Foto: Silas Baisch
Por: Antonio Mata
Tomou uma chuveirada por ali mesmo, junto a um quiosque que oferecia o banho público. Tinha ido bater uma bolinha, como lhe era de costume, com os amigos da praia.
De camiseta sobre o ombro, retornava para casa na companhia de Eliel, que se não fosse pela época e lugar, poder-se-ia dizer tratar-se do seu fiel escudeiro, tamanha a afinidade entre os dois. Superada apenas pelo jeito meio mandão de Fernando. Aquele tipo de coisa que com o tempo, só serve para corroer a paciência dos amigos e mais nada.
Pouco mais velho, Fernando ainda tinha aquela coisa de se achar o mais capaz, e o mais esperto. A despeito das bobagens que dizia de vez em quando, pior quando fazia.
Presunção à parte, também possuía seus receios e seus medos, principalmente quando lhe chegavam sob a forma de sonhos, ou senão pesadelos, que eventualmente lhe ocorriam. Os quais tinha real dificuldade para compreender.
— Cara, aconteceu nessa última noite.
Contava a Eliel, enquanto caminhavam de volta para casa. Fernando morava em um prédio próximo à casa de Eliel.
— Aconteceu o quê? Indagava o amigo.
— Estava correndo pelo calçadão, de manhã bem cedo. O sol mal tinha surgido no horizonte.
— Ah, isto sim é um sonho legal. Dizia Eliel.
— Peraí, está só começando, e tem mais. Então prosseguiu.
— Com o sol subindo aos poucos, e o dia clareando, me dei conta de que alguma coisa, parecia estar errada.
Parou por um instante.
— Continuava caminhando e toda vez que eu olhava para o sol se elevando, a impressão que me dava é que o mar estava fora do lugar.
— Caraca, Fernando! Mar fora do lugar. Você bebeu, ou foi teu sonho que pegou pesado agora?
— Peraí, ainda tem mais.
— Tá legal, conta aí.
— Notei uma coisa que me incomodou. Desde garoto que venho à praia, e eu sempre trago uma camiseta. Normalmente venho vestido com ela. Faço isso há muito tempo. Tem outra coisa.
— Vai, diz aí.
— Cara, eu só ando calçado. Tenho que vir de sandália, tênis, regata, qualquer coisa. não suporto sair pela rua descalço.
— É, estou sabendo, já deu pra notar. E o que que isto tem a ver com o sonho?
— Foi aí que eu fiquei cismado. Enquanto estava correndo pelo calçadão, me dei conta de que estava descalço. E o piso cara, era frio, muito frio. Levei a mão até o peito, e percebi que estava sem camiseta. Não tinha trazido nada para calçar, e nem a camiseta, coisa que nunca esqueço.
Parou mais um instante.
— Não é brincadeira não. Aquilo tudo, o chão frio, estar descalço, e sem camisa. Estava tudo errado. Me deu um calafrio medonho, que eu não sabia de onde vinha.
Eliel foi ficando curioso.
— E aí, o que foi que houve? Chega de suspense e conta logo.
E Fernando contou.
— Me virei e fiquei de frente para o mar. Foi aí que compreendi por que o mar estava fora do lugar. É que uma onda subia tanto, mas subia tanto, que quase encobria o sol.
— Nossa, agora ferrou! E aí? Conta o resto.
— O céu já estava iluminado, já era dia. A onda continuou subindo e cobriu o sol por detrás dela. Minha cabeça parecia perdida, não sabia mais o que pensar. Vi a água se recolher da praia, e a onda só crescia o tempo todo.
Parou novamente.
— Vi então que havia mais pessoas no calçadão. Eu apontava para aquela onda enorme, na frente do sol. Eu apontava e mostrava para eles, para que prestassem atenção no mar. As pessoas olhavam, e depois se viravam para mim, com cara de quem não estava entendendo nada.
Nova parada.
— Foi quando me dei conta de outra coisa. Não é que a onda estivesse subindo não, é que ela já estava ali, perto da gente, prestes a arrebentar, e era descomunal. De um canto a outro, ela escondeu o horizonte. Só se enxergava aquele paredão de mar.
Eliel, bem que procurava entender o sonho de seu amigo.
— Pô cara, tanta gente sonha com alma, com fantasma, vampiro. Não teria sido melhor? Esse teu pesadelo tá demais. Agora, meu amigo, deu medo. Já pensou se essa doideira vira verdade?
— Deu medo, deu medo? Fiquei petrificado sem saber o que fazer, minhas pernas pareciam presas naquele chão frio, e eu sem camisa.
— E aí, como terminou?
— Aí acordei todo molhado de suor, e não dormi o resto da noite. O que você acha disso tudo?
— Olha, não é minha praia não. Mas, se tivesse que dizer alguma coisa, meio que no chute, eu diria que, de alguma forma, tem alguma coisa que poderá muito bem te pegar de surpresa. Meio que desprevenido, sabe? Digo isso, pelo fato de você aparecer descalço, e sem ter levado uma camiseta, coisa que nunca deixa de fazer.
— É cara, que sonho mais esquisito.
— Tá legal, Fernando, depois você vê alguém que interprete melhor esse teu sonho. Quem sabe não acrescentam mais alguma coisa?
— É sim, pode ser.
Os dias passaram, transformados em semanas, que terminaram se tornando meses. Um bimestre, um trimestre, um semestre, da coisa que virou esquecimento, e não se sonhou mais. Aquilo que não se julga relevante, a própria mente já trata de dar sumiço.
Dias mornos de manhãs tropicais, que deveriam encantar qualquer um, e encantam.
Deixou a mulher e os dois filhos pequenos ainda dormindo. Antes do sol nascer, se pôs rapidamente a caminho. A ideia era bem usual. Cruzar os 2300 metros de calçadão, ida e volta. Como já fizera outras tantas vezes, enquanto o sol se levantava. Daí, era só dar um mergulho, uma chuveirada, e voltar para casa. Por essa hora, o café já deveria estar na mesa. Tomava um café ligeiro, e partia para o trabalho.
Desceu rápido pela escadaria. Não quis aguardar o elevador. Bastariam quinze minutos e estaria lá, no lugar da sua paixão matinal. Iniciou sua corrida a passos firmes, enquanto o sol surgia no horizonte. Passaram-se dez minutos, vinte minutos depois.
O céu já clareando, olha para o céu e para o mar. Subiu mais uma vez, aquela viva impressão de que alguma coisa estava fora do lugar. Ele para, vira-se de frente para o mar, com o sol nascendo ao fundo.
Entendeu muito rápido dessa vez. Era o sol que parecia estar baixando, retornando. Era evidente que não se tratava disso. O mar é que estava subindo.
Viu as águas recuarem na praia. Sentiu os pés frios, e então se deu conta de que viera para correr descalço. O frio subiu-lhe a espinha ao se notar sem a camiseta. Se achava nu.
Como fora tão idiota, a ponto de sair de casa daquele jeito? Por que fez algo que detestava tanto?
Viu o paredão d’água subir à sua frente, e se pôs a gritar para um pequeno punhado de pessoas, caminhando ou correndo ali, como ele. Ninguém entendeu nada. Por mais que procurasse alertar as pessoas, elas enxergavam tudo, no entanto pareciam não acreditar no que viam.
A onda gigante, bela, assustadora e perigosa, porque destruidora, estava logo ali, Tsunami prestes a cair sobre suas cabeças. Desistiram de uma reação, e apenas assistiam.