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Por: Antonio Mata
Nada de novo por sobre aquelas terras. O sol brilhava no verão. A neve cobria a tudo e a todos em dias cinzentos e recolhidos. Já era assim com os antepassados e apenas continuou.
A vida era curta, a memória era curta. As aspirações faziam o mesmo. Reclamações, imprecações, maldições e ameaças, bastava eliminá-las como sempre se fez. O silêncio para os tolos e medrosos. A cova para os idiotas.
Os cascos batem com força impondo mais velocidade ao tropel. Lança em riste e escudo à frente. Ao alcance dos olhos, mais um idiota a se arrebentar no chão e ingressar na lista dos vencidos, quando não, de óbitos. A ser registrado como a 19ª vitória.
Sir Arkbald, conde de Brays. Para uns, um líder vencedor de batalhas. Para outros, um ladrão de terras. Um opressor, a cobrar tributos pesados de todos os seus vassalos. O servo, um escravo, um animal de carga e trabalho. O destino inevitável das populações sob seu domínio. O conjunto de feudos, a famigerada estrutura medieval, de um mundo calcado no medo e no obscurantismo. Terras tomadas a partir de planos escusos, sempre que possível. Em batalha, quando necessário. Era a noite dos mil anos.
Já se faziam 16 longos anos que seus domínios eram conduzidos com mãos de ferro. Enriquecera explorando feudos menores. Terras entregues a seus sicários, no lugar dos que foram subjugados ou assassinados em nome da cobiça. Ainda que conquistando a inimizade e o rancor da própria nobreza local.
A despeito de fingir aceitar seus próprios pares de nobreza, na realidade Arkbald os desprezava.
— Nobreza, onde? Um bando de patifes e inúteis. Preocupados em fazer pequenas tropas para defender seus castelos sujos e frios. Sem entender que somente pela união dos feudos, sob um comando rígido, é que se poderá superar o inimigo e se fazer a paz duradoura.
Discurso sustentável à moda do século XIII, tão marcado por guerras quanto os anteriores. Arkbald defendia a manutenção das coisas como estavam, desde que estivesse à frente e fosse o líder. Aquele que não cheirava e nem fedia. Esta não seria uma classificação adequada para o conde. Cheirava sim, cheirava mal e fedia muito. Fedia a ambição e a sangue.
Na extremidade oposta da pista de justa, das terras dos feudos, da vida em compasso de espera e da realidade das coisas, estava Aninston. Um barão empobrecido, o “João ninguém” da história da região. Há anos buscava sair da órbita de Arkbald. Algo muito difícil, quase impossível sem derramamento de sangue. A menos que o conde morresse repentinamente, o que poderia demorar muito. Sem Aninston com disposição para esperar.
Era apontado pelo atrevimento de querer reunir outros barões, tão dilapidados quanto ele próprio, e atentar contra a autoridade de Arkbald. Era espada e carne, diria o conde. A espada de Arkbald e a carne de Aninston.
Um defensor da liberdade dos demais, ante as exigências cada vez maiores do conde. Homem de valor, um herói destemido, valente e analfabeto. Se é que isto importava. Afinal, Arkbald também o era.
Candidato aos versos dos trovadores medievais. Para quem o conheceu de perto, o assassino que dizimou as populações em batalhas que não deram em nada. Um farsante, e tão opressor quanto o primeiro. Fiel representante do universo da cavalaria. Das regras estabelecidas para não serem cumpridas.
Naquela manhã, horas antes, havia posto em campo não mais que setecentos homens, mal armados e mal alimentados. O sacrifício do povo, o esforço incomum dos mais pobres, camponeses prontos para integrar mais uma trova de heroísmo dedicada a seu líder. Apoiavam o grosso da tropa 160 soldados e 37 arqueiros.
Não foi por falta de aviso que Aninston reuniu o pobre exército para aquela manhã fatídica. Seriam trucidados pelas tropas do conde, em maior número e ávidos pela pilhagem dos vencidos. Somente quinquilharias, já que não havia ouro nem prata, por conta das sucessivas matanças. Se é que houve, um dia.
Logo atrás do pequeno contingente de Aninston, uma paliçada defensiva e mais tropas, tal e qual uma boa retaguarda, parecendo bem pensada, já que não era usual. Uma reserva para tirar o sossego do conde, que agora precisava saber que diabos, Aninston pretendia dividindo suas forças.
Estratagema dos desesperados, seria um bom título para a trova. Não havia tropa de reserva alguma, nunca houve. Eram crianças com chapéus de pano, por cima de bancos e escadas, por de trás da paliçada. Além de suas mães, enfiadas em roupas de homens. Empunhando paus apontados, à guisa de lanças.
Tudo só para obter aquele maldito tropel. Aninston sabia que não possuía mais condições de guerrear. Tinha de convencer o conde orgulhoso a enfrentá-lo numa justa. Quem é o pior bandido? Onde está o carrasco, onde está o herói? Quem figurará nos livros de histórias dos homens como o defensor da lei da cavalaria e dos oprimidos? Quem gritará mais alto?
As colheitas haviam sido queimadas mutuamente. O gado já era inexistente. Estavam à beira do colapso. Isto, se terceiros não se apresentassem, invocando direitos sobre toda aquela miséria.
A justa foi vista como solução para que os mais interessados pudessem se matar, sem intermediários. O encontro contou com o apoio da Igreja, que não viu saída mais objetiva, honrosa e barata. Afinal, já estavam todos falidos.
Para Aninston, era tudo o que restou, antes que descobrissem que o seu exército era só uma piada. Precisava desta solução e rápido. Era tudo com o que podia sonhar, em vistas das circunstâncias.
O conde aceitou o ardil. O encontro foi marcado para o meio-dia. Bastaria derrubar o oponente e os combates cessariam. A menos que o oponente jogado ao chão fosse louco, desejasse prosseguir e enfrentar o cavaleiro inimigo a pé.
Coisa fácil, era sim. Concentrassem nisso desde o começo e os feudos não teriam sido devastados no exercício da estupidez. Entretanto, tais ideias só se firmavam de verdade, por conta da miséria reinante. Não deixava de ser uma saída com honra.
Providenciou-se o madeiro estreito para a divisão do campo, entre os dois contendores. Um dispositivo que só evita que se choquem de frente e nada mais. Os encontros de justa, já eram por si só, perigosos. Quando tomados de ódio mútuo, era pior.
Cavalo, homem, armadura e armas avançam de ambos os lados para o impacto superior a uma tonelada. A ponta da lança no lugar certo, descarregando toda a energia, definiria o combate. Sorte, habilidade ou astúcia, logo se saberia.
Disparam os cavaleiros para o choque inevitável.
Arkbald busca manter o escudo elevado, na mão e braço esquerdo. A lança de justa, na mão direita, precisa ser certeira. Aninston, mais leve, homem e cavalo, receia ser arremessado rapidamente ao chão. Havia suportado, e com sucesso, duas cargas com as lanças se espatifando, sem efeitos práticos. Ninguém caiu, nem foi ferido. Sobrevém a terceira carga.
O tropel se faz ouvir mais uma vez. Arkbald se fecha por detrás do escudo, elmo e armadura. Aninston, avança em velocidade.
De súbito, a lança apenas resvala na extremidade do escudo. A ponta, desviada, se dirige para o pequeno espaço entre a clavícula e a base do pescoço, por entre a cota de malha de ferro, agora inútil. Arrebentando a cota, ao encontrar carne macia, veia e ossos finos, foi o fim. O punho de ferro, habitualmente utilizado nas pontas de lança nos encontros de justa, foi discretamente substituído por uma figura metálica em forma de pirâmide, com ponta afiada.
A lança penetra mais de um metro pelo caminho de pouca proteção, pescoço adentro, quase decepando a cabeça, enganchada ao corpo que cai. A queda só completa o dilaceramento, com a cabeça ficando pendente para o lado. Não há o que questionar. Com o sangue esguichando, tal e qual um animal abatido, a morte chegou em dez ou vinte segundos, talvez.
Era uma forma patética de se viver e de se morrer. Além do fato de ser estúpido, não se provava nada para ninguém. Além disso, sempre havia a chance do embuste, da falsidade.
Aninston reivindicou a posse do castelo de Bray, onde se encontrava a família de Arkbald, assim como a posse do feudo principal. Temia angariar confusão, tanto com os barões que o acompanhavam, quanto com os que apoiavam Arkbald. Se deu por satisfeito com o castelo e as terras do conde, ainda estirado no chão.
Ainda que estivessem todos falidos, caso investisse contra os nobres derrotados, acabaria com a sua precária fama de defensor. Não era tolo, pressentiu o perigo de se criar tantos inimigos e tratou de dar tempo ao tempo.
Permitiu a saída incólume da família de Arkbald, por recomendação da Igreja. Junto seguiram seus filhos homens. Os mesmos que no futuro reivindicariam de volta os domínios do pai.
O tempo passou e trouxe boas colheitas. À frente das novas terras anexadas, Aninston enriqueceu. Para seus nobres vassalos, era um suserano dedicado e valente. Para seus novos servos, era tão cruel e covarde quanto seu antecessor, sufocando a população com muito trabalho e tributos.
Seu suseranato não duraria dez anos, tendo sido envenenado a mando de um dos filhos de Arkbald.
A lembrança da era dos cavaleiros, suicidas à toda brida, estilhaçando suas lanças e matando-se mutuamente, é a síntese de uma Europa obscura, inculta e miserável, que marcou a noite dos mil anos.
Suas reminiscências e lampejos espirituais, fragmentos de memória, estão nas histórias em quadrinhos, nos livros, no cinema e em sucessivas edições de jogos no mundo digital.
Símbolos de uma grandeza que o mundo medieval jamais criou e jamais possuiu. Era só o mundo em compasso de espera. Concebido para se esquecer, para poder renascer. Contudo, não foi bem assim que o homem enxergou. De alguma forma, na escuridão de sua própria alma, ainda se sente atraído por ele. Se é que vale dizer, isto não é bom.
FIM