestes casos. Construções mais sólidas, feitas para não serem demolidas. Reserva de água, reserva de comida. Pilhas, lanternas, ter um rádio à mão para saber o que se passa. Se puder sair da frente dele, saia. Se não puder, se prepare para ele. Muita gente sobrevive assim.
 
Gomez ouvia com ar de desconfiança.
 
— Espero que você tenha razão. E quanto ao mar? O estreito da Florida já é traiçoeiro por si só. Os pescadores falam das correntes que podem inclusive te levar para mais longe do continente.
 
— Teremos de enfrentar Gomez, termos que enfrentar. Não vejo outra saída. Logo teremos que fazer isto. Muitos já fizeram.
 
Quanto a isto, Gomez sabia que teriam de fazer algo. O problema todo era o risco imenso da proposta de Roberio. Lançar-se ao mar em um barco meio que improvisado. 
 
Precisavam ainda encarar as ondas em mar alto; as concentrações de tubarões; as correntes que os puxariam para fora da rota; manter-se afastados do furacão que irá persegui-los implacavelmente. 
Além dessa perseguição, tinha o alvo, a meta daquela loucura toda. Chegar em Florida Keys, ilhas rasas, pequenas e muito expostas. Nunca tinha visto tantas chances para morrer reunidas de uma vez só.
 
O arquipélago das Florida Keys, constitui uma faixa com mais de 1600 ilhas que começam a 25km do litoral de Miami e avançam em arco para o Sul-sudoeste, depois seguindo para Oeste, na direção do Golfo do México. 
 
São as terras norte-americanas mais próximas de Cuba, e as mais vigiadas também. Não bastasse isso, o arquipélago recebe a maior quantidade de furacões de todo o mundo. 
 
Parece que fizeram até de propósito. Para os cubanos desistirem só em pensar. Só as razões de Gomez seriam suficientes para afundar o barquinho, antes de sair do barracão onde estava escondido.
 
Outros elementos envolvidos? Fome, desespero, loucura. Bem, Cuba possuía mais de 11,3 milhões de habitantes em 2016. Como o bote de Roberio só comportava oito, caso Gomez ou mais alguém, porventura desistissem, completar as vagas não seria propriamente um problema. Muitos pensavam como Roberio e Dolores. Queriam ir embora de qualquer jeito.
 
Dia 03 de setembro, o furacão continua seu deslocamento pelo oceano Atlântico, se aproximando da região do Caribe. Por ora, é o que se podia informar. Roberio, Dolores, Gomez e Ezequiel cuidam de seus afazeres normais. Era preciso manter a normalidade pelo maior tempo possível. Nada de caras de preocupação ou temor. Até ali as coisas iam bem. 
 
Roberio não achava que a polícia voltaria a incomodar, tão logo houvesse o alerta de furacão. Neste ponto estava tranquilo e acreditava que poderiam ganhar o mar com relativa facilidade.
 
Chega o dia 04 de setembro, e com ele o Alerta de Furacão. O furacão Irma estava a 900Km das pequenas Antilhas, no Caribe, se deslocando a 22 km/h, com velocidade dos ventos de 195 km/h, com força de categoria 3. O alerta se estendia às pequenas Antilhas e Porto Rico.
 
A categoria do furacão informa a sua força destrutiva. A categoria 3 indica ventos acima de 177 km/h, até 208 km/h. Ondas acima de 2,7 a 3,2 metros acima do normal e pressão barométrica entre 945 e 964 milibares. Quanto menor a pressão barométrica, mais água poderá ser sugada para o olho do furacão. É este fenômeno que nos litorais provoca as praias secas, pela retirada das águas.
 
Uma certa apreensão tomava conta do grupo de imigrantes ilegais. A presença do Irma no Caribe, avisava que, provavelmente, a hora de partir estaria próxima.
 
Dolores e Roberio apenas aguardavam em silêncio o tempo passar. Tudo já estava pronto a vários dias. Ezequiel, depois da empolgação inicial, também aguardava em silêncio.
 
Dia 05 de setembro, uma segunda-feira, se aproximava das ilhas do Sotavento, nas pequenas Antilhas e por volta das 07:45h da manhã, hora local, o Irma adquiriu a categoria 5, a mais destrutiva dentre os furacões, com ventos de quase 300 km/h.
 
Foi como categoria 5 que na madrugada do dia 6, numa terça-feira, seguindo para o norte, devastou a porção norte da ilha de Barbuda, próximo a Porto Rico, com um fenômeno conhecido como landfall, um aguaceiro despejado sobre a terra, vindo do mar.
 
O alerta de furacão, tão esperado por Roberio, é dado em Cuba. O Irma estava indo para o norte e noroeste. Agora precisavam estabelecer o horário de saída para o mar.
 
O início 
O plano de doido concebido por Roberio, consistia em avançar na direção das Florida Keys, cruzando o Estreito da Florida, com o Irma em suas costas. Se fosse muito na frente, seriam descobertos pelas patrulhas norte-americanas, nos céus e no mar.
 
Havia ainda o problema de serem facilmente localizados em terra, se chegassem muito cedo, com bom tempo.
 
Se ficassem próximos demais do Irma seriam tragados por ele. Além disso, precisavam de algum tempo e tinham de torcer para encontrar abrigo na área de Florida Keys, no ponto onde porventura desembarcassem.
 
O Estreito da Florida recebe a corrente marinha do mesmo nome. Uma corrente quente que corre de oeste para leste, a 3,6 nós (cerca de 6,5 km/h), depois fazendo nordeste e norte até o Litoral do estado da Florida. 
 
Uma característica é que ela muda de direção na medida em que se afasta de Cuba e se aproxima das Florida Keys, assumindo uma forma lenticular, seguindo primeiro para leste e depois volta para oeste, próximo às ilhas. 
 
Em setembro, recebe ventos predominantes soprando de noroeste-norte para sudeste-este, com velocidades que podem chegar a 18 nós (cerca de 32 km/h).
 
Roberio tinha em mente estes dados básicos para conduzir sua travessia de 150 km. Sua preocupação estava com a agitação das águas e a possibilidade de serem desviados para o leste em demasia o que significaria mais tempo no mar. 
 
Ter de ficar a meia distância do furacão é que era um grande tormento. Afinal, que meia distância era essa?
 
Dia 07 de setembro, o Irma alcança a ilha de São Martinho, às 08 horas local, e às 13 horas alcança as ilhas Virgens Britânicas, oferecendo sucessivos landfalls, empurrados por ventos intensos e arrasando estes paraísos turísticos.
 
Roberio e Gomez acompanham pelo rádio as informações a respeito do deslocamento do furacão Irma. Em algum momento,  o furacão poderá se afastar, ou se deslocará na direção de Cuba, com Florida Keys logo em seguida. Mesmo assim, isto não é uma certeza, porém um palpite com chances de acerto.
 
É mais uma das variáveis sobre a qual os homens não possuem nenhum controle. O sonho de chegar nos EUA sem serem vistos, naquele momento de espera, parecia cobrar um ônus brutal, tendo pela frente um estreito com 1800 metros de profundidade. 
 
Dia 08 de setembro, uma quinta-feira, o Irma chega nas Bahamas, na madrugada, por volta das duas horas, hora local, fazendo novos landfalls. Roberio presta atenção no mapa em suas mãos. Sabe que a hora está chegando.
 
O Irma está nas ilhas Bahamas, a este-nordeste de Santa Cruz del Norte. Florida Keys está na sua frente. Gomez, que acabara de chegar, olha para o mapa, e em um apupo de realidade se dirige ao amigo.
 
— Nós vamos morrer.
 
— Ainda não. Vamos aguardar o melhor momento para sairmos.
 
O amanhecer se dá por volta das 07:30h na ilha. Logo todos estariam cuidando de reforçar suas medidas de segurança para não terem suas casas destruídas. É uma espécie de loteria, nunca se sabe o que vai ficar de pé. 
 
Roberio alerta a todos para estarem prontos, pois assim que os ventos aumentarem de velocidade deverão seguir para o ponto de encontro na praia. Supõe que, ante a proximidade do furacão, o céu estará mais escuro, o que ajudará a ocultar o barco, que chegará por último. 
 
Se estivesse tudo muito tranquilo a partir desse horário e adiante, poderia significar que o furacão já partiu para a Florida, e o plano então se perdeu. 
 
Teriam que refazer tudo. Ainda considerava a possibilidade de seguir para a Florida, atrás do furacão, pois escurece às 20h. não faziam a menor ideia de como estaria o estreito sob estas condições.
 
O bote nunca tinha sido posto no mar, com exceção do dia em que vazou água, em agosto. Receosos de levá-lo para a praia sem testá-lo novamente, fizeram a operação contrária, ali mesmo onde o bote estava escondido. Encheram o bote com água e ficaram procurando vazamentos pelo lado de fora. Dessa vez, não apareceu nenhum.
 
Por volta das 17 horas o vento começou a soprar com mais intensidade. Era o aviso. Roberio chama a todos para estarem na praia às 18 horas. Roberio revê o que chamava de meia distância. Sua referência era início de ventos fortes. Supunha que o furacão estaria de cinco a seis horas do local da observação.
 
Contaria com a vela e um pequeno motor improvisado para vencer os 150km de Cuba até Key West. Na realidade, seria mais de 150 km, pois teria dificuldade para manter a direção norte, uma linha reta até as ilhas. Talvez fossem 200km, talvez fosse muito mais, e muito mais duvidoso.
 
No ponto de encontro havia 27 pessoas no total para viajar, quando deveriam ser apenas oito. A confusão tomou conta do por alguns instantes. Parecia que tudo iria se perder ali mesmo.
 
O entrevero, entre sussurros e meia voz, prosseguiu por mais uns cinco ou sete minutos, até chegarem a uma decisão. Partiriam 15 pessoas, incluindo 4 crianças, em um bote reconhecidamente perigoso, frágil e pequeno.
 
Às 18:20 todos os quinze selecionados, ingressaram no barco de suas vidas. O céu era cinzento, de aspecto carregado. Ventos fortes indicavam mar agitado. Temerosos, puseram-se a caminho de Florida Keys.
 
Roberio levantou a vela e começaram a ser empurrados na direção das ilhas. Logo perceberia a dificuldade em cuidar da vela com o vento variando de direção, e soprando cada vez mais forte.
 
— Você sabe manusear isso e fazer navegar?— Era Gomez quem perguntava.
 
— Não faz pergunta besta Gomez, agora estou ocupado! E agora, também já não adianta mais.
 
Tinha em mente cruzar o estreito em no máximo 15 horas. Contudo, não adiantava ter pressa. Precisava chegar com mal tempo para que não fossem descobertos.
 
De todo modo, as variáveis não estavam, nem nunca estiveram sob o seu controle. Irma estava a poucas horas de Cuba, contudo, tanto poderia se aproximar quanto seguir direto para a Florida.
 
Era tudo muito simples e terrivelmente perigoso. Se Roberio e Gomez planejaram cruzar o estreito em 15 horas, e ele possui 150 km, é só fazer este cálculo trágico. O Irma avançava a 24 km/h. Se o furacão avançasse diretamente sobre a Florida, iria envolvê-los pelo meio do caminho. Se pensaram nisso, bem, naquele momento, já não importava mais.
 
Primeira hora de navegação em mar aberto e soprando muita espuma sobre o bote desprotegido. É fácil entender por que os modernos escaleres de sobrevivência são vedados por dentro, lembrando cápsulas.
 
Navegando com vento  de este-sudeste, e em condições de controlar a única vela, o barco avança a cerca de 14 nós ( 26 km/h). Os homens não sabem, mas estão avançando mais rapidamente que o furacão, muito menos dispunham de qualquer dispositivo que lhes permitisse calcular a velocidade do deslocamento. 
 
Ainda existia outro problema que poderá sacrificar os planos de se chegar na Florida. Se os ventos aumentarem de velocidade, o mastro improvisado não irá suportar por muito tempo. 
 
O mastro  já dava mostras de que poderia partir a qualquer momento. Roberio e Gomez apenas arriscavam, abusando de toda sorte que pudessem ter. Não faziam a menor ideia do grau do risco assumido. 
 
Com duas horas no mar notaram que o mau tempo estava enfraquecendo. Roberio entendeu que era hora de diminuir a velocidade. Prendeu-se parcialmente a vela. 
 
O bote reduziu a velocidade e lentamente avançavam, porém, permitindo que a tormenta se aproximasse mais uma vez. Às 20 horas já era noite escura. Prosseguiriam tirando proveito da escuridão por mais algumas horas. Consistia no exercício da ação descrita por Gomes como: com um furacão enfiado no rabo. Não podiam se afastar demais e facilitar serem descobertos.
 
Em parte, Roberio e Gomez tinham razão. 
 
Por volta das 23 horas local, o Irma reduzido a categoria 4, chegou a Cuba, com ventos de 205 km/h. Promovendo grande devastação na ilha, rompendo com o ciclo de relativa calmaria desde 1932. 
 
Por um pequeno rádio, Gomez soubera do ocorrido. Tudo o que podiam deduzir, era que a corrida dos desesperados iria prosseguir conforme planejado. Já estavam no mar a oito horas, em mar agitado, acreditando faltar sete horas para começarem a enxergar a fila de ilhotas de Florida Keys.
 
Por volta das 05 horas do dia 09 de setembro, sexta-feira, o mar estava agitado, entretanto os ventos haviam diminuído. Resolvem continuar confiando que o furacão viria logo atrás deles.
 
Ignoravam o que se passava em Cuba, e mal tinham tempo para pensar nisso, mas Santa Cruz del Norte teve apenas perdas materiais, porém sem mortes.
 
Às seis horas, Roberio resolve deter o barco. O mar prosseguia agitado, porém sem indicações da aproximação do Irma. Logo iria amanhecer. Sem a cobertura de nuvens e a promessa de um furacão, ficariam expostos à observação.
 
O dia amanheceu com o mar relativamente calmo e céu encoberto, sem que com isso prejudicasse a observação das patrulhas norte-americanas. Com o vento soprando de noroeste-norte, com o barco à deriva, mas sustentando a direção norte, permaneceram expostos por toda a manhã e noite do dia 09 de setembro. Bastaria um único avistamento das patrulhas. Seriam recolhidos e deportados de volta a Cuba.
 
A manhã do dia 10, sábado, lá pelas sete horas, se deu sem maiores mudanças, mantendo o risco de serem encontrados. Por volta das nove horas local, o mar passa a ficar mais agitado, com o vento mudando de direção. É o aviso, Irma está por perto.
 
Reiniciaram a marcha rumo à Florida com a barquinho cheio de gente molhada e enjoada, suplicando pela chegada às ilhas. Não sabiam propriamente a localização do barco no estreito.
 
Desistem da vela e a corrida final será com o motor improvisado, impulsionando o bote a 16 nós (30 km/h), com uma contribuição substancial por conta da mudança do vento, que agora soprava em suas costas, na direção da Flórida.
 
Bastou avançar por uma hora, e o tempo pareceu acalmar. Detêm o bote mais uma vez aguardando a tempestade. É quando entendem que estavam se deslocando mais rápido que o furacão. Continuavam sem saber se estavam próximos da Florida ou não.
 
A ansiedade e o cansaço, aliados a angústia da espera, começava a cobrar seu preço. O desespero era visível em cada olhar. Todos já entendiam o óbvio. Precisavam estar próximos da Florida.
 
Logo o mar se agita, os ventos sopram forte com chuva. Com qualquer vasilha que tivessem à mão, lutam para manter o barco flutuando. Roberio o sustentava na direção norte a meia velocidade, buscando manter-se no caminho, porém tempestuoso.
 
Ao meio-dia o mar se agitava violentamente, com chuva e ventos fortes. Tornou a acelerar o motor para abrir distância, às cegas. O barco prossegue no mar agitado, buscando algum alívio daquele cenário, pois o naufrágio parecia ser o palpite mais certeiro, por conta de toda a fragilidade do conjunto.
 
Em meio a agitação do mar, Dolores principia a gritar:
 
— Terra, eu vi terra! Lá, eu vi terra!
 
Sem condições de comemorar, porém as palavras de Dolores fazem surgir novas forças no grupo de imigrantes ilegais. Podem muito bem, estar próximos de seu intento.
 
Robério mantém o motor acelerado, enquanto o contorno parcial da ilha, no meio da tormenta, se torna mais visível. O plano era o mais simples possível. Avançar controlando o barco para que pudesse arremessá-lo e encalhar na praia. Ainda precisava delinear uma praia. Se fosse algum monte pedregoso, morreriam todos ali mesmo. 
 
Nunca estivera naquelas ilhas, sabia o mínimo possível, de ouvir dizer. Informações sobre o arquipélago de Florida Keys, sua geografia, sua disposição e instalações eram censuradas. Seriam um convite à fuga. Quem quisesse, que se matasse na ignorância.
 
Avançava obcecado pela necessidade de encalhar seu barco. Vislumbrou a praia próxima, esta a melhor das notícias. Todos enxergam a praia, já bem próxima. De súbito ocorre uma pancada, um som oco. Não sabem do que se trata.
 
Olha para a praia e para a água que invade o barco.
 
— Vamos prosseguir, estamos muito perto!
 
Maria, uma das passageiras só selecionada na hora da partida, retirou seu abrigo molhado, dobrou a peça várias vezes, colocou sobre a abertura no casco, de uns 40 cm, e sentou-se de joelhos sobre ele fazendo pressão.
 
Com o motor oferecendo velocidade máxima, procurou diminuir ao máximo a distância entre sua gente e a praia. As ondas contribuem impulsionando o bote adiante.
 
Basta que as águas alcancem o pequeno motor, ou o bote inunde de vez, o que acontecer primeiro, e estarão no mar tempestuoso, homens, mulheres e crianças, a maioria sem saber nadar. Cada segundo conta para a esperança de um encalhe, o impacto que os salvaria do naufrágio sob as ondas.
O encalhe nunca chegou, não aconteceu.
 
Grita aos demais para que desçam e caminhem para a praia. Entre ondas, muita chuva e ventos, lutam por chegar em terra.
 
O bote começa a ser coberto pelas águas. Gomez salta para dentro d’água e percebe que podia ficar de pé, com água na altura do queixo de um mar agitado, próximos da arrebentação. Pega Pedrito e o suspende nos braços, mantendo-o fora das águas, enquanto procura saltar e seguir adiante.
 
Uma onda mais forte encobre os náufragos. Muitos desequilibram e afundam. Por estarem próximos da praia, sobrevém o refluxo, puxando-os de volta para o mar. Nova queda e novo mergulho. Tão próximos, e tão longe. 
 
Gomez, se livrando das ondas aqui, afundando ali. Cambaleante chega à praia, deixa Pedrito no areal e retorna ao barco, que já não se vê mais.  
 
A situação se repete no meio do aguaceiro. Robério ao saltar havia agarrado Ana Luiza, a mais velha dos dois filhos. Dolores puxou o filho mais novo para perto de si e saltou na água por entre as ondas. Enquanto Roberio caminha rumo à praia, outros fazem o mesmo. deixa sua filha em segurança e volta para buscar mais alguém. Não vê Dolores por perto. Recolhe Maria, quase desfalecida. Deixa-a na praia e retorna depressa, gritando por Dolores e o menino. 
 
— Dolores, Dolores, Hernán! Dolores, Hernán!
 
Continua gritando, sem obter resposta alguma.
 
Um dos homens que chegara à praia corre até Roberio.
 
— Temos que sair daqui o vento está aumentando. É o furacão, precisamos encontrar abrigo já!
 
Olha para o mar desolado. Pouco se enxerga. Há um grupo com ele, contudo sabe que não estão todos ali. Dentre as crianças, só restava Ana Luiza e Pedrito . Deixam o local à procura de abrigo. 
 
A aventura, o plano de doido, a fuga, ainda não havia terminado.
 
Deixam a praia açoitados de vento e areia, que agora machucam. Não há tempo para pensar muito em quem ficou para trás. Poderiam simplesmente serem os próximos. Precisavam de abrigo urgentemente. O momento era um daqueles hiatos, uma daquelas situações em que não se fazia nenhuma ideia do que poderia acontecer. A ordem era correr, achar abrigo, lutar pela vida e continuar lutando.
 
O furacão não tarda e vem para varrer a ilhota. Já fez isso antes, e vai fazer e fazer. Irma, só contava a sua própria história.
 
Cruzam uma estrada e correm na direção de um casario que aparecia à meia distância. Se aproximam do lugar. Gritam, chamam, gritam de novo. O barulho da ventania abafava suas vozes. Esmurravam as portas, as janelas. Tudo vedado no lugar. Procuram novamente, por uma, duas, três. As habitações se sucedem como que inertes, sem que pudessem encontrar onde se esconder da tormenta.
 
Todos exaustos e em pânico. Roberio os reúne por trás de uma das casas. Manda que se abaixem. E assim amontoados no chão, expostos ao tempo monstruoso, os prepara a vivenciar o inevitável, o fim da aventura, do plano de doido, do desespero, da fuga. Sem Dolores, sem Hernán. Abraça Ana Luiza, que chora baixinho. Chora só para si. Ninguém a houve naquela tormenta.
 
Permanecer, ficar, terminar ali. É assim, então era isso? Tanta coisa havia acontecido até chegarem ali, para se encolher no chão. Aguardar a morte. Flertou com a morte, na ilha, no mar, na praia. Agora de novo, mais uma vez. Flertou com um furacão. Infeliz, confiado, abestado e abusado. Foi quem os trouxe até ali para morrer. Indigentes em uma terra que desconheciam. 
 
O último argumento. Pede a Deus pelos seus, por aqueles que ainda vivem, e se prepara para o que já sabia que iria acontecer...
 
Mãos fortes e nervosas o sacodem e o puxam. Grita com eles para que o acompanhem. Aponta para a casa logo ao lado e corre adiante seguido pelos demais. Não sem dificuldade, em meio à ventania e muita chuva, alcançam a entrada.
 
O homem entra e tranca tudo.
 
— A casa mais parece um cofre! Fui eu que a fiz, vamos torcer para que resista. Ele ainda está sobre o mar. Nunca teria alcançado vocês se já estivesse aqui.
 
Foi quando percebeu que, de fato, as casas haviam sido construídas de quina para os ventos mais intensos. O lado mais provável de se receber um furacão.
 
O homem comentou que era toda em concreto. A habitação tinha sido feita para durar e para resistir. Achava a ideia estranha. Não seria melhor sair dali? Aquele país era tão grande.
 
Em sua ilha, as pessoas se protegiam como possível, já que não havia para onde ir, e muito menos todo aquele concreto. Não para a sua família. O furacão chega,  varre a ilha e isso é tudo. Se sobreviver, ótimo. Depois ele volta e varre tudo de novo.
 
Filho de cubanos, Henrique nascera nos EUA,  anos atrás. Com o aviso de furacão, levou a mulher e a filha mais nova, que vivia com eles, para o continente em lugar mais seguro. 
 
— Certamente que pretendia ficar com elas. De repente lembrei-me de uma maleta que manuseara dias antes, e que havia deixado na garagem. Deveria ter deixado dentro de casa, mas o tempo passa e a gente começa a esquecer das coisas.— Prosseguiu com sua fala. O ambiente interno isolava em parte o som tenebroso do vento lá fora.
 
— Só tem coisas velhas naquela maleta. Além de antigas fotografias que contam a história da família e dos parentes daqui e de lá da ilha, de onde meus pais vieram. Estive lá uma vez, com meu pai. Foi há muito tempo. Não quis perder a maleta, por isso voltei. Com os ventos aumentando, entendi que não poderia cruzar a estrada até o continente. Foi quando vi vocês se juntando atrás da casa do vizinho. Lá também ficou vazio.
 
Roberio achou graça de como o salvador de todos eles apareceu naquele momento crítico. Que coisa..., pensava.
 
Irma finalmente chegou e varreu as Florida Keys. O landfall mais uma vez envolveu a terra. Dentro do cofre de Henrique estavam seguros. Entrou um pouco de água, mas isso foi tudo. O cortejo de ventos, nuvens, aguaceiros e trovoadas, assustadores e perigosos, como sempre foi. Veio, varreu, dissipou e se foi.
 
Henrique lhes ofereceu a pouca hospitalidade de que dispunha por conta da situação. Não permitiu que deixassem a casa. Depois de alguns contatos, dois dias depois arranjou um furgão e os  conduziu até Miami, onde conseguiu ajuda. 
 
Um certo Barack Obama havia acabado com a política dos pés secos, pés molhados, que deportava quem fosse encontrado e resgatado sobre o mar, mas permitia a imigração de quem alcançasse as terras norte-americanas. O então presidente dos Estados Unidos fizera isto meses antes. Assim, cubanos poderiam ser deportados a qualquer momento, como qualquer outro imigrante ilegal.
 
Dia sem nuvens, de sol radiante. Da janela, pela cortina, observava o mar logo ao lado. Dolores, Ana Luiza, Gomez, Ezequiel  e mais cinco pessoas haviam ficado lá. Os corpos dos quatro homens, duas crianças e três mulheres, somente  seriam encontrados dias depois. Menos Dolores, cujo corpo nunca foi localizado.
                                                             FIM

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