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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Brando e pacífico

                                                                   

                                                                                                                                                            Foto: Wikipédia.

Por: Antonio Mata.

O velho suarento, de barba por fazer, com seu chapéu de couro típico das cercanias do sertão árido, da caatinga espinhosa a exigir atenção de quem trabalha no meio da vegetação retorcida e traiçoeira.

Não foi uma nem duas vezes que ceifou a vista daquele mais incauto, quanto mais se fosse num galope no meio da mata seca. Naquele ano estava tudo particularmente seco e difícil. O homem puxava um burro tão velho e magro quanto ele.

Na lida crua do sertão Elias era um sobrevivente. O burro era um sobrevivente. Derrubava as peças de mandacaru toradas na foice, recolhidas com um ferrão pontiagudo por causa dos espinhos, e depois as juntava nos cambitos.

Estes por vez, montados na cangalha nas costas do animal, que por debaixo recebia um forro grosso, quase sempre de couro. De modo que o bicho não venha a ser perfurado pelos espinhos.

Já na propriedade, fazia a queima dos espinhos para poder picar a palma suculenta e usar como forragem, pois; não dispunha nem de triturador; nem de eletricidade. Era o esforço para poupar da morte os três bois remanescentes que ainda dispunha, mais o burro velho. Havia ainda um pouco de água barrenta em açude próximo. Com a secular esperança, era o que restava.

Enquanto pudesse dispor de um pouco d’água, sustentaria a luta que começava ainda de madrugada, antes dos primeiros raios de sol. A difusão do uso do mandacaru como forragem poupou da morte, milhares de pequenos rebanhos espalhados pelo sertão. A planta cactácea guarda, na formação de sua polpa, até 87% de água, evitando a desidratação dos animais.

É um trabalho que se justifica por si só. Produz um alimento hidratado, mas que não alimenta suficientemente. De outra forma, a imagem de carcaças secas e abandonadas sobre à terra estariam de volta.

Para o sertanejo, o boi é tal e qual a semente, é o começo de tudo. A vida do velho Elias foi e tem sido assim. Com uma filha e quatro netos, além dele próprio, assim se compunha mais uma família resistente.

Elias contava com o auxílio de Benício e Afonso, os netos mais velhos para cuidar de pequena parte de uma propriedade, que também não era sua nem da família. Aposentado como agricultor, possuía a principal fonte de renda da casa, além do auxílio do governo prestado à sua filha.

O restante já havia ficado para trás, menos a luta para não perder seus poucos animais. Se julgava, de qualquer modo, um felizardo; por ter um dinheiro certo para apoiar a casa e a filha com os netos.

Na casa simples de pau a pique, ainda se utilizava de tudo aquilo que a natureza pode oferecer. Pau redondo de diversos diâmetros, oferecem desde as estacas de sustentação, até a estrutura trançada que irá ser preenchida com argila, passando pelo madeirame rústico do telhado baixo. Era um mínimo de cortes e nenhum acabamento, para um máximo de aplicações.

Da argila e da madeira cortada com pouco esmero, saía também o esparso e pobre mobiliário rústico da moradia. Fogão de lenha, talha d’água, bancos, prateleiras, baús e armários toscos. Lamparinas, redes, facões e enxadas, completam o material indispensável.

Um rádio de pilha era o luxo da casa e o cordão umbilical com o resto do mundo. O velho lembrava de outros tempos em que o campo plantado assegurava o feijão e o milho para a manutenção da família e a fartura de forragem, das dez cabeças de gado, mais cabras e galinhas.

O animal mais antigo de sua criação era o burro Pavilhão. Estava com ele havia mais de vinte anos. Nos momentos de fartura, Pavilhão; pôde participar e comer melhor. Era o tempo do milho mais farto ofertado por Elias, havia mais calorias para o animal, ainda que em compensação trabalhasse mais.

Nas épocas de estiagem havia pouca comida, logo acabava o milho, o que diminuía muito a oferta de calorias, mas ainda havia trabalho. O velho burro precisava prosseguir.

Pavilhão cumpria a sua rotina de carregar mandacaru, juntar várias viagens para estocar e servir o gado. Quando se estocava o suficiente para quinze dias, então se prosseguia com o transporte de água para animais e família. Era a pequena disponibilidade de água que assegurava a permanência no lugar.

Outros dramas muito mais difíceis e sofridos estavam retidos nas lembranças do velho Elias. Tempos de sacrifícios desmedidos. Sabia que no passado, já teria perdido todos os seus animais.

O velho sabia que mudanças importantes haviam chegado no sertão. De lá, mais quatro horas a pé, se encontrava estrada asfaltada e energia elétrica, mas no sertão de Elias ainda não.

O transporte pesado já se fazia de caminhão, aumentando a oferta de bens para quem pudesse pagar por eles. Só que havia lugares onde veículos não passavam. As picadas pedregosas do meio da caatinga ainda faziam o domínio do burro manso e pacífico, disposto ao esforço diário, campeão das curtas distâncias e das pequenas propriedades.

Justamente onde se buscava o mandacaru, que naqueles lugares ermos, por onde a estrada não passa, ainda crescia farto e em quantidade. Seria assim por quanto tempo? O próprio Elias se fazia tal pergunta.

Já havia assistido a busca persistente dos homens atrás de florestas de mandacaru, cada vez mais distantes. Pensava em como tudo estava sendo posto abaixo para ser queimado. A ideia de se replantar daquilo que se retirou, ainda não havia chegado no lugar.

Mal alimentado e tendo que prosseguir na lida, Elias sabia que precisava aliviar o peso e o sacrifício de Pavilhão, pois; desconfiava que o burro idoso poderia não suportar. Era ruim com ele, seria pior sem ele. Preferia não apostar e de repente se ver acusado pela própria consciência por algo que poderia ter sido evitado. A vida estava se aproximando de um ponto crítico.

Sem Pavilhão não poderia oferecer o alimento de subsistência e a água trazida por ele aos animais restantes que dele dependiam. Já havia reduzido o esforço do animal na medida do possível. Se pavilhão não suportasse mais esta estiagem, só haveria uma possibilidade; e não uma certeza. Se desfazer de mais um boi magro, dos poucos que lhe restavam; fazendo uma troca por outro burro.

O boi é mais valorizado que o burro, mas seus animais estão muito magros. Isto em um momento em que muita gente venderia seus bois ante a possibilidade de morrerem de sede. Precisa de alguém numa condição de maior equilíbrio que ele e que tenha um burro disponível.

Não se trata de missão impossível, mas exige paciência e pelo menos uma oportunidade satisfatória. Pois; dinheiro vivo não seria fácil de se obter.

Elias estava absorto em tais especulações, mas contando que Pavilhão resistiria a mais uma seca e mais um ano de penúria absolutamente anônima. Resistir, ofício diário do sertanejo e de seus mirrados animais. É preciso resistir, sempre mais um pouco.

O velho Elias depositava toda sua confiança naquele que, se de um lado representava a mansidão em pessoa, do outro; era a força; a resistência. Características que sustentam a espécie nos mais longínquos recantos do mundo. O anônimo trabalhador é barato, resistente e longevo.

Madrugada alta e Elias se prepara para mais uma saída junto aos netos para cortar o secular mandacaru. É preciso superar mais uma quinzena de seca e trabalho. Já havia semanas que vinha combinado fazer dois dias mais leves de trabalho, do que um único dia só, para poupar o burro velho.

Prepararam tudo e partiram, se dirigindo à picada pedregosa. Passando pelas áreas já exploradas e caminhando mais na mata adentro.

Mais uma vez cortaram as plantas, puseram pouco mais de meia carga e retornaram com o mandacaru. Era preciso fazer mais uma segunda viagem, e não apenas uma só. Na segunda viagem, Pavilhão não suportou mais o peso, o calor e a caminhada na picada irregular.

Tropeçou e caiu; quebrando a perna dianteira. Havia terminado para ele. Elias, agachado junto de Pavilhão, chora. O sacrifício do nobre animal  seria mera consequência.

Atentos e já acompanhando de perto os últimos dias de Pavilhão, os benfeitores espirituais, os anjos do Senhor, já cuidavam dos preparativos para receber de volta mais um filho da Criação Divina. Havia cumprido com denodo uma missão áspera, árdua, que sua espécie vinha atendendo há milênios, oferecendo aos homens, por onde passou o exemplo da mansidão, do trabalho persistente e da resistência sob condições adversas.

Prosseguia onde outros animais falhavam. Pavilhão, recebido, tratado e recuperado pelos trabalhadores do Senhor. São socorristas de animais na espiritualidade por opção de serviço. Que em outros tempos teriam sido vistos na matéria, amparando animais da Terra.

Pavilhão então, na sua calmaria habitual, e na companhia de outros animais, foi encaminhado aos campos sobejamente verdejantes e floridos; de sombra e água fresca; de onde havia saído um dia.

Presente mais que bem-merecido, de um Pai misericordioso ao animal que melhor exemplificou a brandura e a atitude pacífica, solicitadas pelo Cristo a seres mais inteligentes e capazes do que um burro; diante das agruras da vida. Nada de modo algum ocorre ao sabor acaso.

 

                                                                                                                           "Quando a dor te visita, reflete-lhe a mensagem. Não há sofrimento sem significação".

                                                                                                                                                                                                                      Enmanuel

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