Foto: Michael Payne
Por: Antonio Mata.
Quando cheguei aqui pela primeira vez, tudo foi motivo de muitas brincadeiras e surpresas. Não era muito de ficar no colo, nem gostava de subir em cima da cama ou do sofá. Apreciava mesmo, era um pequeno tapete na sala, junto de um vaso grande de plantas, no canto da parede. Eu gostava assim.
Joelma levantava cedo e me levava para passear por perto do edifício onde morávamos. Descia contente junto comigo, contando toda sorridente, para outras tantas pessoas, que havia sido aprovada para o curso de odontologia na universidade. Não entendia direito o motivo de tanta alegria; mas como ela estava muito feliz, imaginei que devia ser algo muito bom, e então aproveitei aquilo tudo para ficar feliz também.
Minha cauda foi tomada por um choque elétrico e não parava de sacudir, tamanha a minha satisfação por algo que eu não sabia o que era, e muito menos para onde ela iria. Talvez um dia a psicologia dos cães explique isso com mais facilidade. De alguma forma eu era capaz de me alegrar com a alegria dos outros. Mas; o futuro também traria outras tantas implicações que naquele momento não dava nem para imaginar.
Já quanto ao passeio com Joelma, era rápido, mas eu gostava assim mesmo. Depois era passar o dia brincando com ela e com o Lineu. Sempre havia o que fazer e eu gostava dos dois irmãos. Também havia a Iolanda, a mãe deles dois. Se Joelma não pudesse me levar na rua, o Lineu certamente me levaria.
Eu gostava porque ele demorava mais. Lineu parecia estar sempre falando sozinho e constatando coisas que só faziam sentido na cabeça dele. Distraído e pensativo, às vezes eu precisava lembrá-lo de que estava na hora de voltar. Era só puxar a guia no sentido contrário que ele já entendia. Lentamente, se voltava para o outro lado e me acompanhava. Acho que se eu dissesse “junto Lineu, junto", ele viria do mesmo jeito.
Então, era percorrer o quarteirão prestando atenção nos cheiros, fuçando tudo, lambendo o chão e parando nos canteiros que apareciam, marcando tudo com xixi, até a banca que vendia pamonha, bolo de macaxeira, essas coisas. Já deixava tudo marcado. Lineu não era chato igual à enjoada da Joelma que ficava segurando minha cabeça no alto, pela guia, me tirando do meu divertimento de passeio. Horrível aquilo, não gostava quando ela fazia isso, não entendia nada de cachorro. Nem se importava com a minha felicidade pela sua aprovação. Então era assim, toda vez fazia a mesma coisa.
Como era início de ano Joelma e Lineu estavam de férias e em casa, pois, Iolanda tinha avisado a todos de que o dinheiro era pouco, e que a família passaria as férias em casa mesmo. Não entendi nada, mas em pouco tempo todos estariam às voltas com outros afazeres. Foi assim que Iolanda prosseguiu com o seu trabalho em uma perfumaria; Joelma foi estudar para ser dentista e Lineu estava iniciando em uma agência de viagens bem perto de casa.
Foi também Lineu que achou fantástico o nome pelo qual passaram a me chamar, Clint. De Clint Eastwood, em homenagem aos antigos filmes de bang bang que ele vivia fuçando no computador, a despeito das reclamações de sua mãe. Só que eu adorei o nome, era simples e soava bem, por isso, acho que todos gostaram e ninguém criou caso. Quando Joelma se afastou, pois, saía de casa bem cedo, Lineu ficou me acompanhando mais vezes. Na realidade era quase todo dia.
Em outra ocasião pude ver Iolanda brigando com ele, por conta de alguma coisa que teria feito, ou deixado de fazer, e que eu não fazia ideia do que pudesse ser. Não sei se tem a ver, mas eu estava tendo crises horríveis de diarreia. Tão fortes que tiveram que me levar para tomar umas injeções horrorosas. Aquilo foi péssimo, virei pele e osso. Com o tempo fui me recuperando e até engordei de novo.
O que detestei mesmo foi Lineu passar a agir da mesma forma que sua irmã, me puxando a cabeça com a guia e não me deixava mais cheirar tudo do jeito que eu gostava. Gente ruim; tive que aceitar porque aquilo estava me machucando o pescoço. Nem me deixava mais verificar a presença de estranhos no meu quarteirão, detestei.
Houve u momento em que deu para notar que Joelma estava sumindo aos poucos. Seguia para o curso bem cedo, mas chegava tarde e não saía mais do quarto. Passou a levar a comida lá pra dentro, mas não me deixava entrar. Quase não a via mais. Assim meu principal parceiro acabou sendo mesmo Lineu; pois, ainda me acompanhava pelas manhãs.
Completei um ano na companhia desses amigos e, para ser sincero, eu gostava deles. Ainda que não os visse com a frequência de que gostaria, mas eu não era um cão esquecido, como alguns que eu encontrava pelo caminho, quando descia com o Lineu. Foi quando outras situações começaram a surgir e, aos poucos tudo iria mudar de verdade.
Com Iolanda fora o dia todo cuidando da perfumaria, Joelma na sua rotina de estudante, foi Lineu que passou a se interessar por pacotes de viagens. Achou por bem se envolver com as tais viagens, que com o tempo foram se tornando mais frequentes. Agora era a vez do Lineu sair carregando aquela mala e passavam-se dias, antes que pudesse vê-lo mais uma vez. Fui ficando sozinho e passaram a me deixar preso na área de serviço. Fiquei desesperado e lati como um louco para sair dali. Comecei a ouvir outras pessoas gritando para que eu calasse a boca, mas eu precisava chamar alguém para me tirar dali. Estava ficando lá o dia todo e não sabia por que meus amigos não vinham me ajudar.
Eu ainda os via, ainda que de passagem, ouvia suas vozes, mas poucas vezes paravam para me ver. Diziam um para o outro que alguém tinha que fazer alguma coisa, mas não acontecia nada. Até que certa feita lati e gritei até perder a voz, e mais uma vez ficaram gritando lá de fora também. Iolanda entrou e eu fiquei contente. Finalmente iriam me tirar dali.
Só que ela trazia um cabo de vassoura. Foi a primeira vez que eu apanhei para ficar em silêncio. Em seguida me arrastou pela guia e me colocou na varanda. Já tinha ficado ali outras vezes, mas Joelma ou Lineu sempre vinham me soltar. Dessa vez tinha uma coisa diferente. Puseram a água e a vasilha com comida na varanda também. E não voltaram mais para me buscar. Foi assim que descobri que não me queriam mais por perto.
Um dia após o outro, tudo se dava lentamente. Comer, dormir, levantar, andar de um lado para o outro, comer, deitar-se, dormir, e então começar tudo outra vez. Prestar atenção em coisas que se passavam lá embaixo, lá longe. Gente, andando de bicicleta; um carro que passa e desce alguém; o semáforo mudando de cor.
Pude prestar mais atenção na beleza do céu azul, nas nuvens passando, mas logo lembrava dos agora distantes passeios com Joelma e Lineu. Não voltavam mais, não queriam mais me ver. Outra tentativa de chamar a atenção; muito latido e muito barulho. Só para ter outra seção de pancadas. Meu corpo começou a ficar marcado, avisando que chegou a hora de parar com aquilo. Ele não iria suportar mais.
Para a insolação da tarde, chegava todo para o canto, enquanto a varanda quase toda era banhada de sol e aquecia muito. Quando chovia forte, agora era hora de chegar para o mesmo canto para não ter que ficar direto na chuva, mas molhava de qualquer jeito. Havia água para todo lado, mas a ração ficava molhada. Tanto faz, já que ração em excesso azeda mesmo e eu não comia mais aquilo.
Não havia mais saída, não havia para onde ir. Enrolado no canto da varanda assistia o dia passar, a vida escoar. Até que certo dia ouvi alguém me chamar “Clint vem, tá na hora!”. Olhei ao redor e estava tudo escuro. Não dá para sair, já é noite. Mas aquela pessoa falava como alguém que me conhecesse e eu a aceitava perto de mim, não parecia um intruso. Tornou a chamar “vem logo Clint, vem passear, vem brincar com a gente!”.
Não precisou falar de novo! Sair da varanda, sair da prisão! Estou livre, estou livre! Saí correndo atrás daquela amiga que eu não sabia direito quem era. Ela ia rápido na frente e eu corria atrás, não queria perdê-la de vista de jeito nenhum. Foi quando pude ver algo que nunca tinha visto antes em toda a minha vida.
Aquela jovem tão novinha, quase uma menina toda vestida de branco, passava chamando por outros cães, “Banzé, vem logo vem brincar; Tim acorda vem com a gente, tá na hora; vem Sila, vem correr também!”. Quando olhei ao redor, não pude acreditar. Havia uma cachorrada enorme, eram muitos; acompanhando aquela menina.
Eu tô sonhando, tô proibido de acordar, vai fazer mal! Chegamos a um campo extenso todo verdinho, onde outros cães já estavam lá brincando. E havia outras meninas e meninos, homens e mulheres também. Pessoas de todas as idades que reuniam cães e os colocavam em grupos para correr, saltar e brincar.
Alguém apareceu no lugar com um monte de bolas coloridas e imagina só o que aconteceu: futebol de cachorro, campeonato dos cem pra cada lado! Eu tô no céu! Esse campeonato nunca mais pode terminar! O grande lance é meter o focinho para jogar bem alto, antes que você vire patê pisoteado de cachorro. Cruza pra mim, cruzaaa!
O grande campeonato do céu prossegue animado, dinâmico e divertido. Havia brinquedos e equipamentos diversos, daqueles que na Terra são utilizados nas provas de “agilit”, bolas de vários tamanhos e coisas para morder. Piscinas rasas para se banhar e bosques para se esticar e descansar na sombra, sob o ar fresco e perfumado de flores completavam a auspiciosa excursão.
Ali perto, trabalhadores do bem, com aparência muito jovem, e outros que se apresentavam com faces mais maduras, se reuniam e conversavam enquanto aguardavam o momento do retorno à Terra. Hilda, a jovem que fora buscar o Clint, estava em estado de graça, com um sorriso de um canto a outro do rosto por poder participar dessas incursões em defesa dos animais.
Chegando lá pelas três horas e meia da madrugada, era momento de retornar aos corpos dorminhocos e descansados mais uma vez. Hilda então, reuniu todos os animais que trouxera e com outros trabalhadores iniciariam a jornada rumo à terceira dimensão para devolver os amigos de quatro patas a seus lares e tutores provisórios. Hilda, carinhosamente os chamava:
— Muito bem! Está na hora, vamos todos voltar.
Nenhum deles se levanta. A ideia de voltar para casa não agrada nem um pouco. Hilda insiste:
— Meus queridos, precisamos voltar. Amanhã vai ser dia de correr na praiaaa! Brincar nas ondas!
— Ela falou praia, escutei direito? Agora eu quero! Pensou Clint, já interessado no dia seguinte.
Todos então se puseram a caminho. Afinal, a tia Hilda avisou que amanhã tem mais.
Descem à Terra e seguem para seus corpos que descansavam da fome, do frio, do desamparo, do esquecimento e do desinteresse. Retornam às suas ruas desertas, aos quintais sujos, cubículos, garagens, áreas de serviço e varandas transformadas em canis pela pusilanimidade humana.
Clint rapidamente foi devolvido ao corpo físico. Uma onda suave de paz invadia seu corpo todo esticado na varanda, e Clint, alegre e feliz permanecia de olhos fechados, muito fiel por sinal, às suas próprias proibições. Quem dera a vida fosse sempre assim, Céu e Terra seriam uma coisa só. Infelizmente, Clint retornava também para as subjugações da Terra sob a forma de abandono. Deixemo-lo dormir e sonhar. Foi presenteado por Deus e não quer perder nem um único segundo de tudo o que viu e sentiu.
Os dias se multiplicam e se transformam em anos na vida daqueles animais. Os trabalhadores do bem se desdobravam para oferecer aos espíritos dos filhos da Criação Divina um pouco de dignidade que os homens lhes negavam. Por incontáveis vezes, ao longo dos meses e anos seguintes, as equipes de cuidadores espirituais se fizeram presentes.
Recolhiam os animais e os levavam para locais mais aprazíveis do outro lado da vida, onde pudessem desfrutar de repouso e refrigério para seus espíritos sensíveis. A história de cada um precisava prosseguir. Seus propósitos junto dos homens tinham a ver com o despertamento da humanidade terrestre. Os milênios se completaram sem que a compreensão chegasse no nível das necessidades evolutivas do próprio homem.
Banzé, um pequeno mestiço de Yorkshire Terrier, morreu atropelado depois que foi deixado nas ruas em definitivo. Acostumado com a vida em apartamento, não teve muito tempo para se adaptar ao perigo das caminhadas soltas ao léu, sem uma guia e um tutor, e ao movimento frenético das ruas. O pequeno Banzé não durou três semanas.
Leonel, tutor do animal, ainda despendeu algum esforço no sentido de tentar localizá-lo. Por ser bem vira-lata, sabia que o cão não chamaria muito a atenção, tal e qual um legítimo Yorkshire. Porém, já no segundo dia, já o dava como caso perdido, e deixou de procurar o pequeno Banzé. Leonel não era mau, só era preguiçoso.
Só que para Banzé isto chegou como um mau trato, uma desatenção que custou, ainda que indiretamente, a sua vida. Sendo que Leonel poderia ter superado o episódio. Se quisesse; se tivesse este entendimento.
Sila, uma vira-lata branca de rabinho preto na ponta, foi resgatada pela irmã daquele que seria o seu tutor, o mesmo que pediu para ficar com a cadelinha. Para depois de passar três anos presa em um cubículo sujo com pouca água, comida e doente. Chocada, Maria Inês teve que resgatá-la pela segunda vez. Foi então levada para um pequeno sítio nas imediações da cidade onde Maria Inês, sua heroína passou a viver depois que se aposentou. Sila sobreviveu e teve anos felizes no campo.
Impedida de cuidar de seu tutor por ele mesmo, passou seus dias enchendo Maria Inês de carinhos, boas energias e daqueles sorrisos que só os cães sabem dar. Cuidou de Maria Inês e de sua casa até o fim de seus dias. Já fora da matéria, por diversas vezes, Inês viu a branquinha Sila enrolada na cozinha, enquanto ela cuidava do café.
Maria Inês foi intuída por Hilda a salvar a cadelinha Sila, convencendo sua assistida a visitar o irmão. Os dois não se viam há anos por conta de antigos conflitos familiares que acabaram por afastá-los. É bastante comum aquelas situações em que as brigas e os conflitos entre humanos acabam significando abandono de animais, que, em princípio não tinham nada a ver com eles.
Tim, que fazia a assepsia espiritual do apartamento de seu tutor, por conta de uma distração, conseguiu escapar do mesmo, mas voltaria para casa, a menos que fosse impedido, e realmente foi.
Tim foi capturado por funcionários do serviço de zoonoses por estar perambulando nas ruas sem coleira e sem nenhum tipo de identificação. Por estar muito sujo e magro, pois, não era bem cuidado mesmo, entendeu-se que era cão de rua e foi recolhido ao canil da instituição municipal. O futuro foi se tornando por demais incerto.
Como ninguém procurou, ou se interessou pelo animal, Tim todo sujo, magro e desprovido de qualquer tipo de beleza que chamasse a atenção de alguém, recebeu a injeção letal poucos dias depois de sua chegada, com outros cães aprisionados em idênticas condições, pois, era preciso reduzir o número de animais retidos no canil.
Já o nosso protagonista vivenciou uma situação diferente. Não terminou seus dias trucidado pelas rodas dos veículos da cidade grande. Também não foi possível contar com uma gentil heroína que se compadecesse de suas dores nos momentos críticos de sua existência. Muito menos recebeu uma injeção letal que o retirasse do seu corpo material em definitivo.
Clint prosseguiu ainda por mais dois longos anos preso na varanda. Abandonado em meio a sujeira, mal alimentado e doente, Clint morreu no mesmo local. Foi Joelma quem primeiro lembrou de procurar pelo cão, mas isto, só depois de 24 horas de Clint ter partido. Encontrou o corpo na varanda, chamou pelo irmão, que excepcionalmente estava em casa. Concluíram, por conta da rigidez cadavérica e do mau cheiro que Clint teria morrido de um a dois dias atrás.
Joelma choramingando dizia:
— Pobrezinho, pobre Clint, ninguém lembrou de você. Como puderam? Como te esqueceram aqui?
Era o momento de se apontar os culpados. Aqueles que não haviam feito aquilo que ela mesma poderia ter cuidado.
Agora era a vez de Lineu embasbacado:
— O que foi que você disse? Quando Clint veio para cá, você tinha acabado de ser aprovada para o seu curso de dentista. Joelma, você já está formada há dois anos. Que história é essa de pobre Clint? Por onde você andou esse tempo todo? Você mora na rua, por acaso? Você desapareceu de casa! Só entrava e só entra pra comer e dormir!
Aquela verborragia de Lineu trouxe Joelma para dentro do ringue, do tatame, da rinha familiar. Não conseguia se deter nem apelando para a filosofia: “lá em casa não tem espelho, logo, não posso me enxergar”. Partiu para cima de Lineu.
— Mas não foi só eu, você e mamãe também! Eu estava E.S.T.U.D.A.N.D.O! E você? Se meteu com os seus pacotes turísticos e há anos não senta mais a bunda dentro de casa. Só fala em viajar, viajar. A vida pra você é só isso, não pensa em mais nada, só em dinheiro e viagens.
Joelma em prantos:
— Eu esqueci o Clint, mas você também esqueceu.
— Se você tivesse lembrado dele, prosseguiu Joelma, poderia brigar comigo e eu aceitaria, porque você se lembrou. A minha dor seria menor. Mas você também não foi capaz de lembrar. Era eu você e o Clint, está nas fotografias. Você sabia que a mamãe não gostava dele, e eu também. Nós somos os culpados Lineu, nós somos os únicos responsáveis pelo que aconteceu aqui na varanda. Nós não temos perdão.
Lineu, ainda irritado, mas diante do colapso de sua irmã, se deu conta de que ela tinha razão. Haviam acostumado o Clint a ficar junto deles, e depois foram cuidar de outras coisas e simplesmente agiram como se o amigo não existisse mais. E era isso mesmo, ele está lá, feliz e contente nas fotografias, com dois meninos que cresceram, se tornaram dois adultos tolos e esqueceram do pequeno amigo sorridente.
Um mau arranjo entre irmãos teria sido muito melhor que descobrir que não havia arranjo nenhum. Lineu se aproximou da irmã que não parava de chorar, a abraçou e assumiu:
— Eu também errei, eu também sou culpado Joelma. Bastaria procurar por ele eu mesmo, e tudo estaria bem. Essa falta grave, agora vou levar comigo. E o que mais dói é saber que eu podia ter feito diferente.
Abraçados junto da varanda e do corpo inerte de Clint, os dois irmãos faziam a sua catarse. O ciclo havia se cumprido.
Hilda já havia providenciado a retirada do espírito de Clint logo no dia anterior, e ele já se encontrava em boas mãos. Junto de Olga, sua mentora, Hilda retornou ao apartamento dos irmãos para acompanhar o desfecho do último episódio daquele drama familiar. Olga então comentava junto a Hilda o resultado tardio obtido junto a Joelma e Lineu, seu irmão.
— Também utilizamos Hilda, o auxílio dos animais para promovermos o despertamento dos sentimentos humanos. Em que pese a perda do velho amigo Clint, é notável o arrependimento e remorso dos dois irmãos. É tardio, mas é notável. De maneira que o sacrifício do Clint não foi em vão. Esquecido, Clint não tem mais razão para voltar aqui. Poderiam tê-lo salvado, e bem antes, mas por conta da dor que sentiram, e que não é uma encenação, de modo algum, parecem estar muito cientes do erro que cometeram.
Penso que doravante enxergarão os animais sob outro prisma, e o nome disso Hilda, é evolução. Um dia poderão saber que evoluíram com a ajuda de um cão por eles abandonado. Despertamento e evolução é tudo Hilda. Clint na sua simplicidade é um nobre vencedor no cenário das lutas humanas. Ele influenciou, e muito positivamente, seres bem mais avançados do que ele na escalada evolutiva. Tal é a real grandeza do papel destes animais.
Hilda ainda perguntou:
— Mas Olga, e nos outros casos? Os humanos tiveram algum proveito?
— Vamos ver, disse Olga. Maria Inês foi o anjo da guarda de Sila, incontestavelmente. Aliás, foi por isso que pedi que você a aproximasse da cadelinha. Já com o Tim, o caso foi mais complicado, pois, seu tutor não demonstrou nenhum interesse pelo animal. Na realidade Hilda, quando o Tim se viu na rua e capturado pelo serviço de zoonoses, já estávamos nos preparando para retirar o Tim em definitivo.
Se o tutor não demonstra maior interesse pelo animal, chega um momento que o melhor a fazer é retirá-lo de lá. No caso do Tim não havia mais um anjo da guarda ao qual pudéssemos recorrer. Sondadas as mentes humanas, se alguém demonstrasse interesse, faríamos o mesmo procedimento que fizemos com a Sila.
Já no caso do Banzé, insistimos muito com o Leonel na expectativa de que não abandonasse seu cãozinho. Se tivesse sido um pouco mais altruísta, e menos preguiçoso, poderíamos ter obtido sucesso. Bastava ajudá-lo a encontrar o Banzé. Certamente poderíamos fazer isto. Lamentavelmente, foi Leonel que desistiu. Quando mais precisávamos dos esforços dele. Aí, Leonel não evoluiu e tudo se acabou. A decisão foi dele, não podemos intervir.
Hilda ouvia atentamente. Estava pensativa e surpresa ao mesmo tempo. Era tudo muito novo. Ideias e sentimentos muito diferentes dos habituais da Terra surgiam sem se esperar. Era tudo notável, às vezes difícil e complexo, mas ainda assim, estranhamente belo. Ela mesma, recém-chegada no grupo de proteção espiritual aos animais.
Estava em uma de suas primeiras incursões no auxílio de cães encarnados na Terra, mas que viviam experiências de abandono, violência, fome e maus tratos. Havia adotado o corpo e o rosto juvenil, do tempo em que, em sua última passagem no mundo físico, aos 14 anos precisou trabalhar em uma loja de animais, dando banho em cães e gatos. Amor à primeira vista, apaixonou-se.
De família muito pobre, sonhava em ser veterinária, mas nunca pôde obter os certificados e diplomas da Terra. Foi na prática, no dia a dia do trabalho com animais, e acompanhando quem tivesse maiores conhecimentos para oferecer, que Hilda se tornou querida de muitas pessoas do bairro, que confiavam seus bichanos e cãezinhos, seus filhos, às mãos carinhosas de Hilda.
Caridosa e compassiva, nunca deixou de ter em sua casa humilde aqueles 3 ou 4 bichinhos, poucos que fossem, mas recolhidos das ruas estendendo sua generosidade para além daqueles que podiam pagar. Assim foi por toda a sua vida de trabalho e amor aos animais. Retornou ao aprisco do Senhor aos 78 anos, por causas naturais.
Recebida por parentes e pessoas queridas de outros tempos, por seus esforços anônimos e dedicados à Criação Divina foi convidada para atuar junto de seus queridos amigos de quatro patas. Tão logo quanto possível, retomou a face da menina de 14 anos e passou a acompanhar as equipes de tratadores e socorristas de animais em suas incursões rumo aos abandonados da Criação.
Aprendiz de servidora do Cristo, em espírito, realizava as ações simples e singelas de atenção, zelo e amparo espiritual, mas que neste contexto; agora são privativas daqueles que honraram a mensagem do Mestre Galileu: “Ama a Deus acima de todas as coisas, e ao teu próximo como a ti mesmo”.