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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Atraso mental

                                                           

                                                                                                           Imagem: Public Domain - Down Hudson

Por: Antonio Mata

Sorridente, olhava para as próprias pernas sem parar. Ao aproximar-se, por um momento não compreendeu o motivo de tanta alegria da parte dela. Parecia ter recebido naquele momento, um presente há muito desejado.

— Nossa, estão aqui! Minhas pernas estão aqui! Eu já tenho pernas, mais uma vez tenho pernas!

Daquela onda de alegria, rapidamente entrou em uma dúvida, quase sem resposta.

— Faz tanto tempo. Será que vou realmente conseguir andar? Eu não sei. Foram muitos anos em cima da cadeira. Já não sei mais caminhar. Só sei que estou em minha décima oitava seção. Não lembro direito como vim parar aqui.

Contente com a recentíssima conquista de alguém que não podia ver, mas ouvia, Ênio puxou mais conversa. Deixá-la falar, ainda que rapidamente, das coisas que aprendera.

— Sei que existem ótimos fisioterapeutas aí onde você está. Gente que pode ajudar.

— Tem sim. Aqui é enorme, e cheio de gente também. Tem muitos médicos, enfermeiras, atendentes. Mas não é só um hospital. Aqui existem várias coisas. É uma espécie de vila. Uma vila de atendimento. Uma cidadezinha.

— Que bom. Agora me fale um pouco de você.

— Perdi as pernas em um acidente. Mas não foi só isso. Tem também o que fiz depois.

Lurdinha, era como gostava de ser chamada, mostrava os pulsos, com as marcas profundas.

— Me desesperei, achei que a vida tinha acabado. Todo mundo saía e eu ficava na cadeira o dia todo. Aí desisti, não queria mais. Parece que foi esse o meu erro. Acreditava que iria dar tudo certo, mas deu tudo errado. — Parou por um instante, como quem busca pensar em algo que era, por si só, ruim.

— Bastou o sangue escorrer. Eu vi tudo, até adormecer. Fui acordada por uns gritos horríveis. Tudo muito escuro. Me empurraram na cadeira. Aí corriam, corriam. Comecei a gritar pedindo para pararem com aquilo, mas não paravam. Acho que nunca pararam. Minha vida passou a ser assim. Eles me empurrando, eu com medo de cair da cadeira, gritando. Tentava saltar, me empurravam de volta. Foi assim até a exaustão. Não sei por quanto tempo.

— Até que algumas pessoas, cheias de luz e bondade, foram me tirar de lá. Me disseram que teria de voltar para a vida física. Mas teria de ficar sem as pernas mais uma vez e teria um atraso mental, para evitar que eu tentasse o suicídio de novo. Conheci muita gente boa. Disseram que ficariam comigo o tempo todo. Então completei meu tempo aí com vocês e retornei para cá. Pouco depois me deram minhas pernas.

— Não conseguia entender as conversas dos adultos, a linguagem. Aí me levaram para perto das crianças. Eu as entendia mais fácil. Então, passei a acompanhar aqueles que trabalhavam com elas. Como você, por exemplo. Aliás, devo lhe dizer uma coisa muito importante.

— Por favor, pode dizer.

— Vocês aí, na vida física, não fazem ideia de quantidade de pessoas que se beneficiam de um grupo de evangelização de crianças e adolescentes. É muita gente. — Dito isto, passou a alinhar os implicados e as implicações. As quedas morais que enxovalharam a terra com as suas ausências.

— São mães que não sabiam mais cuidar de seus filhos. Pais que abandonaram a família e agora querem recomeçar. Pessoas como eu, que precisam reaprender a viver com os demais. Suicidas que precisam readquirir o gosto pela vida. Adolescentes que não gostavam das pessoas e da sua infância. Que não puderam brincar ou que foram maltratados.

A lista prosseguia.

— Crianças abandonadas que precisam de companhia, ou simplesmente crianças que vêm visitar e brincar. Além de autoridades, gente de governo, que não cumpriram com as suas obrigações junto à infância e juventude. São prefeitos, juízes, policiais, tutores, além de outros funcionários públicos. A lista é muito grande, tem até governador.

Ênio agradeceu pelas palavras e esclarecimentos. Desejou sucesso em sua recuperação e se despediram.

Ao final da reunião mediúnica, levava consigo as impressões daquele encontro. Tão instrutivo, em mostrar o muito que Deus faz em favor de seus filhos, independente de quem seja e do erro que possa ter cometido.

Tristemente lamentável em sua fila de desertores das responsabilidades que assumiram, pensava consigo mesmo.

Assim prosseguia o amparo e auxílio aos necessitados de toda ordem, após os conflitos e falências da Terra.       

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