Imagem: World History Encyclopedia
Por: Antonio Mata
147 a.C. Ano da anexação ao império.
Nas proximidades do Pireu, de manhã quente de verão. As galeras sob as águas brilhantes atestavam a presença de seu novo senhor. De todas as coisas, de todas as terras e de todas as vidas.
Sem saber propriamente o motivo, só de ver o convite chegar da boca de um soldado, deduziu não ser coisa muito boa. O centurião caminha em silêncio, conduzindo o homem detido.
— Sabe do que se trata? Não poderia ser outra pessoa?
— Continue caminhando e não faça mais perguntas.
Theodoro acompanhava o centurião, sendo que sua mente se agitava, buscando compreender o motivo de tal chamamento. “Motivo de mal agouro, isso sim. Essa gente gosta de dar as ordens. Melhor deixar quem quer falar e atendê-lo da melhor forma possível. Já vi gente ser morta nessas inquirições.”
Assim como as pedras que se soltam da montanha e rolam pelas terras abaixo. Theodoro sentia, que de alguma forma, poderiam tentar arrancá-lo de sua própria montanha e de sua própria vida. Antes, ter cuidado com as palavras.
Há muito que Cartago vinha sendo atacada, na África. Seu fim, para alguns, já constituía morte anunciada. Conta o fato de não terem arrasado a Grécia.
Certa vez ouvira dizer que eram tal e qual primos, por conta das origens romanas, principalmente ao sul da Itália, habitado por gregos. Talvez isto explicasse, pelo menos em parte. Mas, não aquela chamada repentina, tendo de ser escoltado por um soldado. Só para ver seu primo.
“O que se poderia oferecer a um invasor? Já dominam tudo o que se tem aqui? O peixe, a terra pedregosa e pouco fértil? Um entreposto comercial de muito movimento? Ora, já sabem disso e já se apoderaram dele. O que mais haveria de ser? O que ainda faltava, ainda não foi retirado?” Pensava, agitadamente, adentrando o prédio da guarda, próximo ao porto.
Por todo o caminho não encontrou resposta. Contudo, já às portas da governadoria romana, deu-se conta. “Só pode existir uma coisa, que ainda não tenha sido retirada de nós o suficiente e que justifica querer buscá-la”. Entrou na governadoria e tal pensamento fez a pedra solta de Theodoro rolar.
O patrício e general romano estava confortavelmente instalado em uma poltrona e convidou o grego a sentar-se.
— Quero agradecer por ter aceito espontaneamente ao nosso convite Theodoro. Nem todos se comportam dessa forma.
Meneou a cabeça em gesto afirmativo, enquanto esperava que o general prosseguisse com sua fala.
— A Grécia é uma das grandes províncias do império. O Pireu, um porto importante, Atenas uma cidade importante, por sua gente e por sua cultura. Portanto, merecedores de um tratamento diferenciado. Vejo entre nós próprios, nossa juventude, o interesse em aprender a sua língua.
Apenas meneava a cabeça positivamente, ouvindo seu interlocutor falar da satisfação de terem contato com um povo portador de tantas ideias.
— Respeitamos a sua cultura e sempre existem aqueles muito interessados, em conhecê-la mais de perto. Diversos estudiosos nossos acorrem à Grécia. Tanto quanto muitos de vocês vêm até nós, Theodoro. — Parou um instante.
— Contudo, preciso lhe fazer algumas perguntas.
— Como quiser general. Se eu puder ajudar, responderei com prazer.
— Pois bem, é tudo muito simples e chega de arrodeio. Você conhece um ótimo escultor? Não quero um bom escultor. Preciso de um ótimo. Compreende isso?
— Sim, sem dúvida tempos ótimos escultores. Só não sei se poderemos encontrar alguém que esteja desocupado. Costumam ser bastante requisitados.
— Isto ficará a seu cargo e terá que se apressar. Verifique se já está a serviço de algum patrício. Se não for assim, será de imediato requisitado.
— Além disso Theodoro, você conhece algum amante da filosofia, um pensador? Alguém que possa pensar a natureza que nos cerca, além do próprio homem. Alguém capaz de elevar a natureza das conversas. Não quero saber só de legionários, galeras e estradas.
— Acredito poder encontrar quem procura. Se pretende permanecer mais dias, ou mesmo uma temporada na cidade, tanto melhor. Tem tudo para ser uma ótima estadia, com muito proveito e conhecimento.
Desiderius, o patrício e general romano o encarava e fez silêncio por um instante.
— Conhece um bom professor de sua língua? Alguém com experiência e conhecimento da língua?
— Com certeza senhor. Isto não é algo difícil.
Continuava olhando fixamente para o grego, na sua frente. Só que dessa vez acenando com a cabeça várias vezes. Concordando com a fala de Theodoro.
As mãos do grego suavam enquanto continuava na busca por respostas, não muito incriminadoras. Um discurso que lhe permitisse sair dali sem maiores problemas. Se possível, deixando o invasor satisfeito.
— Soube que você trabalha com construções.
— Sim general, tenho realizado algumas obras na cidade. Apenas não sou envolvido com construções militares.
— Já fez um templo, ou mesmo um palácio? Já fez prédios públicos? Certamente que conhece uma terma. Além de um aqueduto para abastecê-la, e as casas ao redor. Acredito que conheça bem os materiais, não é?
A conversa se aproximava de seu ponto mais nevrálgico. Não havia nada que pudesse ponderar, que não pudesse ser verificado indagando de terceiros. O romano não falava de obra qualquer. Falava de coisas grandes. De cálculo e precisão.
Era conhecido na cidade por suas habilidades. Ainda que não figurasse entre os maiores, possuía muito conhecimento prático, além de matemática e geometria. A planimetria grega e suas habilidades, este era o interesse do patrício romano.
— O que tem interesse em particular, que tipo de construção? Talvez eu encontre o que procura em Atenas.
— Você ainda não me respondeu Theodoro.
Pensava uma forma de responder, sem mentir, o que seria pior. Sem, contudo, se tornar o centro das atenções do primo patrício.
— Como já deve saber, possuímos construtores hábeis em diversas áreas. Acredito que poderá encontrar respostas úteis, homens capazes, para o seu interesse por obras, general.
— Me fale um pouco sobre as técnicas gregas Theodoro.
— De um modo geral, podemos separar as construções entre o que é prático e necessário, como uma estrada, um edifício residencial para a população, ou um aqueduto. Além das construções que expressam beleza, capacidade e grandeza. Como os templos e os palácios. — Theodoro prosseguiu.
— Assim, cada obra terá suas características. Para as mais simples, utiliza-se o que está disponível no lugar, ou utiliza-se tijolos, que é um material barato, mas que atende a estas obras. Para as obras de grande resistência e que sejam duráveis, sem dúvida que cortar a rocha é mais trabalhoso, porém são muito duráveis. — E continuou.
— As arcadas romanas e as colunatas gregas fazem ótimos conjuntos para pontes e edifícios, sejam públicos, residenciais ou religiosos. Pela vantagem de se poder revestir com os diversos tipos de mármore. Além daquelas obras, toda ela em blocos de mármore. Certamente que são as mais caras.
Então, completou sua fala.
— Certamente que a cidade dispõe destes homens, bastando apenas encontrá-los.
— Penso que já encontrei, Theodoro. Penso que já encontrei.
Desiderius levantou-se e andou de um lado para o outro da sala, oferecendo então a sua decisão.
— Theodoro, você terá de me acompanhar para Roma. Temos muito serviço pela frente. Reúna seus melhores auxiliares, além escultor, do filósofo e do professor. Precisamos de pelo menos três escultores. Providencie isso.
— General, peço a sua compreensão. Eu não posso sair de Atenas. Já tenho muito o que fazer aqui mesmo.
— Está servindo ao governador? A alguma autoridade romana, algum patrício? Não? Então homem, você está disponível. Você não compreende? Você é o condutor, você é o dirigente. Como pensa que estas obras vão sair dos desenhos? Alguém precisa conduzir, alguém tem que ser o dirigente!
O que Theodoro mais temia, acabara de acontecer. Ser arrastado para a sede do império, sem nenhum interesse em fazê-lo.
— General, possuo família aqui na cidade. Tenho mulher, tenho filhos. Dois são pequenos ainda.
— Pelos deuses, Theodoro! Chame sua mulher, reúna seus filhos e vamos embora! Vamos para Roma! Qual é o problema?
Theodoro bem o sabia. Conhecia muito bem o problema. Levar sua mulher e filhos para ficarem à mercê dos ânimos e da soberba de um patrício acostumado a explorar a todos. Não seriam como cidadãos romanos. Nunca seria a mesma coisa.
O homem veio buscar gente e Theodoro sabia disso. Era lhe dar o que viera buscar. Antes que resolvesse algo pior. Tinha que oferecer uma resposta e tinha que ser já. Tremia mais que vara verde, como quem espera a intervenção dos deuses.
— General, por favor. Existe a possibilidade de eu poder ficar? Eu consigo todos os homens de que precisa. Até mesmo um dirigente para as suas obras.
O general, praticamente colou seu rosto encolerizado, no rosto do atemorizado Theodoro.
— Vejo que não se importa tanto, se tiver que atirar outro na fogueira, não é mesmo? Não me obrigue a fazer o que não quero!
— Agora saia daqui e somente volte com os trabalhadores de que lhe falei. Caso contrário Theodoro, vou acorrentá-lo! A você, a sua mulher e a seus filhos!
— Centurião, centurião! Leve este homem com você. Busquem todos os trabalhadores que solicitei. Ele já sabe quais são. Amanhã cedo, quero todos no porto. Vamos zarpar logo.
Puxado pelo braço pelo centurião, na companhia de mais quatro legionários, Theodoro desceu a rua sem nada falar, até que começaram as perguntas.
— Indique logo os primeiros. Não temos muito tempo!
— Os escultores, por ali, vamos encontrar os escultores.
Theodoro prosseguia, balbuciando os nomes e onde se encontravam antigos companheiros de trabalho, nas pedreiras, olarias, nos templos e demais prédios da cidade.
De casa em casa, oficina em oficina, os trabalhadores foram sendo requisitados para a execução de obras em Roma, sob pena de encarceramento, para os que por ventura reagissem. Conduzidos acorrentados até o porto, se preciso fosse.
O profissional habilidoso de muitos anos, construtor, arquiteto, matemático, conhecedor da planimetria grega que tanto admiravam. Dirigente e capaz, mas também um escravo. Do muito que fizera, só encontrara o caminho da escravidão.
Sacrifício pouco, ainda vivenciou a humilhação de ser levado pelas ruas da cidade a apontar sua própria gente. Muitos dos quais, treinados por ele mesmo.
No rastro, as mulheres chorosas e impotentes a acalentar os próprios filhos. Estes, agora órfãos de pais vivos, que não foram à guerra, nem abandonaram de seus lares.
O cortejo de escravos tomou o rumo do Pireu, onde aguardariam o embarque, logo ao amanhecer. Era a Hélade dos helenos, a mesma das belas esculturas e colunatas em mármore da Acrópole de Atenas. Já não era mais. Havia se tornado na província da Grécia, enquanto os helenos, tornaram-se os gregos.
Ao amanhecer, todos foram postos em fila para o embarque. Theodoro avista Desiderius. Ao passar próximo ao seu novo senhor, lhe faz um último questionamento.
— Senhor, quando poderemos retornar para nossas famílias?
O general fez de conta que não ouviu coisa alguma. Enquanto Theodoro se afastava, virou-se o ofereceu-lhe uma resposta.
— Nada que dez anos não possam resolver. Mas, não se esqueça, sempre haverá muito o que fazer.
Dez anos, tempo para se trabalhar e pensar. Tempo para se viver e esquecer. A embarcação deixou o porto a caminho da sede do império. Theodoro nunca mais pôde rever sua família, o casario caiado de branco de sua cidade, nem regressou à sua Hélade.
Pobres origens.
O ano é 399 a.C. Um homem é condenado à morte por ensinar a verdade à juventude de seu tempo. O valor da fraternidade, da solidariedade e da prática do bem. O que é alma e o que é corpo.
Um espírito tão venerando, quanto incompreendido, era sacrificado em nome da ignorância dos homens de poder do seu tempo. As provações coletivas iriam buscar todos os nomes envolvidos para o acerto de contas.
As sucessivas levas de artistas, construtores e artesãos gregos partiriam rumo à capital romana, na condição de escravos. Sofreriam a humilhação de viverem subordinados a um povo rude, ganancioso e guerreiro.
Prevalecessem as luzes do conhecimento trazidas por Sócrates, e as cidades gregas teriam obtido mais de 250 anos para construir um povo unido, inteligente, altivo e forte, mas também amantes da paz e da verdade. O melhor dos antídotos contra a opressão.
A oportunidade se perdeu entre intrigas, golpes e disputas que desmoralizaram as cidades estado e enfraqueceram os homens. A terra de Sócrates estava aberta à invasão gradativa, reino após reino, cidade após cidade, até a anexação completa.
FIM