Menu

terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Absorção

                                                                                  

                                                                                                                                              Foto: Júnior Reis

Por: Antonio Mata

Retornavam para o pequeno aldeamento, onde se reuniam menos de uma centena de pessoas. Traziam pendurado nos ombros, amarrados em um varal, um-porco-do mato com cerca 30 kg.

Junto ao peixe, teriam carne suficiente para o consumo de todos. Alimentos outros, derivados da mandioca completavam a dieta diária da aldeia.

Localizado perto do rio, o lugar recebia, e muito raramente, a visita de canoeiros que promoviam o escambo entre produtos da aldeia e principalmente utensílios metálicos, como facas e machados.

Estes eram então por demais valiosos, com a sua utilização desgastando completamente os utensílios. As facas, ao longo dos anos acabavam transformadas em um cabo com uma pequena lâmina, tal e qual um estilete; sem lâmina para repor.

Os machados, ainda que fossem mais duráveis, terminavam seus dias de aplicação, utilizados em atividades mais leves, de uso doméstico.

Pelo pouco peso e a lâmina diminuta, exigiam cada vez mais esforço e trabalho no corte. Era mais interessante retornar ao escambo e obter outro.

Yahto se dirigia às matas ao redor para a obtenção de sementes e amêndoas. Delas as mulheres extrairiam os  óleos e essências procuradas por estes canoeiros interessados no escambo.

Precisava conhecer a melhor época para coletar sementes, pois era necessário um volume grande em sementes para se produzir a quantidade necessária de óleo para as trocas.

Recolhidas as sementes da andiroba, elas eram piladas pelas mulheres para obtenção uma massa homogênea. Dessa massa se extraía o óleo, por pressão.

Por conta destes contatos através do rio, Yahto aprendeu a oferecer também o bagaço restante, ainda com muita resina, que podia ser utilizado como  vela, ou ainda para esfregar no corpo. Era um repelente contra mosquitos.

Yahto também localizava as copaibeiras, cujo óleo extraído do cerne de seu tronco, era muito utilizado em aplicações medicinais na própria aldeia. Um antibiótico natural; tinha sempre muito valor de troca.

Yahto pensava a respeito destas relações, e imaginava o que mais poderia existir bem mais adiante; sempre descendo o rio.

Assim tudo isso era obtido com muito trabalho, da feita que as árvores se apresentavam muito espalhadas. Era preciso conhecer as trilhas de acesso, os caminhos e o tempo certo.

O óleo de copaíba tinha ainda uma peculiaridade. Após a primeira extração, não havia nenhuma segurança de que no ano seguinte haveria óleo novamente.

Yahto pensava muito sobre estas questões, e com uma certa preocupação, pois a extração era feita ferindo a árvore com machado. Acreditava que isto a impedia de produzir mais óleo. Pelo menos em parte; tinha razão.

Para se adquirir o óleo era preciso procurar por árvores cada vez mais distantes. Isto apontava para uma limitação natural, que Yahto e nenhum de seus companheiros tinha como superar.

Em uma das últimas vezes em que esteve em contato com o canoeiro que recolhia a produção de óleos, e trocava por outros utensílios, pediu para acompanhá-lo descendo o rio. Dizia querer ir mais além, sempre à montante, descendo para encontrar a foz, onde quer que ela estivesse.

Remando sem cessar, não foi fácil, nem no mesmo dia, que chegaram no local onde óleos, seivas, essências, fibras e certos minerais eram recolhidos e acumulados em um barco maior. Informou-se a respeito do que havia mais adiante.

Foi assim que descobriu que, com mais duas semanas de viagem, passando de um rio para outro; encontraria o grande aglomerado humano, destino de todas aquelas trocas.

A cidade, centralizadora de todas as coisas, tanto as boas como as ruins, como brevemente e de todo modo; acabaria ele mesmo descobrindo.

Ao chegar, utilizou-se de um único recipiente de óleo de copaíba para trocar por comida e um lugar para dormir.

O dono da casa, um pequeno comerciante do lugar, fitou-lhe bem, mas ao final permitiu que ficasse por dois dias em uma pequena cobertura nos fundos da casa.

Não era grande coisa, e ainda estava do lado de fora, porém, serviu naquele momento. Quando os dois dias se cumpriram Yahto foi convidado a se retirar. Trabalhou por comida e dormiu na rua por todo o mês.

Um estranho em um lugar completamente estranho, não foi uma nem duas vezes que pensou em desistir. A fome, o frio e as estrelas fizeram parte daqueles dias.

Obteve trabalho nas imediações do porto como estivador, descarregando embarcações e subindo outra carga em outros tantos. Sem condição melhor; dormia na rua.

Tomou muito calote, trabalhou sem nada receber, foi enganado, feito de otário; roubado e humilhado. Até fixar, de alguma forma, e com um pouco mais de clareza, a noção do valor do dinheiro.

De muita boa-fé, trabalhou até de graça; para quem acreditou que merecia. Foi a pouco mais de um ano depois; que conseguiu uma vaga para trabalhar embarcado.

Percorrendo os rios, teve a oportunidade de observar a grandeza dos inúmeros canais. Conheceu localidades diversas, gentes diversas; além de outros tantos barcos por onde se empregou nos cinco anos seguintes.

Maravilhou-se com as paisagens e com a diversidade humana. Era um mundo tão belo, quanto grande; confuso e violento. Mesmo assim, não se abstinha de admirá-lo. 

Em certa ocasião, um missionário que conhecera nos portos de lenha da região, lhe apresentou uma proposta.

— Yahto, veja isto. Pegue com a mão direita e coloque a folha sobre a mesa. Vou escrever uma coisa em minha folha. Depois, quero que você faça o mesmo na sua folha. Se você fizer errado; não faz mal. Pegue outra folha e tente de novo.

Riscou uma única linha para que Yahto visse; em seguida fez um pequeno círculo.

— Yahto, com isto que você tem na mão e com a folha, você pode anotar o nome das coisas; e assim falar algo para alguém. Você não precisa nem estar presente; pode até ir embora. A pessoa vai entender do mesmo jeito.

Yahto olhava para o objeto. Ficou tão curioso quanto encantado pela ideia de poder falar, ir embora, e ouvirem da mesma forma; como se lá estivesse.

Pela primeira vez Yahto tinha um lápis na sua mão. Na folha seca de mais de um palmo, amarelada e espalmada sobre a mesa, deixou uma linha escura. Percebeu que não era úmida, nem pastosa, como as tinturas que conhecia, pois no lápis a tinta já estava pronta e seca.

O tal do lápis, era seco sim, mas não soltava fácil; logo não devia ser feito com carvão, pensava; olhando com curiosidade e surpresa para o lápis, a linha quase preta e o círculo na folha; que tinha acabado de desenhar. Prosseguiu o missionário:

— Você já entendeu Yahto. Só que para anotar as coisas que você gostaria de dizer, só a linha e o círculo não serão suficientes. Você vai precisar de mais algumas coisas que chamamos de letras. Agora copie o que vou escrever na minha folha; e então procure fazer igual.

Yahto prestava atenção, então copiou as primeiras letras do resto de sua vida. Havia um “a”, um “e”, um “i”, e assim por diante. Havia abandonado a escuridão. Agora falaria com quem quisesse, ao tempo que quisesse, e guardaria tudo; se quisesse.

Como uma coisa puxa a outra, abandonou os barcos e se fixou de vez na cidade. Em menos de um ano Yahto já lia e escrevia. Obtinha livros emprestados pelo missionário. É evidente que a bíblia estava entre eles.

Logo compreendeu que existia outra forma de se explicar, de se contar a Criação. Tornou-se hábil na escrita, com seus horizontes se alargando ao sabor de suas leituras e de sua mente.

Certa feita, conversando com o religioso, fez um questionamento muito objetivo.

— Pude entender que poucas pessoas no porto sabem ler e escrever, e na cidade também. Por quê?

— Yahto, essa história é longa e vai continuar sendo. Respondeu o missionário.

— O correto seria ensinar a todos. Para fazer isto precisaríamos, não de uma escola, mas de várias, para ensinar a todos. Só que tem outra questão Yahto; nem todos querem aprender. Já ficaram velhos e não se motivam mais. Por isso, é importante começar pelas crianças. Assim você terá um aproveitamento melhor. Uma chance maior de sucesso.

Yahto rapidamente entendeu uma coisa. Se algum dia tivesse filhos, não esperaria que envelhecessem para ler e escrever. Deveriam aprender ainda crianças, nem que ele próprio tivesse que fazer aquilo. A vantagem em suas vidas, diante dos demais era algo muito evidente.

Na sua empolgação, Yahto tinha razão. Aprendeu aritmética logo em seguida. O esforço em trabalhar com cálculos chamou a atenção dos comerciantes do porto.

Pôde ser chamado para trabalhar, não mais como estivador, mas como conferencista de carga. Saiu da escuridão, e mais que isso; agora poderia comprar seus próprios livros.

O dinheiro não é bom, nem é mau. É você quem decide o que vai fazer com ele, e trazer para dentro de casa. Assim pensava Yahto, e com certa razão.

Com a vida mais estável, casou-se e teve cinco filhos. Com gosto pela escrita, escrevia para si mesmo. Seu primeiro leitor foi seu filho mais velho.

Este, com o tempo se tornaria escriturário; e em seguida, já com mais de trinta anos, um guarda-livros, cuidando da escrituração mercantil.

Os netos de Yahto, puderam então frequentar o antigo colegial. O que havia de mais avançado naquela época, e disponível na cidade. Seu neto mais novo, este sim viria a se tornar, posteriormente um conhecido escritor.

Quanto a pequena aldeia de Yahto, cumpriu a sina de incontáveis povoamentos pelo mundo afora. Se encontrou algo que justificasse às populações, o desejo de lá permanecer, então este pôde se manter e até crescer.

Se porventura, não se deu dessa forma; cem anos é tempo suficiente para a floresta reclamar e retomar o seu lugar. Até à velhice dos netos de Yahto, mais de 180 anos se haviam passado.

Seus bisnetos já eram todos adultos, e seus tataranetos; já corriam pelas ruas e parques da cidade. Na antiga aldeia, seus vestígios de madeira e fibras, submetidos a umidade da região, já se perderam e estão sepultados.

A vegetação recobre tudo. Os estratos moles do madeiramento das antigas habitações, fruto das chuvas intensas, serviram de alimento para as árvores que vieram depois. Permanecem apenas os buracos, indicativos do desenho, o layout realizado quando da construção das habitações.  

Mesmo que soterrados, encontram-se pedaços de cerâmica tosca, além de uma ou outra lâmina de faca utilizada até junto ao cabo, sendo que este não existe mais. Há quem pense que foram quebradas, mas não é isso não. Foi pelo uso mesmo.

Em outro nível, quanto aos espíritos daqueles que se foram, é comum que se fixem na grande floresta; onde gozam do respeito dos amigos e parentes que ficaram na vida material.

Com o avanço da floresta por sobre os sítios abandonados, é como se todo o patrimônio cedido para a construção do lugar retornasse à sua origem.

Ao final tudo se une mais uma vez, pois a grande floresta existe também do outro lado da vida, de maneira muito mais verdadeira; muito mais pujante e bela.

Go Back

Comment