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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A fuga

Por: Antonio Mata

O deserto é cruel, o futuro é incerto e amargo. O estupro, uma sombra que lhe acompanha. Para o deportado só a fome e a morte. Quando chegaram, só pensou em correr, desaparecer dali. Último alento, instinto amargo de vida. Da cabeça não sai. 

Pensativa e fustigada pelos acontecimentos que não eram diários não. Só aquela sucessão espalhada. Marcas que ficaram e eram então constantes como algo que não passa. Foram se amontoando de tanto que se via. 

Muito para rever, achar um possível erro, uma dificuldade. Tanta coisa se passou. Como querer lembrar agora? Queria mesmo acreditar em tal coisa? Ora, nunca desejou estar longe ou ausente, muito menos fez isso. 

O mais novo tinha completado 38 anos, o outro 41. Homens feitos cuidando de suas vidas, optaram por fazer isso de modo distante, desapegado. Sem lembranças, sem datas, sem lugares nem pessoas, sem nada. 

Lá se vão 16 anos de contatos esporádicos, cada vez mais impessoais e isolados. Há um vazio que fere mais que a distância física. Então, um marco, mais um naquela sucessão. Lauro faleceu fazia quatro anos. Era cardíaco e era esperado. Deveria ter sido um momento de união.

Augusto foi ao funeral do pai. Permaneceu por dois dias e depois se foi. Alegou razões de trabalho.  Leandro, o mais velho, tinha deixado o país e não compareceu. Conversou com a mãe e o irmão na mesma e única ligação. 

A casa vazia, muito cedo ainda, pensava. Como se todos tivessem desistido do lugar. Vinte e dois anos não foram suficientes para construir laços duradouros. Sentava-se na sala olhando para o vazio. Por mais que quisesse, France não entendia.

O entardecer, o anoitecer, o olhar que não divisava nada. Não vê razão, ela não vem lhe contar.

A maré da história, o vai e vem das ondas humanas. Muitos se encontraram para fazer grandes nações. Elas estão nos livros e ensinam nas escolas. Na maré da história humana, os fragmentos, as minorias, nem sempre.

A população, em condição já miserável e em marcha forçada, era tangida rumo ao interior da Anatólia. Sem destino definido, sem proteção, sem alimento ou medicamentos.

Corria o ano de 1920, o outrora poderoso Império Otomano, se esfacelava após a derrota na Primeira Grande Guerra. As minorias étnicas cristãs, espalhadas pelo império, deveriam ser conduzidas ao interior nas chamadas marchas da morte.

O ataque às minorias, organizados por autoridades turcas, atingiram principalmente armênios e gregos. Estes, sofreram sucessivas ondas de perseguição e extermínio, a partir de 1915.

Grupos de cavaleiros armados espreitavam estas marchas humanas no intuito de saquear o pouco que ainda lhes restava. Além de sequestrar e escravizar mulheres e crianças.

Encontraram um desses grupos de miseráveis, serpenteando no fundo de um vale. Apearam seus animais contra a população, desbaratando a coluna sem nenhuma proteção ou armamento. Espadas e fuzis eliminavam os idosos e as crianças menores.

Em meio ao desespero, uma mulher ainda jovem conduzia duas crianças. Tão famintas e assustadas quanto ela própria. Procurando escapar de seus captores que se aproximavam a galope, solta as mãos pequenas das duas crianças. O medo e o pavor estão estampados em seus rostos.

— Mamãe, mamãe, espera a gente! Mamãe, espera, espera!

A maré da história é repleta de ecos. Estes se transportam para outras dimensões, onde vivem. São ecos de memória. Uma espécie de lodo que insiste em encobrir tudo. A maré da história é repleta de lodo, que só o perdão é capaz de superar.

Porém, as mãos continuam cheias de pedras.

  

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