Foto: Dieni Portinani
Por: Antonio Mata
Tinha saído de casa ganhando a rua de terra batida que se estendia, ora vermelha, ora amarela; quente e monótona. Foi circular, andar pelo lugar observando as coisas. O aglomerado de cubículos feitos com restos de madeira, na maioria das vezes, mas também com papelão, telhas metálicas imprestáveis para telhado; mas utilizadas como parede de barraco.
Folhas de plástico, isopor e tudo aquilo que se pudesse lançar mão, tudo aquilo que um lixão houvesse de oferecer. Eram tal e qual pequenas estufas ordinárias, mas que abrigavam homens, mulheres, crianças, cães e gatos. Todos reduzidos à mesma condição animal. A caminhada se dava por entre barracos diversos que surgiam.
Chegava, achava a porta aberta ou encostada e já ia entrando nos cubículos, alguns até dotados de um certo capricho feminino, com as coisas relativamente arrumadas em seu interior. Eventualmente mais de um cômodo, tal e qual um quarto. Não era todo dia, mas vez ou outra ouvia “toma, vem comer". Algum abençoado, algum coração não enegrecido, lembrava do principal motivo daquelas andanças sem direção, nem hora, nem rumo.
No barraco de origem a comida já havia acabado, e essa condição era lugar-comum por entre os barracos, daí ser a primeira preocupação com frequência. Às vezes ouvia:
— Bitá vem pra cá, corre logo!
Ia ver o que era, pois surgiam coisas interessantes. Ainda que não fosse comida, mas podia ser uma brincadeira, ou algo novo que queriam mostrar, um penduricalho qualquer, ou se não, um bicho que tentavam acuar e capturar.
Coisas pequenas e sem valor rendiam mais de hora de diversão. Quando saía de um dos barracos, alguém gritava do outro lado da rua:
— Jabu, onde foi que você se meteu? Tá querendo tomar pedrada de novo?
O aviso era sério, tinha gente que reagia dessa forma. Uma hora, era para espantar, mas tinha gente que fazia diferente. Outra hora era só para se divertir, tacando pedras até acertar. Precisava tomar muito cuidado para não ficar na linha de pedradas, pois haveria ainda quem lhe achasse responsável.
Ainda dizia “Era só para espantar o cachorro". Tinha ocasião em que achava algum cacareco de brinquedo e isto era sinônimo de companhia, assim não tinha que perambular sozinho.
Por detrás dos barracos, não muito longe dali, existia um lugar onde caminhões haviam despejado lixo e todo tipo de entulho. Ainda que fosse frequentemente revirado por pessoas procurando bugigangas e restos que pudessem aproveitar nos barracos ou dentro deles, havia a possibilidade de encontrar outras coisas, por simples mudança no rol de interesses que aquele monturo pudesse despertar.
É que, por mais que catassem, ainda ficavam coisas outras para trás, merecendo uma nova revirada, uma nova busca. Todos faziam a mesma coisa, homens, mulheres, crianças e cachorros. E assim o dia seguia preguiçoso, tedioso e quente. Haviam duas coisas que também eram difíceis de se obter, tendo que procurar nos lugares certos.
Era pão e água limpa; pois nem sempre apareciam juntos, aliás, era um ou outro e às vezes, nem um e, nem outro. Na chuva era mais fácil porque muita gente juntava a água dos telhados.
Era ali naquele mesmo empoeirado lugar onde tudo acontecia. Todo dia a mesma coisa, as mesmas pessoas, como que imantadas e presas naqueles barracos. Fora um dia de muito pouco retorno.
Se não fosse por umas poucas corridas e brincadeiras, teria cruzado da manhã, até o anoitecer, sem ter feito quase nada. Apenas ficar naquela espécie de prisão sem grades, mas que prende do mesmo jeito. Já era quase noite.
— Biriba, vamos voltar, já está tarde. Tenho que correr, se minha mãe souber que vim até aqui, minha mãe me mata. Vem Maria, corre você também, você passou o dia perambulando. Tá parecendo cachorro sem dono, igual o Biriba.
Perto da estrada empoeirada que dá acesso à favela, um terreno invadido, de onde não se deve sair e deixar o barraco vazio, sob pena do pequeno lote de terra ser revendido para outro interessado; lá naquele canto o cachorro sem dono é conhecido como Jabu.
É onde ficam os garotos que gostam de atirar pedras. Lá é perigoso tanto para Jabu, como para Maria Flor, que aos seis anos não deveria estar perambulando em lugar algum.
Porém, sua mãe morreu de dengue e seus cinco filhos foram divididos entre familiares e a quem mais quis recebê-los. Coube a um dos pais, um alcoólatra, a guarda da menina Maria Flor.
Na parte de cima da favela, como quem segue no rumo do lixão, o animal é conhecido como Biriba. Assim por ficar perambulando o dia todo, o cachorro sem dono acabou com três nomes diferentes.
O que chamavam de lixão, na realidade era onde clandestinamente, caminhões de coleta de lixo atiravam sua carga ao chão, pois o aterro sanitário ficava mais distante, e isto principalmente quando estavam com o serviço atrasado e não havia controle de entrada no lugar. Como o cão circulava pelos barracos em busca de comida, deixava em troca a assepsia espiritual do lugar.
Fazia isto descarregando as energias negativas presentes nos seres humanos, por mais miserável que o ambiente pudesse se mostrar. Para o cão não há distinção nem faz diferença.
Não sendo hostilizado, amava e atendia a todos. Inclusive quando se encontrava com Maria Flor e outras tantas crianças que circulavam no lugar, exercia o mesmo papel. Isto quando se encontravam, pois o cão não era nem de Maria Flor, nem de seu pai; nem de ninguém.
Maria Flor, por ser uma criança, não tinha noção da vida que levava. As outras crianças que via pelas ruas também não. O cachorro que era sem dono, menos ainda. Mesmo os adultos, estranhamente não estavam interessados em sair dali; pois o lugar era fruto de seus últimos recursos na aquisição de um lote barato e insalubre de invasão, sem nenhum tipo de infraestrutura, ou apoio social de autoridades locais.
O que podiam fazer era orar para que não fossem despejados daquele lugar. A retomada de posse era a pior, a mais miserável de todas as notícias.
A miséria material então; se apresentava totalmente visível e amoral. É uma das faces mais desprezíveis dos seres humanos. Entretanto, a miséria espiritual é dantesca, exigindo cenários de expiações muito difíceis e dolorosos.
Porém, da feita que não somos nós os juízes, compete-nos apenas o exercício da compaixão e da caridade para com estes desvalidos; espalhados pelas periferias urbanas do país. Maria Flor, Bitá, Biriba, Jabu, homens, mulheres e crianças, todos precisam de socorro.