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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

A vida ensina

                                                                          

                                                                                                                                Foto: Nel_Botha-NZ

Por: Antonio Mata

Caminha com calma, olhos e ouvidos bem abertos, a despeito da limitação de visão. As narinas a sentir os cheiros trazidos pelo vento. Se coloca à meia distância da beira do rio. Entre ele e o canal, os demais se aproximam para matar a sede na manhã de mais um dia quente.

Recebe o apoio de outros integrantes do grupo para montarem uma espécie de cordão defensivo. É o tamanho e a força que mantêm longe as alcateias de leões, sempre a espreitar a pequena manada por onde ela avance.

O metro e meio de envergadura dos chifres do Cara Pintada impressionava até o mais valente dos leões. Pego de jeito, pode custar um aleijão, ou ainda costelas quebradas, o que na savana significa a morte. Até o rei leão precisa preservar a própria vida.

No estilo dos búfalos africanos, a fala se repete várias vezes para que todos ouçam e atendam.

— Beber água, beber água, beber água. Chama e orienta Cara Pintada. Logo, machos e fêmeas que lideram o bando, estão repetindo o mesmo chamamento.

— Beber água, beber água, beber água, ...

— Tá bom, todo mundo já entendeu! Grita um macho mais novo, se arriscando ante os líderes da manada.

— Vamos todos beber água e depois iremos embora. Tá combinado assim?

Cara pintada, Jacinta, Caolho, Mariazinha, olham para o jovem macho, e depois uns para os outros, estranhando aquele comportamento de um subordinado mais abusado.

Cara pintada,  traz no rosto as manchas brancas, comuns nos búfalos de mais idade, como que anunciando que os quinze, ou dezesseis anos de vida de um bubalino das savanas, estão chegando ao fim.

Caolho, assim chamado por ter perdido um olho na luta contra um guepardo. É pouco mais novo que Cara pintada, e junto ao seu séquito de fêmeas e filhos, acompanha o búfalo mais velho e mais forte para formar a manada.

Jacinta e Mariazinha, as fêmeas de mais idade, mas também as mais experientes, dividem com os machos a liderança da manada. Comando este que  é efetivamente respeitado.

Foi Jacinta quem rompeu a tensão e o silêncio.

— Moço, temos uma missão, e dessa vez é só para você.

Clarindo, o jovem macho, ficou todo satisfeito com a repentina e exclusiva missão. Orgulhoso até se babar todo, empertigou-se e perguntou aos maiorais:

— Só para mim? Nossa, adorei isso! Qual é a minha missão? Estou todo pronto, podem dizer!

— Está bem moço, lá vai. Ouça e aprenda.

— Beber água, beber água, beber água, beber água. Repetiam os maiorais da manada para aquele macho atrevido e insubordinado.

— Já estou indo, já estou indo, já estou indo! Que saco!

Posto a caminho do rio, Clarindo agora se vê diante do desafio de todos os dias de sua existência. Seu aprendizado, suas experiências, a agilidade e atenção vão se somar para assegurar a mais difícil missão de qualquer búfalo das savanas, a manutenção da vida. Isto em um momento crítico para todos os animais, o ato de beber água.

— Afasta um pouco minha gente, tá chegando a hora do papai aqui se refrescar. Com calma agora, que eu tô passando. Não liga não que vou desocupar logo, eu não demoro.

Jitha, uma jovem fêmea, olha para Clarindo com ar de desdém.

— Clarindo, tem hora que você parece um perfeito idiota.

O jovem barulhento, muito pouco interessado em ofensas, já tinha a resposta na ponta da língua.

— Jitha, tem horas que pareço um belo e forte búfalo africano, com chifres de fazer inveja a qualquer um, e 900 quilos para jogar em cima dos pobres leõezinhos.

Esnobe e meio palhaço, chega a vez de Clarindo matar a sede, se aproximando, observando tudo, atento ao menor som e às sombras que possam se mover dentro do rio, na água bem na sua frente. Tudo tem significado, nada pode ser despercebido. O pisoteio dos outros animais na beirada, e o movimento na água faz turvar o líquido e dificulta enxergar qualquer coisa. É um momento de extrema fragilidade. A agitação e o nervosismo entre os búfalos na beira do rio são sinais claros.

Os olhos de pouca visão estão bem abertos, os ouvidos, meio que prejudicados pelo vai e vem, e o pisoteio reinante nas proximidades do rio. Clarindo se abaixa para sugar a água tão necessária àquela manhã.

Mais alguns instantes e tudo se completará. De estômago cheio d´água, mais uma missão de sobrevivência cumprida pelo jovem aspirante a macho alfa do bando.

Satisfeito, já se preparava para se afastar da beira do rio quando do meio da água meio barrenta emerge, com a velocidade de um raio, a bocarra toda aberta de um crocodilo. A boca enorme repleta de dentes se aproximando, o salto eletrizante  de Clarindo para cima e para trás. É tudo absolutamente repentino, traumático e veloz. Todos sabem o que está ali, mas todos têm de beber.

Seu corpo se afasta quase que à mesma velocidade com que aquele amontoado de dentes, feitos para agarrar e perfurar, buscando o focinho de Clarindo, todo o seu rosto, ou as patas, é só dar uma chance.

É a brutal fração de segundo que define a vida e enumera os mortos. A lição foi bem aprendida? Seus cascos estavam firmes no chão, o suficiente para jogar para trás aqueles trezentos quilos do rapagão barulhento? Recolheu a cabeça enquanto se afastava no salto? Pelo menos saltou a tempo de buscar se salvar, ou ficou lesando na frente de um crocodilo, igual a um bezerro inocente esperando para ser devorado?

Caiu de pé a dois metros para trás, com o crocodilo saindo do rio e tentando abocanhá-lo de vez. No impulso da queda já atira o corpo para a sua direita, empurrado pelas fortes pernas traseiras. As patas dianteiras já tocam o solo com firmeza e arremessam o búfalo à frente. Crocodilo pode ser desajeitado, mas não é burro. Sabe que não pode alcançar o búfalo dessa forma. Se insistir, será chifrado e pisoteado pelo bando enfurecido, até a morte.

Clarindo, repleto de adrenalina, de boca aberta e olhos esbugalhados, entre assustado e aterrorizado, presta atenção em Jitha que assistiu tudo calmamente, e pergunta:

— Viu só aquilo Jitha? Viu aquela bocarra? Foi terrível!

— Não estou ouvindo. Respondeu Jitha.

— Como não está ouvindo? Estou bem aqui.

— Fique quieto meu bem. Mortos não falam.

As outras fêmeas se divertem com a fala de Jitha.

— Vai se ferrar Jitha, vai curtir com a cara de outro!

Arrasado pela zombaria de Jitha, Clarindo se afasta cabisbaixo e humilhado com a brincadeira daquela fêmea antipática.

— Tá se achando muita coisa. Um dia ainda pega um crocodilo pela frente, aí eu vou querer ver.

Com a manada satisfeita de água, os líderes começam a chamar todos de volta.

— Voltar para o campo, voltar para o campo, voltar para o campo. Repetem todos e o tempo todo. É uma vida conduzida em grupo.

Seja para Clarindo, Jitha, ou qualquer outro animal jovem da manada, o fato é que ainda há muito o que se aprender para não sacrificar a vida tão tolamente, entre os dentes de seus perseguidores.

O tempo prossegue com os mais jovens sempre crescendo e atestando a grande capacidade de sobrevivência daqueles animais enormes e perigosos, mesmo para leões e crocodilos, submetidos a investidas repentinas em socorro aos búfalos capturados, quando estes animais pesadões deixavam bem claro o risco que era ficar no seu caminho.

A natureza não dá saltos, porém, mecanismos Divinos atentam a tudo o que se passa no campo vibracional dos seres da Criação. A vida é um fenômeno de natureza evolutiva, e a evolução deixa invisíveis marcas vibracionais.

Havia chovido bastante naquela estação, e a relva crescia por todo o campo. A manada se apresentava para pastar às primeiras horas do dia, aproveitando o frescor da manhã, cheia de cores, odores, e um vento suave. Esquema de defesa montado, com os maiorais nas extremidades e os mais jovens e os filhotes no meio.

Impulsionado pela relva fresca e farta, avançam campo adentro. Jitha, aproveita para se fartar também, sem se dar conta de que estava se afastando da manada e do cordão defensivo. Os búfalos maiores, pastando também, não prestaram atenção em Jitha que se isolava cada vez mais.

Leões e guepardos, são animais de tocaia, de espreita. Não se pode acreditar que não estão por perto. Sempre estão e sempre estarão por perto. Os felinos, com almofadas nas patas, se deslocam sem fazer barulho, e se colocam contra o vento, de preferência contra o sol para as vítimas.

Assim, tirando proveito do silêncio, da falta de odor para alertar os búfalos e com o sol para prejudicar mais ainda a visão dos bubalinos, que já é por si só ruim, asseguram ótimas chances de sucesso, amparados na surpresa, na velocidade e na força. É um conjunto de fatores exigente, mas quando se manifestam podem se mostrar fatais.

Uma touceira após a outra, três leões se apresentam silenciosamente para acompanhar a jovem Jitha que pastava, cada vez mais solitária. Prestando atenção à distância da manada, para assegurar um ataque eficiente, os leões se preparam para o ataque furtivo.

Foi o vento, maroto, que achou de mudar de direção, como quem oferece um último alento da natureza naquela realidade repleta de dentes. Mas, naquele caso, já era tarde. São aqueles dentes afiados que se agarram fortemente no alto do pescoço, na cauda e em uma das pernas de Jitha. Os 300 quilos de Jitha poderão ser arrastados e devorados em paz, assim pensam seus captores, felizes com o sucesso da empreitada rápida, silenciosa e sinistra.

Só que havia aquele vento soprando ao contrário. O cheiro foi logo percebido pela manada que prestava atenção de onde estaria vindo. É Clarindo que também sente o cheiro, e ainda que enxergando com dificuldade, percebe a massa negra estirada no chão com aqueles animais amarelados por cima.

— São leões, são leões, são leões! Gritava o búfalo sem parar, e sem saber direito quem era, instintivamente investe na direção da alcateia de leões.

Ao chegar mais perto pôde ver o corpo ensanguentado de Jitha. Investe com os seus agora 400 quilos no torso do leão que a segurava pelo pescoço. Seu chifre direito perfura as costas do felino que é arremessado ao longe. Os leões largam o corpo de Jitha e se apresentam para enfrentá-lo. Mais dois aparecem em seguida, e Clarindo ainda está só.

O combate é feroz. Se pondo entre a alcateia e Jitha, Clarindo ataca os leões e procura mantê-los afastados, na esperança de receber ajuda, e evitar que a devorem. De fato, os maiorais já estão pesadamente a caminho, tal e qual tratores especializados em triturar leões.

Clarindo luta com destemor e bravamente. De relance, garras penetram em seu pescoço por cima e torcem com força, com o leão jogando o corpo para o lado para aumentar a potência da torção de ataque. Um estalido surdo e oco determina em instantes o final da luta.

A torção violenta partiu o pescoço de Clarindo que cai sem vida, tal e qual um enorme e pesado boneco de carne, ossos e músculos. É a lei da natureza, o jovem e brincalhão Clarindo, futuro líder da manada, tombado, olhando para a savana da altura do chão, em seus últimos segundos, está morrendo.

Os maiorais secundados por jovens búfalos enfurecidos atropelam a alcateia de leões e cobram caro o ataque contra Jitha e Clarindo. São por demais unidos no combate, e não perdoam um ataque a um dos seus. Dois outros leões, além daquele já ferido por Clarindo, têm seus corpos perfurados por chifres em forma de gancho que rasgam suas entranhas, antes de serem pisoteados até a morte. Os demais fogem em disparada, deixando o corpo de Clarindo estendido no chão, enquanto Jitha se levanta para ser lambida pelos demais bubalinos, depositando grossas camadas de saliva, cheia de substâncias cicatrizantes por cima de suas feridas.

Por pouca visão que tivessem, e ainda que não fosse assim, não teriam de qualquer modo percebido o que se passou quando Clarindo teve o seu pescoço quebrado.

Mãos negras, suaves e caridosas amparavam o jovem animal. Uma das mãos colocada por sobre a cabeça do búfalo, fez o animal desfalecer antes do golpe final. Do outro lado da vida, o búfalo acordou, se pôs de pé e olhou ao redor. Estranhou um pouco aqueles seres tão diferentes dele mesmo, pois ficavam de pé sobre duas pernas, além de possuírem corpos muito esguios, como se não comessem a relva, logo, não conseguiam engordar, acreditava Clarindo.

— Tenha calma Clarindo. Você vai ser tratado, alimentado, e depois poderá voltar para os seus amigos. Não vai demorar muito, e já que você foi tão corajoso em salvar Jitha, logo, logo ela irá receber você também, como mais um filhote.

E assim a vida segue o seu curso. Clarindo, um animal considerado irracional, pela bravura indômita em salvar um ser em perigo iminente de perda da vida, recebeu o amparo especial dos tratadores celestiais. São trabalhadores espirituais, especializados e dedicados à guarda e acompanhamento da fauna no mundo.

Seja qual for o filho do Criador, sob qualquer circunstância, onde houver um lampejo de inteligência dedicado ao bem e ao altruísmo, sob o amparo da Lei de Justiça, Amor e Caridade, reza a Lei que este filho seja beneficiado por sua atitude e imediatamente retorne à sua marcha evolutiva, no mundo físico, por mérito pessoal. Morrer não é o fim, viver não é sofrer, é crescer, progredir, evoluir.

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