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As estrelas e o tempo

                                                                                                   Foto: Wikimedia Commons   

Por: Antonio Mata 

Andava com as mãos e as unhas sujas. Meio suarento, os cabelos negros na altura dos ombros e a pele amorenada de tanto percorrer os campos. Aquele menino curioso, em breve impulsionaria um dos mais interessantes processos civilizatórios, dos muitos que a Amazônia e a América do Sul puderam ver.

Era algo comum encontrá-lo de joelhos recolhendo algo, ou prestando atenção em plantas, brotos e sementes que encontrava pelo chão. Tinha uma preocupação muito particular em conhecer as formas de vida vegetal.

Adquirira o gosto pelas plantas e pelas ervas acompanhando sua mãe. Ainda menino, aprendera a prestar atenção na posição da lua. A melhor delas, dento de seus propósitos era a lua cheia, nascendo, muito brilhante a leste, às 18 horas. Estando no alto do céu à meia noite, então desce tocando no horizonte por volta das 6 horas, à oeste.

Duas horas acima do horizonte, bastava estender os braços, a 90 graus com o corpo, na direção da lua. Daí espalmava as mãos e contava oito dedos, logo abaixo da lua. Caminhando para o final da madrugada e o amanhecer, este é o momento mais esperado por sua mãe e que ele também aguardava ansiosamente.

Neste momento as plantas ainda estão cheias de seiva. O ideal seria à meia noite, até às duas horas. Só havia um problema, a presença de predadores. Era preciso deixar que se alimentassem primeiro. Após as quatro horas da madrugada, e afastados da beira do rio, era mais seguro.

Cresceu aprendendo a conhecer as ervas da região para todo tipo de mal. Desde dores no estômago e de cabeça, até pancadas e cicatrização de cortes. O cultivo de tais ervas tornou-se mera consequência, tão logo conhecessem as plantas mais adequadas.

Do gosto pelas ervas, acompanhando sua mãe, ao gosto pelas coisas da floresta foi só um pulo. Passou a apreciar o crescimento das árvores, a sua distribuição. As plantas que cresciam ao seu redor, aquelas outras que se apresentavam na borda, no começo da mata. Ao longo dos anos descobriu o tempo de crescimento de várias delas, a dureza e a qualidade do lenho.

Descobriu a vantagem de se ter espécies próximas, e assim entendeu que era melhor plantar árvores ao redor do que derrubar a mata em áreas que acabavam se tornando cada vez mais distantes.

Não era propriamente a distância que o preocupava, mas a perda das grandes florestas de galeria. Notava que a população crescia, estavam abrindo grandes lacunas. Sua perda incorria também no afastamento dos animais. Percebeu rápido o valor para aquele povo das florestas que margeavam os rios. Na realidade, queria extrapolar sua lógica, de modo a ocupar parte dos cerradões, muito extensos. Precisava de espécies que lhe permitissem cultivá-los. Espécies que não concorressem com a floresta, produzissem alimentos, enquanto buscavam recuperar as galerias já desflorestadas. Hoje diriam que pensava fora da caixa.

Um grupo de pessoas passou a discutir estas propostas e apresentar outras. Foi assim que descobriram que o tempo de recuperação da floresta explorada era de 25 anos.

Observou a preferência das castanheiras da região pela proximidade dos rios. Após várias tentativas, obteve mudas que passou a plantar nos arredores, a caminho do rio. Promoveu um trabalho extenuante. Queria observar o comportamento das raízes, e para isso, cavavam próximos às árvores para conhecer sua distribuição.  

Descobriu que a castanheira levava oito anos para começar a produzir. Era um prazo exequível para se trabalhar. Mais quatro anos e teria a árvore já madura. Já o ipê precisaria de doze anos, antes de pensar em cortá-lo. O ideal seria aguardar dezoito anos. Também o cedro precisaria de dezesseis anos para o corte.

Do compartilhamento de tais observações e estudos, acabou surgindo uma forma de pensar que favoreceria o crescimento daquele povo, sem, contudo sacrificar as florestas de galeria.

Das discussões, observações e estudos surgiu aquilo que um dia chamariam de manejo florestal. Era isto o que realmente queriam fazer. Ante a restrição espacial de desenvolvimento das florestas, queriam adequar suas necessidades às possibilidades da mata, ampliada por novos conhecimentos.

Compreendeu ainda que as árvores não possuem o mesmo poder de curar seus ferimentos como ocorrem com os seres da fauna. Se sofrer um dano qualquer ou ferimento, que não a destrua, o ferimento será envolvido e ela continuará crescendo, levando o ferimento consigo. Quis aproveitar a ideia de envolvimento nas estruturas de uma paliçada. Porém, de início não teve resultado.

Certa vez sonhara com uma sequência de árvores alinhadas, uma do lado da outra. Correu até a extremidade, a ponto de ver que na lateral o alinhamento prosseguia. Acordou pensando naquilo que vira e buscando interpretar seu sonho.

Lá pelas tantas, lembrou de certos arranjos que faziam com plantas. Não é que dividiam o terreno com as chamadas cercas vivas? Pois bem, criaria uma paliçada vida, nos limites da floresta, onde se encontrava com o cerrado, e completaria com troncos. Se daria certo ou não, só fazendo para saber.

Idealizou então um sistema em formato retangular. Áreas específicas ao redor dos sítios humanos onde obteriam tanto o alimento, quanto a madeira. Já homem feito, apresentou a proposta, que passou a ser aplicada por sua gente. Logo havia grupos de pessoas responsáveis por estas áreas de cultivo e reflorestamento de acordo com a proximidade do rio. Para isto aprenderam a fazer a elevação da água para as lavouras em terras mais acima. Estimou que a grande aldeia suportaria entre 20 mil e 25 mil pessoas. Pensavam estar criando um gigante.

Havia muito empirismo naquelas ações. Aprendiam idealizando, aplicando e observando o resultado. Se de fato daria certo, só o tempo diria. E às vezes demorava para se perceber o resultado.

Foi o que aconteceu com a disposição em retângulo. Logo entenderam que tal desenho, dizia mais respeito à limitação da área como um todo. A disposição do casario, que por sinal continuava crescendo, tinha o formato de círculos concêntricos. Círculos estes cercados pela disposição das matas, do reflorestamento e das lavouras.

Buscavam desenvolver um modelo de ocupação que permitisse oferecer segurança; comida; água; madeira e reposição. Era óbvio que haveria um último círculo de habitações, o qual não poderia ser ultrapassado. É da contagem dos círculos e do casario que se chegou ao conceito de população limite, quando então, anos antes, os mais jovens deveriam construir nova aldeia relativamente próxima, para apoio mútuo, porém com relativa independência administrativa entre elas.

Quando a população cresceu, assim como as lavouras e o reflorestamento, o que se viu foi realmente a formação de um grande  retângulo. A base do retângulo tocava a margem do rio. A floresta ao redor e as áreas já recuperadas prosseguiam como uma típica galeria, um núcleo urbano de formato circular, ligeiramente lenticular, tangenciava a margem do rio, e as lavouras irrigadas de ambos os lados, na medida em que se afastavam do canal. Estavam finalmente satisfeitos, tudo estava dando certo, como jamais imaginaram.

Não se passaram os vinte e cinco anos de recuperação da floresta, e notaram que haviam criado, não uma aldeia gigante que não parava de crescer. Por vez, ela era tendente ao estrangulamento, contra as paredes da paliçada.

Foi assim que começaram a pensar em termos de cidade, e que ela, assim como tudo na vida, crescia. Também não era só isso. As pessoas resistiam à ideia de deixar o lugar, pois que havia alimento e segurança para todos. Sim, isto era verdade. Por quanto tempo?

Discutindo um novo desenho, Yandara, a cidade do meio do dia, receberia sua primeira ampliação. A antiga paliçada viva, surgida de um sonho, seria substituída por uma muralha.

Os pensadores se reuniram por diversas vezes, buscando uma solução, pois se havia comida, água e segurança, não podiam obrigar os demais a sair de Yandara. Foi quando surgiu a ideia da muralha. A muralha estava apoiada em outra coisa que se havia imaginado: o tijolo de argila e palha cecado ao sol.

Composta por dois muros de adobe, tijolos de argila e palha, com o centro preenchido com terra. A resistência do conjunto era grande e permitia construir com uma altura satisfatória. Uma grande novidade para os Yandará. Em cinco anos a muralha de adobe ficou pronta. A população da cidade, que não parava de crescer, então contava com 28 mil habitantes.

A muralha possuía um formato ligeiramente retangular. Na realidade, ao crescer passou a acompanhar as margens do rio. Todo o restante do desenho, repetia a antiga disposição.

Houve, porém uma disposição nova. Uma proposta para desafogar o direcionamento da população, sempre no sentido do centro. Um círculo concêntrico brotou na extremidade direita do círculo maior, deixando antever que poderia muito bem acontecer a mesma coisa do lado esquerdo, ampliando o desmatamento e incorporando área à cidade, porém criando centros menores ao redor. Influência do centro da antiga aldeia, onde todos se reuniam, e que havia se tornado impossível.

 Era importante assegurar o acesso a água e ao transporte pelos rios. Da ideia original de se colocar observadores sobre as árvores mais altas, sobreveio novo entendimento útil à defesa da cidade nascente, junto ao rio e sobre o rio. construíram postos de 15 metros de altura, para impedir o acesso de possíveis inimigos pelo rio. Yandara começava a chamar a atenção.

Além disso, a conjugação de duas canoas longas, fez surgir o primeiro catamarã. A partir do catamarã, uma estrutura de seis metros de altura, permitia a defesa móvel, em um ângulo elevado, contra as canoas que tentassem se aproximar do embarcadouro da cidade.

Ibirá, o que brota da terra, já se aproximava dos 60 anos. Assistira o crescimento e a prosperidade daquele povo ao qual servia com destemor. Anahi, sua mãe, já havia partido, rumo à terra dos espíritos há mais de 20 anos. Foi só o tempo de assistir ao crescimento de seus netos.

Tanto quanto a cidade crescia, também despertava a cobiça de outros povos. Mais interessados na pilhagem do que em descobrir e desenvolver conhecimentos novos, ameaçavam a cidade de Yandara de tempos em tempos.

Ainda ao tempo da grande aldeia, quando os homens buscavam formas de se prevenir contra os ataques de grupos expansionistas, interessados na pilhagem, Ibirá, então aos 19 anos, propôs colocar um posto de observação em cada uma das duas maiores árvores de angelim, próximas da aldeia.

Os postos ficariam em torno de 50 metros de altura, podendo observar tanto a mata, como o cerrado próximo e as lavouras até a extensão do rio. Foi isto que no futuro inspiraria os postos junto ao rio e os catamarãs. Só não parou por aí.

Curioso e observador, ao encontrar crianças brincando com pedaços de obsidiana, quis conhecer aquele material. Comumente eram utilizados como ferramenta cortante.

Os pedaços menores eram perfurados e utilizados como adorno. Notou que alguns pedaços eram mais claros e deformavam a imagem do outro lado, fazendo-a aumentar, ou diminuir de tamanho.

Juntou-se às crianças e brincava com os pedaços do material, quando se deu conta de uma outra coisa. Ao se combinar dois pedaços de obsidiana, com a mesma capacidade de aumentar a imagem, percebeu que o conjunto de lentes dirigidos ao longe, trazia a imagem para perto.

Deu um jeito de encaixar as lentes em um tubo de bambu, até obter a melhor imagem à distância. Subiu no angelim e entregou o novo equipamento ao observador de plantão, na pequena vigia, no alto da árvore.

A dificuldade ficou por conta de se encontrar uma combinação de pedaços de obsidiana, para se obter o mesmo efeito. É que normalmente, não dava certo, e ninguém sabia calcular coisa alguma, além da má qualidade das lentes.

Nunca se poderá dimensionar o valor da descoberta de Ibirá, junto às medidas  de defesa da cidade. Ibirá contava então, vinte e dois anos. O novo par de lentes, adequadas para uma luneta, somente seria obtido seis anos depois.

Aqueles paus de se enxergar longe se tornariam um dos equipamentos mais valiosos dos Yandará. Não podendo cair em mãos inimigas sob forma alguma.

Naqueles idos a paliçada que cercava o aldeamento era feita com paus fincados no chão, a quatro metros de altura e trançados com cipós para obterem resistência estrutural. Contudo era uma estrutura frágil e que exigia observação constante, pela facilidade de se saltar a paliçada.

A primeira modificação real seria proposta por Ibirá com a criação  paliçada viva. Um episódio marcou Ibirá e a necessidade de se evoluir com a paliçada.

Ainda ao tempo da antiga paliçada de quatro metros, a aldeia foi atacada por extenso grupo expansionista, decidido a saquear o aldeamento, em busca de objetos que pudessem ter valor e principalmente prisioneiros a serem submetidos a rituais de antropofagia.

Após intenso combate, não conseguiram romper a paliçada, suportada por homens armados com lanças, machados de obsidiana, arcos e flechas. Utilizando-se de breu, obtido em depósitos de superfície, os defensores disparavam flechas incendiárias em montes de palha e galhos secos espalhados ao redor da paliçada, de modo a iluminar a noite e diminuir a chance do inimigo se esconder na escuridão.

Também haviam descoberto que as pontas das flechas, passadas nas fezes, provocavam inflamações, mesmo em arranhões. Era o começo da ideia do envenenamento e da guerra química.

A luta, sempre rente à paliçada, foi cruenta. Ibirá combatia ao lado de seu pai na defesa e manutenção do único obstáculo entre eles e milhares de invasores, comedores de carne humana. Se aproximavam da paliçada atiçando lanças e buscando escalar o cercado a todo custo.

Ibirá atingiu um, quando tentou escalar a paliçada com uma lança, enquanto seu pai estourava os miolos de outro com uma clava. Atingiu um segundo, um terceiro e um quarto. Em dado momento, entre as sombras e a luz bruxuleante das fogueiras, Ibirá via a paliçada tomada de invasores gritando, urrando, enquanto por cima da cerca defensiva caíam flechas.

Os guerreiros Yandará buscavam deter os invasores com tudo o que tivessem nas mãos. A ponto de criarem um degrau, feito com os corpos dos invasores do lado de fora da paliçada.

— A paliçada não vai aguentar! Ela vai cair!— Alguém gritou.

— Não vai, não! Lutem, não parem de lutar! Suas mulheres e filhos estão lá dentro!— Era Inaiê, conclamando seus guerreiros à resistência, até o último homem, se preciso fosse.

Inaiê e Ibirá se entreolharam, como quem olha um para o outro pela última vez.

O grande guerreiro Yandará solta um grito de ferocidade e passa a estocar no alto da paliçada com seu filho ao lado fazendo o mesmo. O degrau já tinha mais de um metro de altura de corpos amontoados. Prosseguiram estocando, enquanto os canibais  tentavam saltar para o perímetro interno.

Diversos corpos já se estendiam no perímetro junto a paliçada, pelo lado de dentro. Corpos de canibais e de Yandará, começavam a se amontoar por dentro também. Em dado momento duas flechas simultâneas atingem Inaiê, no peito e no olho direito. deitado sobre o chão, olhando para o alto, suas últimas palavras foram:

— Continue Ibirá, não pare Ibirá!

Ibirá prosseguiu tal e qual máquina de matar, até não se aguentar mais de pé. Só lembrava de olhar para a paliçada, e só enxergar homens mortos, por entre os paus e a luz já enfraquecida das fogueiras. Tornou a cair desacordado e exausto.

A vida era assim, rude, cruel e real.

Após várias tentativas de invasão, ante o insucesso, os expansionistas antropófagos atearam fogo na floresta plantada pelo povo de Inaiê e Ibirá. Cedros, castanheiras, ipês, entre outras espécies, queimaram por toda noite, por simples demonstração de desprezo para com os Yandará, pois não viam grande valor naquelas árvores.

Sob perdas extremas, os humilhados e vencidos expansionistas, ainda durante a noite, se afastaram. Pela manhã deixaram o campo em definitivo. Levariam pelo menos dez anos para repor tantas perdas, e deixar uma nova geração crescer.

Naqueles dias de intensos combates, Ibirá perdera seu pai. Quando as lutas cessaram e o inimigo desistiu do seu intento, trataram do sepultamento de seus entes queridos que morreram na defesa de Yandara. As perdas em vidas humanas foram substanciais.

Ibirá, encolhido em um canto, repassava mentalmente episódios da vida na companhia de Inaiê.

O guerreiro e caçador Inaiê, era mais alto e mais forte que Ibirá na idade adulta. Passou a maior parte de seus dias nos tempos em que os Yandará estavam totalmente submetidos às adversidades da natureza, fosse na floresta, fosse na vastidão dos cerrados. Os caçadores Yandará tiveram que se especializar tanto na caçada em cerrado, como na caçada em floresta.

No cerrado podiam encontrar tanto o tatu-canastra, como o gliptodonte, o tatu gigante. Dava preferência ao menor, pois a carne era mais saborosa, a despeito dos 800kg de carne do gigante gliptodonte.

Inaiê e seus caçadores não dispensavam o eremotherio, a maior caça que os Yandará jamais avistaram, nos seus 6 metros da ponta da cauda, até o focinho do bicho. Um herbívoro com 4 toneladas de carne. O suficiente para alimentar a aldeia inteira, somente com a carne do animal.

O toxodonte, um parente do rinoceronte, com seus 1400kg, também atraía o bando de caçadores. Entretanto, tudo na vida tem o seu preço. O cerrado também era domínio da onça-pintada e do Smilodon, o felino-dente-de-sabre, ambos animais de tocaia.

Eram tocaieiros, tanto quanto eles próprios. Caçadores e felinos se respeitavam mutuamente, havia caça para todos, melhor não mexer com quem está quieto. Todos gostavam do catitu, do veado-mateiro, da anta e da paca que vagueavam pelos campos e florestas da região.

Homens ou feras eram caçadores e tocaieiros, com uma vantagem para Inaiê e seus homens. Faziam armadilhas, eficientes e bem-feitas. Nem a astuta onça-pintada gostava de homens e de armadilhas por perto.

O rio era o grande imã que atraía e saciava a sede de todos. Ibirá sempre teve particular atenção para com o rio e a irrigação que ele permitia. Ibirá era um espírito à parte dos demais. Se seu pai era o grande líder guerreiro e o caçador, Ibirá era um homem à frente do seu tempo, como se diria hoje em dia. Às vezes, Deus nos manda um Ibirá, apenas para que os povos possam se adiantar mais um pouco. 

Ainda ao tempo de criança, Ibirá fora salvo por Inaiê que estava sendo espreitado por uma onça, ao sair de madrugada para recolher ervas e se afastou sozinho dos demais. Uma flecha certeira e a presença de espírito do caçador detiveram o animal, que já espreitava seu filho.

O caçador tem papel central na aldeia. Oferece o alimento, mas também a proteção a um grupamento humano que estava se tornando cada vez mais sedentário.

Não é apenas a carne, mas o couro, os ossos para diversas aplicações, desde fazer agulhas para as roupas, passando por vários utensílios, até a preparação de adesivo. Das unhas e cascos se faziam adornos.

Dos tendões, faziam-se cordas e cordões de excelente qualidade e resistência à tensão para os arcos dos Yandará, os melhores arqueiros daquelas paragens.

O povo Yandará não se impunha tão somente pela coragem, mas pela qualidade e técnica expressos em seu trabalho. Ainda assim,  era inegável que o consumo de maiores taxas de calorias, seria mais difícil sem a presença dos caçadores.

Inaiê não simpatizava nem um pouco com o gosto do jovem Ibirá pelas plantas, e por querer compreender o crescimento e a multiplicação das árvores. Preferia que se aprimorasse na liderança dos caçadores, junto a ele. Porém reconhecia não só a coragem e o destemor do rapaz, mas também sua inteligência, ao enxergar coisas que fugiam à mente dos demais. Talvez houvesse mais a se aprender, em prol do povo Yandará, do que a liderança dos caçadores e de sua gente.

Na medida em que Ibirá se envolvia cada vez mais e se ocupando com as questões da segurança interna da cidadela, o estudo das ervas medicinais, plantas comestíveis e reprodução de árvores, Inaiê entendeu que era melhor deixar que o rapaz prosseguisse no seu caminho.

De todo modo, era ponto pacífico por toda a cidadela, que Inaiê deveria ser o líder de todos. Ibirá por vez, estava fadado a ser o primeiro apoiador junto a seu pai. A coragem do pai e a sabedoria do filho eram imbatíveis. Estava prestes a nascer a primeira junta  governativa, do primeiro reino, da primeira dinastia, da primeira cidade estado.

O apoio do pai foi muito importante para que Ibirá, ainda muito moço, não se visse discriminado pelos demais caçadores, em uma sociedade patriarcal. Isto poderia criar obstáculos, às vezes intransponíveis, àquele que se mostraria de grande valor para o povo Yandará.

Ibirá foi a cabeça pensante do desenvolvimento da aldeia e de sua gradativa transformação em cidade. Uma cidade estado estava em vias de nascer. Ainda que ninguém fizesse propriamente ideia do que isto pudesse significar, nem Ibirá.

Tal como um nevoeiro que se deposita, as ideias simplesmente se apresentavam e se acomodavam, cada uma no seu lugar.

Sentado no chão, vendo os corpos sendo retirados e reunidos para o sepultamento, Ibirá observava as estrelas no firmamento, após aquela batalha  terrível que ceifou a vida de tanta gente.

As estrelas e o tempo, presenciavam tudo, e a ninguém contariam nada, por maiores que fossem os feitos dos homens. Do firmamento, assistiam o surgimento de uma nova forma de se organizar e viver para que todos pudessem crescer juntos.

Após todo o risco assumido, ficou evidente demais que a paliçada de madeira estava se tornando inútil, e que se quisessem oferecer proteção a toda a população, seria preciso algo melhor.

Foi a partir daí que surgiu a paliçada viva e reforçada por estacas e postos de observação. Com o tempo acabariam por construir uma extensa muralha ao redor da cidade. Os homens de decisão de Yandara estavam às voltas com tais ideias, na expectativa de fazer a coisa funcionar.

Por razões simples. Uma coisa era construir uma casa de um, dois, ou três pavimentos. A madeira e a argila davam conta da construção de casas de pau a pique, com a cobertura de palha, ou cascas de árvores. Fazer uma muralha era muito diferente por conta das dimensões e do peso envolvido.

Haviam feito várias experimentações, visando selecionar a melhor muralha. Todos esbarraram nos mesmos problemas. As estruturas, na medida em que se tornavam mais altas, ficavam instáveis demais. Outro problema a ser resolvido era a colocação de vigias permanentes em toda a extensão da muralha. As propostas apresentadas só faziam defesa no ponto. Eram vigias largas, feitas em madeira e escoradas pelo lado de dentro da muralha. Porém, se uma fosse atacada, não havia como mandar reforço imediato. Rapidamente a ideia avançou para um passadiço, um corredor contínuo e elevado. Resolvia o problema e a proposta foi aceita. Contudo, ainda havia mais um problema que foi demonstrado durante um teste. A fragilidade do conjunto.

Uma grande tora foi carregada por 26 homens e arremessada diversas vezes contra um trecho de muralha que estava sendo construído. Ainda não era objeto de estudo, e naquela hora ninguém pensou nisso, mas tinham acabado de inventar o aríete.

Um instrumento de sítio que apavoraria cidades fortificadas por milênios, até o aperfeiçoamento das catapultas e a chegada posterior do canhão de pólvora negra.

Por sinal, o trecho de muralha que estaria sob ataque era a melhor das propostas. Com 15 pancadas do aríete, a muralha rachou. Com 22 pancadas, abriu-se um buraco de 4m². Pronto, em menos de uma hora de sítio o inimigo já podia entrar. Imagine-se vários aríetes martelando vários pontos da muralha. Mais uma vez retornavam à marca zero.

Muita gente estava às voltas com a solução daquele problema, que parecia até então, insolúvel. A utilização de pedreiras era desconhecida, até porque a cultura Yandará não conhecia as construções utilizando blocos de pedra.

Estavam em uma planície sedimentar, onde os depósitos de argila eram abundantes. Era preciso uma solução utilizando os conhecimentos de materiais existentes, ou avançar mais um degrau, rumo a novos materiais. Este último, verdadeiro salto mortal para aqueles homens, era o menos provável de acontecer.

Mesmo Ibirá não conseguia encontrar uma saída coerente, que ajudasse a dar um passo seguro na construção de uma muralha eficiente e segura. Absorto em seus pensamentos e preocupações, Ibirá, certa feita adormeceu. Viu-se então em um lugar desconhecido, onde extenso grupo de trabalhadores estavam enfileirando blocos vermelhos como terra.

Se aproximou, a ponto de manusear um daqueles blocos. Notou que o bloco era maciço e sólido. Isto aguçou sua curiosidade. Foi até a construção que estavam fazendo e viu que estavam colocando estes blocos, uns sobre os outros.

Caminhou até a extremidade da construção, e pôde ver que existia outra estrutura por detrás da primeira, que acabava por esconder a anterior. Avançou mais alguns passos, a ponto de ver que havia mais uma parede, anterior às duas. Ibirá ficou boquiaberto, “que doideira e essa, o que estão fazendo aqui?”, perguntava.

Olhando para o alto pôde ver que havia um morro, uma elevação por de trás daquelas paredes de blocos. Fez a volta e subiu no alto da elevação. O que viu achou por demais intrigante. As paredes estavam sendo construídas, escoradas, unidas com aquele morro, como se fossem uma coisa só. Acordou no meio da madrugada, correu para fora de casa, chamou meia dúzia de homens, que não entenderam qual o demônio que perturbava Ibirá daquele jeito. O homem parecia surdo e cego. Pegou água e argila, misturar tudo. Mandou fazer caixas de madeira e pôr a argila socada dentro das caixas, para que pela manhã fossem  expostas ao sol.

As habitações de seu povo eram feitas de pau a pique. Uma malha de madeira ou cipó e madeira, preenchida com terra úmida. Se houvesse a necessidade de fazer um segundo piso, era só reforçar a estrutura e fazer um piso de madeira unido às paredes. Para um terceiro andar fazia-se o mesmo. Só que com a altura ficava cada vez mais instável trabalhar com pau a pique.

Ao final do primeiro ano, mais de mil metros de sua muralha estava de pé. Dez paredes de tijolos maciços na face exterior e cinco na face interior. Entre as paredes surgiu um espaço vazio que recebeu toras de madeira centrais, até a altura da muralha que era de dez metros.

Todo o espaço interno foi então preenchido com sucessivas camadas de terra umedecida e socada. Em espaços regulares mandou fazer torres de vigia com mais quatro metros de altura, cujas estruturas estavam fixadas por dentro da terra socada.

No nível da altura da muralha mandou fazer parapeitos para proteger os defensores, muretas internas para evitar que caíssem de lá de cima, e escadarias de acesso rápido. Quando tudo ficou pronto, possuía um extenso corredor elevado com quatro metros de largura. Estava a caminho a primeira muralha de uma cidade fortificada naqueles confins.

Os tijolos de adobe passaram a substituir o pau a pique na construção das casas, onde o terceiro piso, então se mostrou mais estável. Daí para a ideia de uma casa grande para abrigar os líderes e suas famílias, foi só mais um pulo.

As estrelas assistiram o nascimento de Yandara, e a ascensão dos Yandará, tanto quanto o seu ocaso.

No seu ápice tiveram não mais que 200 mil habitantes, distribuídos entre quatro cidades de relativa independência, todas fortificadas, além de diversas aldeias próximas às cidades. Todos, porém unidos pelo mesmo povo e por um mesmo rei. Somente Yandara se comportou como uma verdadeira cidade estado, porém não ofereceu total autonomia às demais, que lhes enviavam impostos sob a forma de suprimentos. Com o tempo descobriram um minério brilhante e relativamente raro, que se concentrava aos poucos em certos pontos dos rios. Era o ouro em pó, que se tornaria por demais valioso na ampliação do comércio entre as cidades e demais povos.

Assim, a maior cidade continuou sendo Yandara, a capital, até o fim da cultura Yandará. Ela mesma, no seu auge, nunca ultrapassou os 70 mil habitantes.

Sem conflitos e disputas pelo poder, Ibirá se tornou o primeiro rei. Pelo simples fato de que todos confiavam nele, o rei sábio.

Ibirá prosseguiu contribuindo com o crescimento do seu povo, junto a seu grupo de discípulos, onde se destacou Kaimã. Ibirá retornou à terra dos espíritos ancestrais aos 72 anos, sendo recebido por seus pais, guerreiros, caçadores, amigos e parentes. Já Kaimã, tornou-se conselheiro de Akim, filho de Ibirá, que o substituiu na condução de seu povo.

Após Akim, que morreu jovem, de causas naturais, sobreveio Obery, seu tio. Com o desencarne de Kaimã, e depois Obery, as cidades foram ficando sem o seu pensador da cultura Yandará. Gradativamente, o influxo de ideias e iniciativas foi se detendo. A qualidade das decisões decaía a olhos vistos. Tal influxo, criado a partir de Ibirá, foi aos poucos se perdendo, superado pelas intrigas do reino. Um dos problemas, é que o povo Yandará era ágrafo, o que detinha o seu progresso.

Mesmo assim a sociedade Yandará viveu pouco mais de 400 anos, sendo enfraquecida por disputas políticas internas, e pela pressão de outros povos próximos. Uma de cada vez as cidades foram invadidas, até que Yandara se viu sozinha. Há de se lembrar que a antiga, porém bem mais recente cidade de Tróia caiu, não por conta de desastres naturais, mas pela fúria também de seus invasores, sendo a bela Helena apenas o mote.

Era um tempo de muito frio na região. Viviam sob o domínio da última glaciação. O sentimento de preservação das florestas de galeria, que emanava do coração de Ibirá, não era à toa. O cerrado aberto, hostil, frio e afastado dos rios, estabelecia os limites da progressão daqueles povos.

Não adiantaria descer o rio na busca de novas florestas sem se envolver em guerras, era preciso saber mantê-las. Apenas encontrariam outro grupamento humano pelo caminho e um novo conflito. Assim, eles se tornariam os invasores.

O grande rio, aquele que um dia seria conhecido como Solimões. Grande na concepção da época, pois no avanço dos milênios, se tornaria muito maior.

O que Ibirá sonhou e buscou realizar, foi a conciliação do homem com o espaço natural em que ele vivia. Sem que um prejudicasse o outro. Na realidade, o povo Yandará era o único que pensava dessa forma. Crescer sem perturbar, ocupar sem destruir.

O próprio Ibirá não se deu conta do rápido processo de mudanças. Basta lembrar que a construção das muralhas significavam grandes desmatamentos, e a manutenção de populações cada vez maiores, também. O verme de sua própria destruição, já estava com eles. As novas cidades surgiram por sobre outros povos, dominados e expulsos que foram. Mais pressão populacional e mais desmatamento das galerias.

Havia o sonho de Ibirá, este compartilhado por muitos. Do outro lado havia um reino em ascensão. A conciliação foi se tornando quase impossível.

Os valentes e prósperos Yandará esbarraram na cobiça e na ganância, que não era da natureza, mas chaga dos próprios homens. O saque ainda era mais fácil, do que pensar e criar. Caso não tombassem, os próprios Yandará, diante de novos invasores, o desequilíbrio ambiental já estava a caminho, espreitando toda gente. O solo, na área das galerias, foi se tornando infértil, exigindo cada vez mais desmatamentos. O reflorestamento idealizado por Ibirá, já não mais acompanhava.

As estrelas viram tudo, o tempo acompanhou tudo. Foi a 10 mil anos, foi a 20 mil anos, ou seriam 100 mil? Como saber?

Sem explicação, até para quem viu, de repente as chuvas foram se tornando cada vez mais intensas, e a cada 25 anos as florestas se expandiam desta vez, e sem se deter, por sobre os cerrados, até quase estes desaparecerem. Só ficaram pequenas e poucas faixas, reminiscências que apontam para as grandes extensões de cerrado que existiram um dia.

No espaço de pouco mais de 100 anos, a maior parte da enorme região tornou-se verdejante, e depois até cobrir quase tudo. A megafauna por sua vez desapareceu, sem que se saiba propriamente qual a razão. Uns acreditam que foram os homens, os caçadores. O que faz muito sentido.

Entretanto, ainda se sustenta que a mudança climática muito abrupta, lhes tirou suas referências de vida, além de serem animais de clima frio, submetidos a um clima quente e úmido.

Pode ser que vivessem no cerrado, porém na borda das galerias, onde encontravam seus alimentos. A borda das florestas possui  certas particularidades. O fim da vegetação de borda, pois a floresta ocupou tudo, pode ter modificado substancialmente a dieta destes grandes herbívoros. A extinção dos carnívoros, foi então, mera consequência.

Yandara, e tudo o que mais se fez, há muito havia sido abandonada, pois seus invasores não compreendiam aquela forma de se viver. Sucessivas camadas de floresta e sedimentos  cobriram suas ruínas. Estaria então dez metros abaixo da superfície atual, ou seriam vinte, ou trinta metros? Era feita basicamente de madeira e argila.

Posteriormente, muito depois, com as chuvas, o rio se avolumou e conduziu as ruínas de adobe da cidade de Yandara, da beira do rio, para dentro de seu leito, onde o que restou de suas muralhas, terminou dissolvido nas águas do rio, ao longo de  muitos milhares de anos de intenso escoamento das águas andinas de um lado, e das chuvas vindas do Atlântico, do outro. As estrelas e o tempo. Ontem; hoje; amanhã e sempre.

                                            FIM

 

 

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