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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Aquele feriado de sexta-feira

                                                               

                                                                                                                     Foto: geraldfriedrich por Pixabay

Por: Antonio Mata

Chovia tanto que achou por bem parar o carro. Como estivesse muito escuro, saiu da estrada e afastou-se uns quatro ou cinco metros, à direita, em paralelo com a pista. Dava para escutar  outros veículos passando.

Tinha gente que insistia em trafegar debaixo daquele aguaceiro. Havia deixado as lanternas ligadas, e o painel, onde havia trocado a luz âmbar, por leds azuis. No breu que fazia lá fora, ficou trilegal, já que era o efeito que queria.

Agora era só questão de tempo e paciência, uma hora talvez, até poder retornar para a pista e prosseguir viagem. Chuva de verão, é assim que chamam o aguaceiro. Acontece de repente e encharca tudo, é muita água. Lembrou das habitações de encosta, e lamentou os desabamentos de todos os anos, tão comuns, tão mortais, tão banais.

A chuva batia com força sobre a lataria do carro, fazendo uma barulhada horrorosa. Aquele som na escuridão, quem não está acostumado, dá para  assustar. É um estalido agudo, como se estivessem batendo no carro com um monte de martelos. Bobagem pensar em ligar o rádio, ou colocar música. Só vai servir para aumentar mais ainda aquela confusão.

Saiu com pressa ao final do expediente, mas acabou preso em casa cuidando de mais algumas coisas. O fato é que só engatou a viagem depois das oito. O carro, com pouco mais de dois anos de uso, acabou assumindo as feições do dono.

É aquele momento em que alguns aproveitam para transformá-lo em uma espécie de armário, com roupas; livros; papéis supostamente importantes. Tão importantes que viajavam pela cidade todo dia. Para não dar muito na pinta aquela bagunça, ainda pôde colocar os papéis amontoados no porta-luvas; empilhou os livros como em uma estante, e juntou as roupas, fazendo vários rolos. Algo que tinha visto em uma revista.

Uma imitação de seu apartamento, onde vivia sozinho, mas que lembrava uma república, onde ninguém cuida de nada, principalmente se for para limpar ou guardar. Livros; revistas; peças de roupas; copos e pratos sujos convivem em desarmonia e esquecimento. Tudo muito natural, é claro.

Precisava fazer três horas de estrada, mas como havia deixado alguns amigos avisados, não havia problema em chegar tarde. Em que pese a distância, a viagem valia muito a pena. Havia construído boas amizades e em uma dessas andanças conheceu uma garota, que prendeu muita a sua atenção, a ponto de ficar meio abobado com aquela ruiva natural. Quem diria, havia estado naquela cidade, incontáveis vezes, e nunca tinha prestado atenção naquela ruiva sem tinta.

Meio idiotizado, passou um bom tempo conversando com ela. Quando pediu seu telefone, disse que estava sem nenhum, nem celular, nem fixo. Daquele jeito, o provável é que já tenha esquecido de tudo. Vai procurar, vai atrás, teria que resolver no dia seguinte, é claro que dá para encontrá-la. Ainda que desse o caso como perdido, desconfiava que a guria tinha mentido.

Melhor esquecer isso e continuar esperando a chuva passar, para sair logo dali. Sentia um frio cada vez maior, que então incomodava. No armário ambulante, não havia nenhum tipo de agasalho, manta, nada que esquentasse o corpo. Que porcaria, deixa como está, ou passa a colocar mais tralha dentro do carro?

Pensou em pegar uma lanterna, ou melhor, lembrou que poderia ser útil, ter uma lanterna no carro. Deixar uma lanterna dentro do armário. Só não fez isso, não cuidou de lanterna nenhuma, nem isqueiro, pois não fumava. Nem vela, pois seria classificado como idiotice andar com caixa de velas dentro do carro. Derreteriam todas no calor, fato que só descobriria em uma noite como aquela.

Que situação, de um lado, lembrava de uma certa Patrícia, que nem sabia se pelo menos pensava nele, do outro, as bobagens, asneiras, ausências mentais, lacunas de memória, vazios cerebrais, só coisa que não prestava. No final, é melhor assim, já pensou se ela descobre que é tudo verdade?

O frio continuava aumentando, e se deu conta de mais uma coisa. Estava molhando dentro do carro. Sentia sua perna direita encharcada por uma água que corria, tal e qual tivesse saído de uma pequena torneira, caindo por cima da perna. A água parecia se amontoar no canto esquerdo, pois sentia seu pé dentro d’água.

As pernas, os pés e ainda as mãos estavam molhadas. Se deu conta de que estava todo molhado. Sentia gotas no rosto. Mas que burrice, como foi que fez aquilo, janelas abertas, pensava. Onde já se viu tamanha imbecilidade? Arrego!

Fechou os olhos e se acomodou como pôde para continuar aguardando a chuva aliviar. Aliás, isto já havia acontecido. O som das gotas sobre a lataria já era mais suave. Os pingos no seu rosto também. Já estava passando, e poderia sair logo.

Notou só mais um detalhe, bem esclarecedor das coisas. É bom quando isso acontece, pois permite colocar chuva; estrada; veículo; o maluco; e os vidros do carro, tudo em um mesmo cenário. Assim, dá até para surgir a tal da lógica.

Deu certo, rápido e claro. Os vidros do carro, tinha deixado todos fechados, tinha certeza disso. Dentro do carro estava aquecido e agradável. Não estava sentindo frio, coisa nenhuma. Logo não havia água dentro do carro, pés molhados, roupa encharcada, pingos no rosto. De onde saiu tudo aquilo?

Deu para se iludir com as coisas agora? Estava dirigindo com tudo no seu lugar, a tempestade começou, e logo em seguida tratou de sair da estrada e parar. E isso é tudo, são os fatos. Vai procurar se iludir mais para onde?

Era verdade, havia feito uma breve regressão da viagem, e realmente estava tudo no seu lugar. Havia tomado as medidas certas, e parar tinha sido providencial. Era loucura prosseguir com a tempestade. Então, ótimo, basta dar na chave e sair dali, afinal dava para sentir a suavidade dos pingos no rosto. A tempestade já estava passando, vamos embora.

Procurou se ajeitar no banco e estender a mão para acionar a ignição. Foi nesse momento que entendeu que a sua lógica podia muito bem não passar de um castelinho de cartas, daqueles que basta soprar que ele cai. Agora sentiu um frio diferente, aquele típico de quem tem medo, aquele que percorre a espinha. Aquele frio, de quem não acredita porque não quer.

Os pés estavam molhados, a roupa encharcada, o rosto molhado. Gotejava pela janela. Ao se ajeitar no banco e querer estender a mão para ligar o carro, quis movimentar a cabeça para a frente, na direção do painel. Uma dor horrível tomou conta de sua cabeça, que o fez desistir do movimento para ligar o carro. Se sentia imobilizado em cima do banco.

Via as luzes azuis do painel, com desenhos em branco. Assim como o painel ligado, todo o resto estava lá. Agora se sentia preso, sem poder mover a cabeça. Pela primeira vez, notara a pressão do cinto de segurança, apertando a clavícula esquerda e o pescoço. Foi prestando atenção nessa pressão que entendeu que não estava com o carro na horizontal. O Mille vermelho estava tombado para a esquerda, para a frente e para baixo. Daí a água se acumulando já nos dois pés.

Molhado ou não, preocupado ou não, logo se deu conta da verdade. Houve, é claro, um acidente e o carro saiu da estrada pela esquerda, cruzando a contramão. Não sabia da situação do veículo, não conseguia enxergar quase nada ao seu redor. Pela chuva no rosto, deduziu que os vidros provavelmente se  espatifaram com o acidente.

Por entre os sons da chuva leve, caindo por sobre as folhas das árvores, pôde ouvir vozes de pessoas não muito distantes dali. Ficou agradecido a Deus, pois logo receberia ajuda para sair daquela situação, pensou. Ficou ansioso aguardando as vozes ao longe, e os ruídos provocados pelas últimas gotas de chuva no solo molhado.

— Luciano, vem comigo, está tudo bem.

Ficou surpreso quando sentiu a mão de alguém tocar levemente em seu ombro, enquanto buscava retirá-lo de dentro do carro. E mais surpreso ainda com a agilidade do socorrista. Nunca imaginou que pudessem ser tão hábeis. Isto pela facilidade com que o colocou de pé, fora do carro, a despeito da dor na cabeça.

— Nossa, como conseguiu fazer isso? Soltou o sinto tão rápido que eu nem notei.

Luciano olhou para o carro com as luzes acesas, e aquela mistura de surpresa e dúvida chegou até ele mais uma vez. O socorrista não só o libertara rápido do cinto de segurança, mas também o retirou de dentro do carro sem abrir a porta. Olhou para o carro mais uma vez, e depois para o socorrista ao seu lado, como quem pergunta que diabos era aquilo.

— Luciano, preciso que me acompanhe, você está atordoado no momento. Depois poderemos conversar com calma. Mas, venha comigo.

Caminhou por alguns instantes e em seguida olhou para trás. Um grupo de pessoas, com lanternas, havia chegado até o carro tombado, depois de capotar várias vezes. Reconheceu entre as pessoas, dois amigos que o receberiam na cidade, e entre eles, sob a luz das lanternas, dava para perceber os cabelos longos e ruivos de Patrícia.

Os três reconheceram o motorista preso nas ferragens com a ponta de um galho que atravessou sua têmpora esquerda. Pela primeira vez, Luciano prestou atenção em seu corpo inerte dentro do carro. Viu Patrícia com as mãos no rosto, e diante dos fatos.

— Luciano ficar aqui é pior, venha comigo logo. Depois poderemos conversar sobre tudo isso. Mas, neste momento, você precisa vir comigo.

Luciano, ainda confuso com tudo o que via, deu as costas para aquela cena e acompanhou seu mentor espiritual, que apenas aguardava para ir buscá-lo.

O tempo passou, como se dá sempre. Cicatriza as menores e as maiores dores também. A vida seguiu seu curso normal. Patrícia, a jovem motivo dos sonhos de Luciano, terminou por se casar. Quando da chegada do primeiro filho homem, achou por bem dar-lhe um nome, que vez por outra surgia em sua mente, Luciano.

As coisas não mudam tanto, e nem assim tão rápido, é apenas o tempo que insiste em passar. Aprendizes dos sentimentos mais íntimos, que sempre fomos, sempre teremos, da parte do Pai Celestial, uma forma de se poder expressá-los.

Ainda ecoa pela casa da Patrícia, uma costumeira advertência: “Luciano, você só sai daqui para brincar, com esse seu quarto e seu armário, arrumados. Também não se atreva sentar-se à mesa para o almoço, sem tomar banho”.

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