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Bolinha de Pelos

                                                                     

                                                                                                                                   Foto: JackieLou DL, por Pixabay.

Por: Antonio Mata

Era carinhosamente chamado de Bolinha de Pelos quando chegou na casa pequena e geminada, onde o quintal mínimo se confundia com a área de serviço, já que os espaços eram praticamente os mesmos. Havia sido acomodado em uma caixa de papelão rasa na área coberta.

Eliza, a mentora da ideia e dona do bichinho, preocupada em zelar pela ordem das coisas desde o início; não gostava de animais circulando dentro de casa. Trazia consigo algumas lembranças do tempo da adolescência que a incomodavam. Sua mãe adorava ter cachorros circulando pela varanda; quintal e dentro de casa também.

Objetos quebrados, móveis roídos, a sujeira em lugares indevidos, a ausência de educação, ou pelo menos regras para a presença dos animais entre as pessoas. Tudo terminava com o nefasto convite para ajudar a cuidar da bagunça. Não, sabidamente Eliza não queria nada disso quando resolveu trazer aquela bolinha de pelos para sua própria casa.  

Era atendente em uma clínica de reabilitação motora e acreditava que oferecer um cãozinho seria algo bem mais interessante para animar as crianças, ao invés de ter de se preocupar com presentes diferentes para cada um.

Um presentão e tanto. Até porque o filhote foi doação de uma colega de trabalho que havia ganhado o filhote, oferecido por uma tia da amiga da colega. Foi uma caminhada extensa, além de uma série de circunstâncias negativas até que o filhote encontrasse alguém que de fato teria algumas razões que justificassem ficar com ele.

A tia da amiga da colega, por vez, não tinha onde colocá-lo no pequeno apartamento onde morava, até porque seu marido não gostava de bichos por perto. Circulou de mão em mão até chegar aonde havia de estar. Foi assim que a bolinha de pelos acabou no colo de Eliza, que então o acomodou dentro da pequena caixa de papelão.

Miguel era neutro quanto a questão. Tanto faz, pensava. Não costumava contrariar sua mulher, era sempre muito concordante, até para não se meter em confusão sem necessidade. Não via nada de errado na presença do animal, ainda que na sua mente entendesse que aquilo não tinha nada a ver com ele, nem por gosto, nem por desgosto.

Corria o ano de 1991 e o novo século era algo ainda muito distante e não havia razão para pensar nisso. Nem para efeito de aposentadoria complementar já que isso ainda muito pouco se falava. Desde que pudesse transformar o apertado quintal multiuso em área de lazer para assar um franguinho, bistecas e calabresas de vez em quando, a vida seguiria seu curso natural. Bem enquadrado na sua vida de classe média baixa, desde que não fosse amolado, aceitaria qualquer coisa.

Collor congelou a poupança nacional (que ele nunca teve mesmo), disse que cassaria marajás e corruptos onde estivessem, doa a quem doer, e tudo estaria bem. Estas eram as notícias dos jornais da época, e que ele não iria ler de qualquer forma. Naquele ano o plano econômico do governo, confiscando a poupança do país, buscava mais uma vez pôr ordem no cenário econômico nacional, acabando com a inflação.

Esse tipo de assunto Miguel não entendia. Só sabia que para os clientes de sua oficina era mais interessante consertar uma máquina de lavar do que comprar uma nova. Pronto, já tinha feito sua parte, como de costume; e votado nos anos de pleito eleitoral como manda a lei. O resto já não era mais com ele.

As crianças estavam empolgadas com a novidade do Bolinha de Pelos, desde quando viram Eliza na sala com a caixa nas mãos contendo o recém-chegado. Como os filhotes são simpáticos por natureza, rapidamente Bolinha de Pelos prendeu a atenção e a curiosidade dos filhos de Eliza. Era promessa de brincadeiras onde todos poderiam se divertir, pensavam.

 Jerome de 11, o mais velho e mais compenetrado; Flávia de 9, a menina da família, e Augusto de 7 anos. O mais novo, mas também o mais atento dos três. Estavam crescendo, queriam coisas novas e viram com bons olhos a oportunidade de poder cuidar do filhote, pois, não achavam difícil e de qualquer modo Eliza estaria por perto para atendê-los no que fosse preciso. As recomendações quanto aos cuidados ainda ficariam para depois. Ainda que por razões diferentes, mas o importante é que o bichinho foi aceito.

Jerome não era tão empolgado com a vinda de Bolinha de Pelos, mas precisava estar em paz com os pais e com os demais, pois, o foco de sua atenção e seu sonho de consumo que realmente o seduzia era outro. Até porque alguns colegas de escola já possuíam um daqueles.

A década de 80 tinha assistido a chegada de um certo aparelho que invadiria as casas e as mentes de um monte de garotos, antecedendo e preparando uma segunda e maior invasão que estava sendo reservada para a década seguinte. Brincadeiras de correr, de pegar, de bola, de corda, se tornariam obsoletas em breve; sem a menor cerimônia.  

Um console para vídeo game, daqueles conectados na tv através de cabos. Poder comandar os movimentos através de uma coisa que chamavam de joystick; conectado no console de jogos. Eram as ações dos heróis, protagonistas de aventuras; em jogos de cartucho. Tiros; socos; golpes; espadadas; raios mortais; armadilhas; caminhos sombrios em vermelho, amarelo, azul, cinza e preto, tudo em cores berrantes e bem saturadas.

Era demais! Estava disposto a fazer qualquer sacrifício pela posse de um daqueles consoles. Como não era de muita conversa o esforço não parecia assim tão grande. O retorno era muito mais que compensador. Entraria na escola como um moderno Xogum; o dono; proprietário. De peito cheio, igual a um pombo; e o nariz empinado.

Admirado por todos; todos os meninos, é claro. Os colegas em volta perguntando pelos golpes. Se já tinha avançado para uma outra fase. Se era difícil, quando iria comprar outro cartucho. Quantos adversários havia vencido. Era mais fácil jogar contra o videogame, ou contra pessoas? Era possível vencê-lo, já havia conseguido vencer a máquina? Enfim, o dono do videogame. O dono da bola já era.

Muito ligado nos personagens de games que o impressionavam vivamente, o que o levava a incorporar os seus eleitos favoritos, como quem tenta trazer para a realidade dos seus dias um pouco da fantasia dos cartuchos. Eram desenhos no caderno, depois em cartolina, pintados e colados na porta do guarda-roupa. Havia o Super Mário, e depois o Sonic. Mexer com os desenhos; aquilo era mágico.

Mais próxima do irmão mais novo, Flávia não se interessava pelos sonhos e preocupações de Jerome. Esperta e muito ativa, adorava brincar de pular corda e de queimado com as colegas da escola. Já havia ganho sua terceira Barbie, agora uma daquelas cheias de utensílios para trocar, e com um vestido adicional na embalagem.

Isto foi no aniversário, por bom comportamento e boas notas na quarta série. Assim, gozava do amor dos pais e tocava adiante sua infância, com o Guto, o mais novo e o mais bem relacionado com a sua mãe, este já agraciado com uma bicicleta com rodinhas; que já ensaiava retirar. Já estava na escola, e tocava adiante as alegrias da sua infância.

Muito criativo e dedicado adorava tinta, papel e massa de modelar com os quais produzia toda sorte de coisas para brincar. Aviões de asas moles, carros sem rodas, barcos que não podem molhar, bonequinhos coloridos, bichinhos diversos. Não ligava para as dificuldades; encontraria um jeito para tudo. Tudo o que a sua imaginação criasse.

Pouco depois, acatando uma sugestão de sua mãe, feita à família toda, no sentido de encontrarem um nome para o Bolinha de Pelos, foi Jerome quem rapidamente encontrou, a seu ver o nome ideal: Sonic, era um nome curto, novo, sonoro, sugestivo; e é claro; estrangeiro.

Jerome não tinha a menor dúvida, o cachorrinho iria cair na boca do povo e ficar conhecido em toda a rua. De qualquer modo todos aceitaram sem maiores discussões. Bolinha de Pelos agora tinha nome de verdade para todos conhecerem. Dali em diante seria o pequeno Sonic.

Jerome fez a sugestão com a melhor das intenções. Queria prestigiar o cãozinho recém-chegado, e de quebra, mostrar para todo mundo que era um carinha bem-informado sobre as coisas da sua idade e do seu tempo. Foi tiro certeiro e os demais irmãos apreciaram, ou pelo menos ninguém reclamou de nada.

Prenúncio de ótimos dias com as crianças da vizinhança, onde os cães só viviam presos no quintal e soltos à noite, para fazer a guarda, quando ao amanhecer eram trancafiados novamente. Vida de cachorro, regrada pela presença dos donos e se estavam acordados ou dormindo.

Início de semana, momento de se retomar a rotina da casa. As crianças retornam à escola, pois, estudam no mesmo turno. Miguel embarca as crianças no velho fusca 74, deixa-os no local antes de prosseguir para um pequeno negócio que mantém, não muito longe de casa.

A oficina fazia reparos em lavadoras de roupa. O pequeno negócio não rendia muito, mas, na sua cabeça sempre havia alguém precisando de algum serviço. Conhecia as máquinas à fundo, e já havia livrado alguns vizinhos de caírem em armadilhas contratando serviços duvidosos. Isto ajudou a fazer sua propaganda. Era comum avistá-lo pelas ruas do bairro carregando uma máquina de lavar presa no bagageiro do velho fusca. Por não ser um equipamento descartável, nem de moda; tais máquinas ajudaram a sustentar muita gente.

Eliza cuida do almoço e das coisas de casa, além de dar alguma atenção para o Sonic. Basicamente alimentá-lo, deixando as brincadeiras para quando os filhos chegassem. Era preciso deixar tudo pronto para quando Miguel chegasse com as crianças.

Em seguida já estaria chegando da escola a Ângela, a filha da vizinha que ficava com as crianças na parte da tarde, até a chegada de Miguel. Eliza dava expediente corrido, das 13h às 19h, voltando para casa somente à noite.

Sonic passava o dia solto no pequeno quintal perseguindo baratas, mariposas ou outra coisa que se movesse. Foi com pouco tempo que entendeu que em um dado momento do dia, as crianças, que haviam saído cedo ainda, reapareceriam na casa, abririam a porta da área de serviço e então poderia circular pelo resto da casa e brincar com eles, horário este ansiosamente esperado então.

Ainda que às vezes as brincadeiras não o agradassem, principalmente brincadeiras de apertar e dependurá-lo pelas patas de trás, quando não acontecia do Guto resolver puxá-lo pela cauda. Fora isso, dava para suportar a companhia barulhenta, mas bem-vinda, dos três irmãos pelos quais nutria um sentimento de carinho e amizade, sempre bem-disposto para novas brincadeiras.

Ângela não contava tanto; almoçava com as crianças, lavava os pratos e depois se preocupava em ficar sentada junto do telefone; como quem espera alguma coisa. Se ela não se importava com o Sonic, era recíproco. Sonic também não se preocupava com ela. Assim era ótimo, nada de gente lhe dizendo o que fazer e lhe empurrando com os pés. Ou pior; querendo prendê-lo.

O tempo passava lentamente e Sonic crescia. A bolinha de pelos já não existia mais. Aos poucos, na medida em que os anos avançavam, as brincadeiras, tão prestigiadas de outrora vão ficando cada vez mais raras. Correr atrás das baratas, também já não tinha mais graça. E aquela área de serviço estava ficando cada vez mais monótona e menor.  

Apenas Guto ainda se lembrava de lhe dar alguma atenção e das eventuais brincadeiras que Sonic apreciava tanto. Porém, mesmo estas estavam aos poucos escasseando. Já não queria mais prestar atenção quando Sonic o chamava para brincar um pouco. Havia outra coisa que prendia a sua atenção agora.

Incomodou-se um bocado, e a princípio não entendeu, quando notou que Guto estava se afastando de Flávia, de quem gostava tanto, e se baldando para o lado de Jerome. Mas a própria Flávia já não ligava muito para isso. Que gente estranha, pensava. Esquecem uns dos outros com muita facilidade.

Era tudo naquela prática de ficar com os olhos vidrados na tela da tv. Com uma espécie de caixinha nas mãos, que Jerome, muito eventualmente deixava o irmão pegar um pouco, ainda que fizesse um monte de recomendações e deixasse claro que era só por empréstimo; só um jogo; por pouco tempo.

O que Sonic não entendia é que, a despeito daquela amolação toda, Guto seu fiel companheiro de diversões, ao invés de lhe dar atenção quando lhe cutucava com o focinho, fica plantado ao lado do irmão, pacientemente esperando que Jerome lembrasse que ele existia. Era subserviência demais até para um cachorro; que desperdício.

Ele já havia entendido que o lapso de tempo entre o retorno das crianças e a chegada de Miguel, era a melhor parte do dia. Eliza ficava fora até à noite. Ângela ocupada demais pendurada no telefone, não tinha espaço mental que coubesse um cachorro qualquer, quanto mais aquele que estava ali.

Pensando melhor, a situação era ótima. Jerome e Guto hipnotizados por aquela tela inútil. Flávia brincava com as amigas que vinham lhe visitar, ou se dirigia à casa da vizinha onde se encontrava com as outras meninas, mas não gostavam de levá-lo com elas. Sonic entendeu logo. Aqui ninguém dá atenção; mas aqui ninguém enche o saco.

De todo modo, após o almoço podia roer os ossos, de porco, de frango, ou o que mais houvesse, e adorava macarrão com molho. Podia comer biscoitos de maisena e pão doce no lanche. Só era ruim depois, umas dores, uns incômodos. Meio sem graça se recolhia e ia se deitar encolhido junto da máquina de lavar, que à tarde ficava em silêncio.

Melhor se afastar um pouco do que dar chance de, de repente pensarem que aquilo era por causa da comida e resolverem afastá-lo da melhor hora. Afinal eram todos legais com ele na hora de comer. Era preciso preservar as coisas boas, antes que alguém achasse de acabar com tudo.

O problema todo começava com a chegada de Miguel, lá pelas 19h. Fazia um carinho no Sonic, mas depois surgiam as reclamações por conta do cão circulando pela casa. Havia o cheiro de sebo de cachorro na sala. Também os hipnotizados na tv tinham que se mancar, afinal dali há pouco era hora do jornal. Flávia na casa da vizinha e já havia escurecido.  

Ângela, que já havia feito todos os telefonemas do dia, e como não gostasse de chateação, afinal de contas já tinha feito sua parte no acordo, e só para não tumultuar, meia hora antes do Miguel chegar, já tinha se mandado.

Era o retorno ao quintal e ao tapete junto da máquina de lavar. Não havia mais o que fazer. A porta da área de serviço mais uma vez ficaria fechada com a luz da cozinha acessa, dava para ver pelo basculante. Por muito favor, eram quatro metros da porta da cozinha até o muro dos fundos, com um metro de terra junto ao muro.

O que, em outros tempos deveria ter sido o projeto não executado de uma jardineira. Isto resume o lugar, com cerca de dois metros de cobertura, por causa da máquina de lavar roupas. Piorava de verdade quando chovia pesado, e então tinha que se encolher no canto oposto da máquina.

Mais uma hora ou duas chegaria Eliza. Era ela que lembrava que era preciso colocar ração e água para o Sonic, já que os demais estavam ocupados. Já havia combinado com Jerome e Flávia o que fazer, e eles já haviam prometido dar um jeito nisso, ainda que não pudessem assumir o jeito que deram, não totalmente. Os esquecimentos eram constantes e as brigas por causa disso também, com Jerome responsabilizando a irmã e ela culpando o irmão.

Fosse como fosse com a ração adicional providenciada pela mãe, a alimentação ficava mais balanceada e dava para confiar que tudo ficaria bem de novo. Afinal Sonic não era exigente e aceitava com facilidade tudo lhe davam, mesmo aquilo que não era para dar, mas que ele gostava assim mesmo. Melhor comer logo antes que acabe ou desistam por conta de outra coisa, outra preocupação, ou pior, outro animal.

Muita gente ainda criava cães com restos, tal e qual porcos. Os males intestinais e hemorragias provocadas por farpas de ossos ocos, como os de frango, eram comuns e o animal podia chegar ao óbito sem que se soubesse a causa com certeza, já que um veterinário ainda era uma espécie de luxo reservado a poucos.

Nem veterinários, nem médicos, mas afinal; as coisas não mudaram tanto assim esses anos todos. Um hospital veterinário ainda é coisa que a maioria nunca viu e nem imagina se poderá um dia existir. Entretanto, o trabalho de pequenos grupos de voluntários abnegados é algo que não se pode esquecer. Trabalho de formiga, aquela história da gota em um oceano de problemas.

Já se vão cinco anos longos desde que Sonic ingressara na família, pois era este o seu entendimento, um integrante daquela família. Ângela, ao concluir o ensino básico conseguiu emprego fixo, como secretária em uma agência imobiliária, onde passava o dia todo, e se afastou de Sonic e dos meninos, só os vendo esporadicamente. Não que tenha estado muito próxima, mas pelo menos estava lá fisicamente, como uma espécie de referência caso alguém quisesse perguntar alguma coisa.

Eliza assumiu a parte administrativa na clínica e passou cumprir horário integral. Dois anos antes foi um problema deixar os meninos sozinhos, pois Jerome continuava fissurado, só que agora em jogos de computador e sumia na busca de amigos que tivessem a raridade de um computador dentro de casa. Havia chegado em 1990 um certo sistema Windows 3.0 e em 92 o Windows 3.1. Deu demais na pinta que acabariam se expandindo e absorvendo muita coisa dos games em consoles.

Não foi por falta de insistência de Jerome que argumentou o quanto pôde. Salientou as grandes facilidades e praticidades de se ter um daqueles trambolhos com monitor, teclado e uma caixa metálica grandona. Só que seu pai não se convencia da relevância daquele brinquedo enorme; caro e cheio de cabos. Ainda estava cuidando de equipar sua oficina e uma pick-up tinha sua total preferência quando o assunto era gastar dinheiro.

É que Miguel já estava acompanhando a popularização dos condicionadores de ar para automóveis. Não deu outra; partiu de mala e cuia para a área de serviços de refrigeração automotiva. Parece que deu certo. Ainda trabalhava com algumas máquinas de lavar, por insistência dos vizinhos. Isso não iria durar muito; já sabia que os condicionadores de ar eram bem mais rentáveis.

Flávia, agora é quem aluga o telefone da casa, isto quando não está com as amigas. Como foi a fiel sucessora de Ângela, nem deu para notar alguma variação na conta mensal. Macarrão lámen, comida congelada, embutidos e alguns enlatados ajudaram horrores ante a ausência de sua mãe. A menina até que era bastante virada.  

Augusto continuava ampliando seu talento para o desenho e pintura, mas; ainda na adolescência, com a ajuda dos amigos descobriria os primeiros programas piratas para desenho digital, iniciando uma outra coisa que logo teria grande valor pela agilidade que proporcionava, e nas mãos de um carinha criativo igual a ele, seria fantástico. Até porque estava se popularizando uma certa coisa que formaria um exército de artistas digitais, a Internet.

Já o Sonic, ninguém se importava em vê-lo. Só Eliza que ainda abria a porta da cozinha para pôr roupa para lavar e lhe dar comida e água, quando chegava do trabalho. Ainda era alimentado com sobras quando não havia ração, o que acabou se tornando comum quando se esquecia, ou quando o orçamento apertava. Outra saída era lhe dar polenta, foi sugestão de uma vizinha. Lhe haviam dito que era bom e que o cachorro ficava forte.

Eliza não gostava que ele passasse para dentro de casa, uma vez que não o queriam mais por perto, até porque exalava mau cheiro. Era a conta de começarem a gritar para que fosse retirado da sala, e na cozinha nem pensar. Miguel também detestava sua presença e lembrava sempre à mulher, já aborrecida, de que a ideia infeliz de trazer cachorro para dentro de casa tinha sido dela.  

O círculo das múltiplas ignorâncias estava se fechando rapidamente por sobre o Sonic, sem que em nada pudesse intervir. Generoso e amigo, ofereceu seus sorrisos, simpatia e brincadeiras enquanto pôde, enquanto deu. Não compreendia mais o que estava acontecendo.

Sem entender a ausência de pessoas às quais havia dedicado o seu melhor; não entendia a ausência das crianças, afinal haviam crescido juntos. Fizeram um monte de coisas juntos. Por que isso está assim agora? Por que já não o querem mais? Era confuso, triste e deprimente aceitar o abandono.

Quando latia chamando os meninos, só ouvia impropérios. Se insistia, alguém aparecia para ameaçá-lo com o cabo de vassoura, e ficou transtornado quando viu o próprio Jerome, aquele que lhe dera um nome um dia, investir contra ele e o acertou nas costas pela primeira vez. Tornou-se uma espécie de detento. Com o tempo tornou-se neurótico.

Dois anos depois, de pele ressecada e sem seu pelo brilhante, magro, doente e esquecido, foi a óbito em silêncio no início da manhã. Havia cumprido seu anônimo e incompreendido compromisso. Oferecer o exemplo, mostrar o que é paciência, obediência, fidelidade, disciplina, sensibilidade.

Mas, já não tinha razões nem para ficar e nem para querer voltar. Se não podiam, ou não queriam compreendê-lo, agora havia chegado a hora de ir embora. Por pura displicência humana não entenderam o que poderia estar acontecendo com Sonic, já que apoio veterinário ainda era algo fora de questão.

Dos males, talvez se entendesse que este fosse o menor; morrer sem socorro. Afinal, e até por honestidade para com a família, não ocorreu a ninguém o abandonar doente em algum lugar desconhecido no meio da noite. Bolinha de pelos, ou Sonic, era na realidade um lindo filhote de Labrador Retriever dourado.

Foi confundido com mistura de pastor alemão com cão de caça, diziam uns. Outros entendidos diziam que era pastor branco misturado com lobo, daí sua pelagem um pouco mais escura. O aspecto robusto do filhote atestava o palpite certeiro. De qualquer forma o cachorro parecia de marca boa. Agora pouco importa, nem que fosse um vira-lata, foi esquecido do mesmo jeito. Nem os palpiteiros se interessaram em saber dele.

As lembranças de tudo isso ainda ensejou em alguns outros vizinhos uma certa desconfiança de que o problema não seria propriamente o cachorro. Enquanto deixava seu corpo estendido perto da máquina de lavar, seu espírito foi conduzido por algum amigo que esperava por ele e veio buscá-lo. Sonic levantou-se e o acompanhou sem olhar para trás, correndo para o alto. Afinal, não dizem que os cães merecem o céu?

Aos Freds, Príncipes, Iagos, Sheiks e tantos outros que viveram e morreram esquecidos no fundo do quintal.

 

 

                                                                   “Eu temo pela humanidade quando penso que Deus é justo.“ —  Thomas Jefferson.

                                                                                                                                    In: Notes on the State of Virginia, 1785.

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