Por: Antonio Mata
Se há algo que atrai, prende e seduz um mochileiro da natureza, são as cachoeiras. Se as praias virgens estão acabando. Isto, por conta da expansão humana no litoral, incluindo aí o turismo. O mesmo não se pode dizer das cachoeiras.
Com o interior ainda guardando segredos por se conhecer, existem aquelas que são totalmente ignoradas. Isto quando não são de conhecimento meramente local.
Às vezes, somando apenas um punhado de pessoas. Onde o mapa mental daquela gente ainda não registra a sua presença, sequer. Não por restrições propriamente. É que de tão comum, muitos nem ligam. Ela sempre esteve lá e isso é tudo.
Não se julgava que pudessem ser algo tão importante. Se bem que distância, acesso, sazonalidade, animais selvagens, tudo isso conta. Então, é assim, a queda d’água está lá.
Mochileiro é começo de busca. Do que exatamente, talvez nem ele mesmo saiba. Quer fazer, quer conhecer, poder estar lá. A busca de algo que lhe faz falta e que precisa encontrar.
Encontrar uma dessas quedas d’água, por pequena que possa ser. Localizar uma dessas portadoras de genuínas energias benéficas e quem sabe, até batizá-la, pondo no mapa. Pode se tornar o sonho de modernos aventureiros, mochileiros, exploradores, curiosos e desavisados também.
Quem vai chegar primeiro?
O início de setembro foi considerado uma boa oportunidade para a pequena exploração. Assim foi possível se acercar de tudo que fosse necessário em tempo útil.
Ramires estava satisfeito com o andamento e envolvimento do grupo de meia dúzia de pessoas. Também pelo fato de ser o mais experiente e que atuaria como guia. Uma vila nas proximidades serviria de base para o início dos três dias de aventura.
Tomariam o rumo de conhecido pé de serra, onde estabeleceriam uma base de apoio. Subiriam a serra somente no dia seguinte. Assim os 29 Km até o local do futuro acampamento seriam vencidos a pé, seguindo uma trilha estreita em terreno pedregoso. O que dificultava o acesso de veículos.
Pé de serra conhecido sim, porém em extremidade oposta. Onde é muito pouco frequentado. O terreno é mais íngreme, mais exposto a pedras soltas. Coisa que logo descobriria e por isso, mais difícil de se acessar
Enfim, chegaram no local, um descampado em forma de círculo. Onde as pedras foram retiradas manualmente, de modo a fazer pequena clareira. Foi só o tempo de se fazer o reconhecimento do terreno. Montar as barracas, arranjar o que comer e descansar para a manhã seguinte quando iniciariam a subida.
Logo que o dia clareou, Ramires se perguntava se havia feito a coisa mais certa. Tudo bem que já tivesse participado de caminhadas dessa natureza mais vezes. Também já estivera deste lado da serra em oportunidade anterior.
Achou melhor tirar tais ideias da cabeça, enquanto todos cuidavam de beberem um pouco de café, para saírem em seguida. Apesar de tudo, incluindo as paradas para descanso, estimou que chegariam no ponto mais elevado antes do anoitecer.
Lá chegando, poderiam então estabelecer novo acampamento. Levariam consigo só a parte mais leve do equipamento. A exploração do entorno seria feita somente na manhã seguinte. Um plano razoavelmente bom.
Iniciada a marcha, logo se deu conta que o terreno era mais pesado e mais exigente do que conseguia lembrar. Bastou deixar a trilha e os integrantes da expedição de iniciantes começou a sentir as agruras daquela subida.
Metade do grupo era composto por mulheres, também inexperientes. Mesmo os demais homens sentiram o trajeto.
Anísio, um dos integrantes do grupo, levantou a questão.
— Ramires, essa gente não tem experiência nisso e nem eu. O que acha de pararmos tão logo o dia termine? Se faltar alguma coisa, a gente completa no dia seguinte. Vamos subir no passo do grupo, ou seja, lentamente.
— Vamos subindo, ao primeiro sinal de cansaço, a gente faz um número maior de paradas. Se não der tempo para fazer tudo hoje, continuamos no dia seguinte.
— Só espero que não se incomodem com possíveis imprevistos. Que sejam pelo menos pequenos.
Na medida que as horas passavam, Ramires deu-se conta de que realmente não conhecia o trecho que estava percorrendo. Não que se achasse perdido, porém, não identificava com clareza o caminho. Apenas subia cada vez mais. Era evidente que o lugar era pouco frequentado. O que estava em sua mente lhe parecia diferente e vago.
Já torcia para não se deparar com um paredão, que os fizesse ter de contornar. Pela fragilidade do grupo, não precisava sequer ser muito alto. Ou ainda um terreno tão pedregoso e perigoso que expusesse o grupo a acidentes. Isto explicaria a pouca frequência a este lado da serra. No final não se mostrou tão experiente quanto se supunha.
Em uma subida, sob o sol quente, o cansaço não demora. Muita água e várias paradas certamente ajudariam. Enquanto estivessem conscientes da situação, estaria tudo bem. Como era de se imaginar, se detiveram antes do topo. Tinham percorrido, mais ou menos, dois terços do trajeto. Contudo ninguém estava frustrado ou querendo desistir.
Na manhã seguinte, ao retomarem a marcha, surgiu um pequeno impasse e uma condição inesperada. Mas, que seria o suficiente para comprometer a todos. Percebeu-se que do alto o lugar era bonito e em certa direção, antes do topo, mais ainda.
A condição inesperada, mostrava formações de nuvens carregadas ainda distantes da serra, quando não deveriam estar ali. Não naquela época do ano. Pelo menos de acordo com as informações disponíveis.
O verde e o castanho da vegetação se misturavam por entre as formações rochosas. Entretanto, somados ao céu azul e aos trechos arborizados, tudo começou a prender a atenção.
— Ramires é tão importante assim chegarmos no topo? Aqui está muito bonito e com lugares bons de se explorar.
— Flávia, vamos até lá em cima. Já não está tão longe. Depois voltamos todos para explorar o resto. — Dizia Ramires.
— Também estou ficando cansado de só subir. Não podemos ficar aqui mesmo? — Agora era Arnaud, querendo abreviar a subida.
— O que acham de metade subir e os demais exploram aqui mesmo? Eu e Flávia ficamos com Arnaud. Assim Ramires, Anísio e Fátima podem seguir mais adiante. Depois a gente se encontra de novo. — A sugestão partia de Mariana.
— Ainda acho melhor seguir todos juntos. — Frisava Ramires.
— Ramires, se já estão se cansando, talvez seja melhor assim mesmo. Podemos subir só nos três. O que acha Fátima?
— Eu concordo, vamos subir.
Meio a contra gosto e inseguro, Ramires aceitou e prosseguiram. Deixando claro que o local onde estavam seria o futuro ponto de encontro. O que não esclareceu aos demais é que nunca havia chegado ao topo. Daí seu interesse em prosseguir.
Isto foi o suficiente para concordar com a divisão do grupo, inexperiente e cansado. Naquele momento, as nuvens no céu ainda não prendiam a atenção dos exploradores. Então, os dois grupos se afastaram. Assim, ficaram Arnaud, Mariana e Flávia.
Enquanto Arnaud e Flávia cuidavam de montar uma barraca, Mariana observava ao redor, prestando atenção no terreno próximo, em pequena elevação.
— Enquanto vocês cuidam das coisas vou até aquele lado dar uma olhada e já volto. Só meia hora, tá legal?
— Contando que você não se perca, não torça o tornozelo, não bata com a cabeça e nem tenha um surto psicótico, pode ir.
— Deixa de falatório Arnaud, eu volto logo.
Era verdade, não tinha nenhum propósito de se expor em caminhadas ao leo. Entretanto, a ruiva de cabelos curtos acabaria cometendo o mais tolo e banal dos erros.
De fato, caminhou adiante até notar que pouco além o terreno parecia mudar. A distância não era grande coisa, assim avançou mais um pouco. não demorou para adentrar em suave aclive. Tinha à sua frente uma bela paisagem. No estilo dos antigos cartões postais. Mariana deslumbrou-se não só uma vez, mas duas.
Avançando mais um pouco, a saliência de um vale se estendia logo abaixo. Notou reentrâncias no terreno que lhe permitiriam descer. O vale não parecia profundo.
Como ainda estivesse claro, achou por bem descer e observar mais de perto. Lá em baixo pequeno córrego de águas claras parecia convidativo. Ciente de suas deficiências e desejosa de não abusar da sorte, fazia tudo com muito cuidado. Baixou a cabeça e descia devagar e com atenção.
Assim, não foi um tempo extenso que precisou na sua exploração. Dos trinta minutos que havia proposto, para voltar só precisaria de um pouco mais. O que não viu, foi o tempo virar com a aproximação das nuvens, antes tão distantes.
Quando percebeu que escurecia e levantou a cabeça, foi tudo um ato contínuo. Não precisava de o céu despencar um aguaceiro sobre sua cabeça. Comum e traiçoeira, já estava na armadilha natural das reentrâncias das serras. Os caminhos das águas. A chuva intensa desabara no alto da serra.
Só ouviu o barulho das águas descendo rapidamente dos níveis mais altos e logo alagando tudo. Sem ter onde se agarrar, foi conduzida aguaceiro abaixo. Buscava manter sua cabeça fora d’água, enquanto era arremessada contra as paredes rochosas.
Inesperadamente, sentiu seu pé direito ficar preso em algo, na altura do tornozelo. Não conseguia recuar o corpo e soltar-se dali, por conta da força das águas. Por outro lado, a força da torrente parecia querer arrancar-lhe o pé.
O barulho intenso, a força da água, a dor no tornozelo e o desgaste em buscar manter-se respirando, com a cabeça fora d’água. Perdeu a noção do tempo.
Junto à barraca, Arnaud e Flávia estavam protegidos, contudo, temiam pela ausência da imprevidente Mariana em um lugar desconhecido. Certamente sem fazer a menor ideia do que poderia ter acontecido. Agora, só quando a tempestade passasse.
A tempestade aliviou, mas permaneceu chovendo por mais tempo. Nesse ínterim, sobreveio a noite.
Arnaud e Flávia deixaram a barraca e de lanternas nas mãos procuravam por Mariana. Lentamente se aproximaram do aclive no terreno. O foco restrito das lanternas em meio à chuva, não deixava enxergar melhor o pequeno vale.
Àquela altura na escuridão, o vale parecia um abismo, com água correndo lá embaixo. Isso, dava para ouvir. Gritavam por Mariana, porém, sem nenhum sucesso.
Lá embaixo, presa na reentrância de uma rocha, moldada por milhares de anos, Mariana lutara pela vida. Estivera a um passo do afogamento por uma hora e meia. Mesmo com as águas baixando, ainda havia muito barulho e continuava presa. Não lhe era possível ouvir o chamado de seus amigos.
— Arnaud, nós perdemos a Mariana, perdemos a Mariana. — Flávia lamentava e chorava.
— Não seja tão pessimista. Vamos esperar amanhecer. Assim a gente faz uma busca até aonde seja possível. Descer aí dentro na escuridão, não recomendo nem um pouco. O socorro somos nós. Vamos rezar para que esteja tudo bem com Mariana.
Retida no fundo do vale, evitando se mover por conta da dor. Não sabia se havia torcido o tornozelo ou quebrado o pé. Mariana só podia aguardar pelo fim daquela noite.
O sol chegou de mansinho por sobre a serra e bem antes que pudesse banhar a terra, Arnaud e Flávia já aguardavam junto ao vale desejosos por descer e sem saber o que poderiam encontrar. Fora uma noite de soluços e orações. Enfim o momento chegou.
A luz iluminou o lugar e puderam dar uma boa olhada naquilo que horas antes parecia um precipício. Talhado na rocha, em vários tons. Do branco encardido ao cinza e marrom.
Com as águas claras ao fundo reluzindo ao sol, ficou fácil entender o que chamara a atenção da amiga. Com o fim do aguaceiro, tão repentino quanto traiçoeiro, o córrego, agora com três ou quatro palmos de água, podia mostrar sua beleza, tão singela quanto selvagem.
Começaram a gritar enquanto desciam para dentro do vale. Dessa vez a voz aguda e meio esganiçada de Mariana se fez ouvir.
Estavam estudando uma forma de desencaixar o pé direito da amiga, enquanto se preocupavam com outra coisa, hipotermia. O pé, muito inchado dificultava a retirada.
Sabia que havia dois problemas. Retirá-la da armadilha e depois retirá-la dali do fundo do vale. Algo que não seria fácil. Decidiram aguardar Ramires, Fátima e Anísio.
Estes só chegaram duas horas depois. Foi possível retirar o pé, muito inchado de Mariana. Não sem dor, gritos e um desmaio. Ramires e Anísio juntos retiraram a moça de dentro do vale. Ainda não havia acabado. Restava descer a serra e buscar ajuda médica. O que só foi possível lá pelo final daquela tarde.
Antes de partirem, Flávia prosseguiu por uns 150 metros além, em uma ligeira curva. O que pôde avistar naquele momento, teria sido o triunfo de Mariana.
O riacho, então, até aquela hora só tinha uns 30 cm de água e terminava em uma cachoeira logo adiante. Por ter de acompanhar os demais, foi tudo o que pôde constatar.
Enfim, conseguiram socorro para Mariana e na medida do possível, o episódio foi superado. Lições para todos os envolvidos, principalmente Ramires e Mariana.
Estes rincões atraem as pessoas, como que por encanto. Já na vila, Flávia indagava de uma das moradoras do lugar se alguém já tinha visto a cachoeira que existia naquele trecho da serra. A mulher lhe respondeu.
— Ah, tem uma cachoeira lá mesmo, tem sim.
Flávia ficou espantada.
— Ora, já tinha visto a cachoeira? Por que não nos disse que havia uma cachoeira naquela parte da serra?
— Ora, porque ninguém perguntou. Ninguém liga pra cachoeira por aqui não. Eu mesma nunca vi, nem nunca fui lá. — Respondeu a moradora, com toda segurança.
Não era uma cachoeira daquelas vistosas, das quais fazem um monte de fotografias. Mas, tinha sim o seu valor. Isso, sempre tem. E muito longe do que os moradores pensavam, sua presença valoriza e embeleza o lugar.
Com o tempo, logo trataram de explorá-la e fazer um monte de fotografias. Teve alguém, que a despeito dos parafusos no pé direito, fez questão de entrar na água fria assim mesmo.
Bem, de qualquer modo, o tempo passa e as coisas mudam. Houve um tempo sem drones, sem asa delta, parapente, imagens de satélite e toda essa parafernália de captura e reprodução de imagens que existe hoje. Dessa maneira, as coisas eram mais difíceis de se encontrar.
O nome da cachoeira? Ora, Cachoeira da Mariana.