Foto : Wikimedia Commons
Por : Antonio Mata
Existem certas seres com certeza chamados de “monstros do rio”. Isto por conta da sua reconhecida ferocidade; astúcia; força e grande velocidade.
Dentro de suas principais características e em seu habitat, seriam praticamente imbatíveis. Todavia, por mais instintivo que um animal possa ser, nem sempre a ação se dá conforme a natureza ensinada, na casa dos milênios de experiência.
Olhos bem abertos, atitude silenciosa, misturando-se com os núcleos e os padrões do lugar. A cabeça quase toda oculta e o corpo totalmente sob as águas. Isto, enquanto a cauda se enrosca firmemente em uma tora submersa.
O corpo relaxado, ainda assim em posição. Pronto para ser projetado à frente em uma velocidade estupenda. Pode se passar uma hora; duas; três; o dia todo. Ficará assim, imóvel, até sentir a aproximação de sua presa.
Já se caminhava para o final da tarde, sol de quase 17 horas. A barriga vazia roncava e cobrava seu atendimento, aquela espera que não parecia querer terminar. Nada de novo tolerado. Não é aquele lado do rio. Começava a duvidar da sua astúcia milenar, pois saber escolher o local camuflado da tocaia, é fundamental, já que se precisa comer. Não acreditava que pudesse ser enganado.
Até que finalmente pude sentir uma vibração diferente na água escura que corria mansamente. Algo como um movimento meio agitado, como quem brinca na água. Estabeleceu que a presa teria de uns doze a até quinze quilos.
Nada mal, podendo ser uma ariranha se divertindo, ou um jacaretinga em seu passeio. Se prepare e aguarde. Pensou consigo mesmo: “Isto vai ser fácil e rápido”.
Em um movimento aéreo, se lança adiante como um elástico, que se enrola à presa, puxando-a violentamente para o fundo e para baixo. Quando vê aquele bicho bem de perto, é quando se dá conta do seu equívoco.
— Opa! Esse bicho é um filhote de boto!
Era sim, um filhote de boto, daqueles cor de rosa. Um bebê muito bonito por sinal.
Antes que pudesse espatifar os ossinhos nervosos e macios do bebê, teve que pensar mais rapidamente do que o seu salto certeiro.
O que mais poderia vir atrás de um lindo boto bebê?
Resposta: Papai, mamãe, titia, titio, vovó, vovô, irmãos, primos e amigos. Todo mundo, uma reunião familiar fluvial.
Então, antes que o filhote pudesse se machucar, tratou de soltá-lo. Foi um movimento de elástico duplo. Puxou e depois devolveu. Apesar do seu esforço em querer consertar as coisas, deu-se tudo igualmente, muito rápido. Antes até que pudesse pensar em sumir dali, aquele lugar.
O pai do bebê rosadinho, sua mãe e o tio já estavam em volta do caçador esfomeado. Com os demais já se aproximando para fazer círculos. Nunca tinha presenciado essa história de círculos propriamente, no entanto já tinha escutado falar. E aquilo não era indicação de coisa boa.
— Por que você puxou o bebê? Perguntava o boto pai, com cara de poucos amigos.
— Mil perdões meu amigo. Foi só um acidente. — Sucuri que presa o próprio couro, não bota banca em uma roda de botos.
— Como é que é? Você está comendo o meu bebê por acidente?
— Não! De jeito nenhum! Eu nem gosto de bebês. É uma carne mole demais.
— Como é que é? Você tá chamando o meu bebê de carne mole, carne que não presta?
— Não! De jeito nenhum! Na verdade, são tão bonitinhos, tão rosadinhos. — Fazia o que podia para evitar a situação e sumir logo dali, de preferência com o seu couro no lugar.
— Então, são gostosinhos? — Dizia a mãe do boto bebê.
— É são fofinhos, gostosinhos. — Dizia a sucuri. Até se dar conta da besteira.
— Não! Não são não, são fortes, são valentes! — A sucuri tentava consertar tudo mais uma vez. Mas, já era tarde.
Os botos reunidos apertaram o círculo para cima da sucuri, que serpenteou dali mais que depressa. Buscava refugiar-se em terra, mas era puxado de volta para o rio pelos botos com os dentes agarrados em sua cauda.
Em desespero de causa, fez o impensável. Aquilo que só faz sentido no exercício da defesa da própria vida. Serpenteou-se mais uma vez e mergulhou na direção do grande rio de águas escuras, nadando para longe em meio ao rio.
Para quê? O imbróglio todo é que os botos são ótimos nadadores. Agora, no meio do rio, estavam em seu estado natural. Deslizavam rapidamente na direção da grande serpente, mordendo e lhe dando fortes estocadas pelo corpo com o focinho.
— Chega pra cá seu rastejante. Elástico de anta! Hoje você vai entrar no cacete!
Procurava escapar, ziguezagueando com vigor para ganhar velocidade. Tudo inútil, conseguiam alcançá-lo em seguida. E ainda se revezavam. Enquanto um acertava suas costelas com o focinho e davam-lhe trombadas com o corpo, o outro se adiantava e esperava para começar tudo de novo.
A serpente buscava a superfície para poder respirar, aparecia sempre alguém para lhe agarrar a ponta da cauda com os dentes e lhe aplicar mais um caldo. Daqueles de uns vinte ou trinta metros de profundidade, rumo ao leito do rio. Quanto mais a sucuri tentava escapar, mais apanhava, da mamãe; do papai; da titia; do titio; da vovó; do vovô e de todo mundo que aparecesse na sua frente.
Cheio de hematomas, com várias costelas quebradas e semiafogado, finalmente conseguiu colocar o focinho e a cabeça para fora d'água. O espírito do rastejante estava a um passo de abandonar aquele pobre corpo. Que dia ruim aquele.
A uns trinta ou quarenta metros da margem oposta, a família de botos se deu por satisfeita e abandonou aquilo que já havia se transformado em uma espécie de brinquedo, deixando que nadasse, lentamente e exausto até a margem. Foram todos embora sem olhar para trás.
Chegando à margem, o “monstro do rio”, famoso pela ferocidade; astúcia; força e grande velocidade, recolheu-se à terra e sumiu na mata. Com fome, humilhado e todo quebrado.