Foto: Andre Benz
Por: Antonio Mata
A beleza da noite, por entre sombras e quietudes, em todos os tempos, por todos os lugares, sempre se fez presente, mas somente para aqueles que tivessem olhos de ver.
Acordou sem nenhum desassossego. No quarto escuro, levantou-se e acendeu um pequeno abajur. Sentia vontade de sair dali, era um desejo de ver as coisas lá fora, respirar e sentir os ares que circulavam na noite.
Dirigiu-se até a pequena varanda. Foi rápido que se deixou levar pelas cores e odores do momento e do lugar. Privilégio de quem reside praticamente ao lado de uma floresta, podendo avistar suas sombras do alto, e que ao escurecer libera seu perfume. Acomodou-se em uma cadeira de embalar, já sem nenhuma vontade de dormir.
Ao redor o ar estava fresco e úmido, com o céu parcialmente nublado. Aqui e ali, uma e outra estrela deixa passar seu brilho. “Deve estar fazendo 23 graus”, pensa, o vento é agradável. Na correria da vida, as pessoas se ajeitam dentro de casa, a ponto de não se perceber como a noite também é bonita. Como possui significados que nos é particularmente atraente. Não é nenhum despropósito acreditar que a astronomia, a geografia, em seus primórdios, começaram com homens apreciando os céus por puro sentimento de contemplação.
Dúzias de condicionadores estão ligados sem nenhuma necessidade. Fora de casa está mais confortável do que dentro. A noite é agradável, e, acredite se quiser, tem alguém soltando pipa. O brinquedo faz seu bailado, gingando de um lado para o outro, enquanto ganha altura. Não demora, aparece outra. Imagina ser por causa das férias.
Lembra então, que incontáveis noites na vida havia passado assim. Acordado pela obrigação de trabalho, e sempre prestando atenção no céu, mas, satisfeito com o silêncio, o frescor, e a pouca luz. A noite, provida de bons pensamentos e sentimentos, é graciosa e bem-vinda.
Pensava consigo mesmo, “Isso não é interessante? O bem-estar não é caro, demorado nem exigente. É a pessoa que o reconhece, se permite envolver, e finalmente o aceita”.
Este é o espírito do amanhecer, o favorito dos pássaros, do crepúsculo nas cidades, tão barulhento com milhares de veículos a caminho de casa, e ainda da noite, o escurecer das cores e das formas. A contemplação nunca foi, e nem nunca será, coisa de mentes desocupadas e vazias.
A apenas duas quadras dali outro pensamento emerge das sombras, anseia por elas, se corrompe com elas, se perde nelas e, covarde, nelas se oculta e se esconde. Esgueira-se sorrateiro pelos cantos na busca, pela mediocridade de sua alma, empurrada por aquela coletânea de sentimentos mesquinhos que tanto escravizam incontáveis espíritos, que doentes e atormentados, vagam pelas noites.
Ocultos, aguardavam em silêncio pelo seu melhor momento de agir. Madrugada alta, chegado o momento, avançam rumo à terceira quadra. Ligeiros se aproximam, olham para um lado e para outro. O primeiro se apoia no segundo, sobe no muro e puxa o comparsa para cima. Saltam na lateral do quintal, ante a ausência de cães, ou qualquer dispositivo de alerta. Tudo já havia sido observado e verificado.
A porta dos fundos é frágil, com fechadura comum, porém, provida de grades, o que desincentivava a entrada pelos fundos. Não era sem propósito a escolha do local, com poucas pessoas e pouca segurança. A escolha, ao se observar o telhado, se fazia mais ou menos óbvia. Muito comum naquelas bandas, as casas providas de forro, um acabamento barato, mas frágil, anunciavam a fragilidade física do lugar.
A casa simples, de dois quartos em conjunto residencial, daquelas que o casal, jovem ainda, adquire e passa anos oferecendo reformas e ampliações, na medida em que a família cresce. Com o tempo, e à mercê do bom gosto de cada um, assume ares de habitação arejada e confortável.
Fora anos, quando não, o trabalho de décadas. Quando os filhos crescem, e tomam as estradas da vida, o lugar se torna grande e desconfortavelmente vazio. O casal já não sabe mais o que fazer com tanto espaço, e nem tem mais a energia para fazê-lo.
A dupla de homens perturbados, cegados por mãos invisíveis e severas que os mantinham em uma sintonia de quase escravidão, havia passado o mês inteiro, apenas vagando e observando as moradias daquela área, na esperança de encontrarem o que procuravam.
Não bastasse o trabalho que dava, ainda teriam de chamar um terceiro, um motorista com veículo, suficientemente grande para entulhar com tudo o que se pudesse jogar lá dentro.
A quietude singela da noite prosseguia. Da varanda, era possível contar o pequeno punhado de estrelas que eventualmente aparecia na lenta e permanente caminhada das nuvens. Tudo é convidativo, harmonioso e bem-vindo.
Até os insetos da noite resolveram dar trégua, se é que não haviam perdido seu espaço ao trabalho incansável da miríade de passarinhos, estabelecidos nas vizinhanças, caçando implacavelmente qualquer coisa pequena que se mova entre a terra e o ar.
No céu, a terceira pipa já subia para o seu bailado. Não sem propósito, fizeram pipas brancas, ou de cores bem claras, para facilitar a brincadeira. Vamos aos fatos, garotos de férias da escola, cheios de restrições de movimento por conta de contaminações e doenças. É muito tempo ocioso, e muito tempo dentro de casa. Vão arranjar o que fazer, não é?
Se poderia dizer que naquela escuridão, ainda que a iluminação pública e os reflexos da cidade ofereçam alguma claridade, estas foram concebidas para iluminar para baixo, e as pipas estão no alto. Sendo assim a brincadeira envolve o gosto pelas pipas. Os combates no afã de cortar a linha dos demais, se tornaria um encontro meio que às cegas na escuridão, e de resultados sem nenhum controle.
Na esquina ao final da terceira quadra, que na realidade delimitava o ponto extremo do conjunto e o início de antiga invasão, um botequim tão antigo quanto, ainda estava aberto. Aquele tipo de estabelecimento, que na sua versão atualizada, tinha cerveja; cachaça; refrigerante; sabonete; biscoito, e até Melhoral infantil, para citar alguns.
Como janeiro é tempo de férias nas escolas, e férias coletivas nas empresas, o proprietário resolveu ficar aberto até a madrugada, para a alegria dos bebuns, que sempre davam um jeito de aparecer. Naquela ocasião havia quatro deles, além do dono do estabelecimento.
O botequim ficava na esquina da rua, já dentro da invasão, o que deixava o estabelecimento com visão parcial de quem descesse a última rua do conjunto residencial.
Conversar amenidades, e aqueles assuntos que, costumeiramente, ninguém sabe de nada a fundo. Quatro cabeças, quatro verdades, era uma discussão inútil. Toda vez, a história toda terminava em empate, sem ninguém convencer ninguém. Depois todos davam um jeito de achar o caminho de volta para casa.
A dupla de afeiçoados com o encardido, havia completado o seu levantamento de residências merecedoras de um assalto. Identificaram três em boas condições. Chamou-lhes a atenção uma delas, que por ser grande e de bom acabamento, sugeria que poderia ter muito a se recolher, e quem sabe, muitos objetos de valor.
Era detalhe muito importante, já que os receptadores de furtos, sempre pagam uma miséria sob a alegação do risco elevado que a atividade encerra. Acredite se quiser, os dois ladrões também eram explorados. Mundo difícil, pensa.
Por ser habitada por um casal de idosos, sem outros moradores, isto transformou a casa em um alvo preferencial. As medidas de segurança eram muito limitadas, o que atraía cada vez mais a dupla de bandidos. Mal compreenderiam eles a sua condição de semiescravidão, quanto mais os episódios que o futuro imediato traria, lhes mostrando como se constrói uma condição de total escravidão.
O momento combinado havia chegado. Os homens armados com revólveres, pularam o muro na lateral posterior, dando acesso aos fundos rapidamente. Um deles, agarrado no madeirame da área de serviço, subiu até o telhado. Pelo acompanhamento feito, divisava ficar sobre a sala da casa, identificada lá fora, na fachada, pela porta principal com o janelão ao lado.
Caminhando sobre o telhado, tal e qual um felino, buscava um ponto frágil que facilitasse o acesso. Lá embaixo, seu comparsa ficara na vigília, esperando que o casal fosse dominado, para então chamar pelo celular o terceiro elemento e abrirem a porta, completando a invasão e o assalto.
A sombra, orgulhosa, acredita poder preponderar por sobre todas as coisas. Mal poderiam imaginar que, nos imbróglios da Terra, outras forças mais atuantes, e nunca ausentes, enviesam as situações planejadas de tal modo a desmantelar os mais bem engendrados planos.
Enquanto aguardava que o seu comparsa entrasse pelo forro e saltasse direto sobre a sala, resolveu passar uma vista rápida nos fundos da casa, prestando atenção em algo que pudesse carregar para o carro quando este chegasse. Ou aquela situação, em que pessoas deixam as chaves da casa guardadas do lado de fora. Saiu remexendo tudo, ao se aproximar da porta com grades, girou a maçaneta da porta.
O que se seguiu foi o tilintar agudo de uma caneca de aço estampado, tocando o chão e acordando meio mundo com aquela barulhada. Os velhinhos desamparados, agora estavam acordados. Na mão, o idoso portava uma pistola automática com treze cartuchos.
Quem com ferro fere, com ferro será ferido, é a universal e divina Lei do Retorno, ou Lei de Causa e Efeito, exatamente como Pedro foi levado a aprender em outro momento difícil. O planejamento humano começava a dar para trás.
O meliante em cima do telhado, ao invés de surpreender, foi pego de surpresa, e corria pesadamente buscando descer do telhado e sair dali. Era evidente demais, “deu ruim”.
No afã de descer fazia barulho em demasia, o que motivou três disparos para o alto. Ainda sob o impacto da surpresa, e agora dos disparos, saltou do alto do telhado. Na queda feriu o joelho, e mancando buscava chegar na frente da casa, e saltar o pequeno muro que o separava da rua.
Foi seguido pelo comparsa que, inteiro e mais ágil, saltou na frente e desceu a rua correndo. O comparsa ferido chegou à rua, porém, o morador de pistola em punho emergiu da casa e ganhou a rua. Não era o idoso que era ágil, era ele que estava bastante ferido.
Desceram a rua correndo, com o bandido ferido ficando cada vez mais para trás. Sem conseguir se afastar do velho, virava-se e atirava a esmo.
Ante ao espanto reinante, provocado pelo estampido dos disparos, o dono do bar armou-se de um revólver e se dirigiu à porta disposto a impedir que entrassem no seu estabelecimento. O medo, a insegurança e a loucura do momento, fez com que dois dos bebuns se levantassem e ficassem juntos do dono do bar, sem, no entanto, ninguém sair à rua. Só se aguardava o que apareceria no momento seguinte.
Isto não demorou muito. O que o dono do botequim divisou foi um homem de arma em punho correndo na sua direção. A cinco ou seis metros um do outro, com o fugitivo levantando a arma na direção dos ocupantes do bar, iniciou-se um tiroteio que não duraria três segundos.
No alto da rua, o morador, em resposta aos disparos feitos pelo bandido manco, atirou seis vezes à curta distância um do outro. Todo o episódio, do momento em que os bandidos ganham a rua e descem correndo, ao momento em que ocorre o tiroteio na porta do botequim, e o idoso responde ao fogo do bandido ferido, e em fuga, se passaram não mais que doze segundos.
No ímpeto da corrida, o corpo do meliante se precipitou na direção do bar. No chão do estabelecimento, agora jaziam dois corpos sem vida. O bandido em fuga atirou quatro vezes, e o dono do bar, da sua posição estática, e esperando o eventual ataque, disparou três vezes.
Entre o meio da quadra e o final da rua, jazem três corpos. Um, no meio da rua, sobre o asfalto, e outros dois dentro do botequim. O cenário da madrugada se consumou e se exauriu. As portas da vizinhança trancadas, ninguém saiu, ninguém viu nada.
Para aqueles que partiram, a verdadeira escravidão está prestes a começar. Para quem ficou, a Lei foi plantada. Faze o bem e terás o bem, pratique o mal e terás o que plantou.
Os garotos, nas imediações, assustados com aquele alvoroço imprevisível e todos aqueles estampidos em meio a escuridão, recolheram rapidamente suas pipas e foram tratar de dormir. O que começou com o anúncio de boas brincadeiras, terminou de modo perturbador. Nem assim dava para brincar.
Duas quadras acima, a contemplação do presente de Deus sob a forma de nuvens e estrelas no meio da madrugada, ar fresco e uma apreciável quietude, foi interrompida pelos disparos na rua.
Elevou o pensamento em oração, e pediu pelos bestializados da Terra, cegos demais para enxergar sua Augusta presença. Por aqueles que se perderam nas andanças da vida, às vezes tão difíceis, porém, sempre necessárias. E pelos estropiados da mente, incapazes de compreender a natureza que nos cerca. Levantou-se, dirigiu-se ao quarto e retornou a dormir.