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histórias, crônicas e contos

Vida de rua

                                                                                  

                                                                                                                              Foto: michaelkremer_art por Getty Images

Por: Antonio Mata

Só pensava em sair daquele lugar tão logo achasse para onde ir. Era muito agitado e ainda que soubesse que locais movimentados são melhores para obter um qualquer, preferia me afastar para ter algum sossego.

Obtido algo para pôr na barriga, era só dar o fora. Contava com a ajuda daquela mulher gorda da padaria que sempre me arranjava alguma coisa para comer. Era quase sempre.

Não sem antes esperar bastante, até que notasse minha cara de flagelado das ruas e meu olhar desalentado. Era só ter paciência, não se precipitar, não atrapalhar ninguém, nem ficar no caminho.

Normalmente dava certo. Também não adiantava chegar muito cedo, era melhor aparecer já caminhando para o final do movimento da manhã.

 
De qualquer maneira acaba sendo uma espécie de sobra. Até porque, a do dia anterior não se jogava fora. Como não estava em condições de escolher, o que vier, está valendo.

O cheiro era bom, mas era uma armadilha. Pensar demais nele era sonhar com o incerto, e isso não era nada bom. Pedreira mesmo, era quando saía tudo por demais errado.

Para se viver desse jeito, comer não tem hora. Não existe manhã, tarde ou noite. Se não der um jeito de se construir um plano, por simples que seja, de preferência que funcione, aí está perdido.

Qualquer plano por mais tolo que possa parecer, tem que oferecer no mínimo o lugar e o tempo.

Então um plano decente tem que considerar sempre que o dia começa lá pelas nove horas, mas é lá na porta daquela padaria esperando aquela mulher gorda.


Se não sair nada, agora então é nos fundos do restaurante, quando jogam comida pronta no lixo. Já achei até bife de panela, coxa de frango, costela assada. Não é todo dia, mas acontece.

O acompanhamento costuma aparecer, misturado é verdade, cão de rua aprende a não ser exigente. Só não se pode contar com isso. É o princípio geral para se viver na rua. Se existem expectativas, elas vão lhe fazer mais mal do que bem. Não se pode esquecer isso de jeito nenhum.

Quando é dia de feira, existe pastel, esse dia tem que entrar no plano. A surtida não pode demorar. Tem que dar certo rápido, ou sair cedo para não perder a hora da padaria.

Às vezes compensa bastante e nem se precisa mais da mulher gorda. O lado bom é que desapareço, pelo menos no dia da feira. Tem outra padaria, mas lá com aquele povo são avaros demais. Não vale muito a pena.

Quando é noite, aí entra a última parte do plano. Se tudo deu errado durante o planejamento do dia, agora é a última chance. É a diferença entre comer pelo menos uma vez, ou dormir com a barriga roncando.

O babado novo é aguardar o fim de movimento da pizzaria no final da rua mais bonita da cidade, aquela cheia de luzes. A última a manter as portas abertas e as pessoas reunidas.

É preciso prestar atenção quando alguém que trabalha lá dentro vai sair e deixar o portão velho só encostado. Então é só entrar devagarinho e achar o saco que tem fatias de pizza. Às vezes até fatias inteiras.

Sendo rápido dá tudo certo e a barriga já pode dormir cheia. Como sempre não tem escolha. É aquilo que for servido e pronto. Pensando bem, pizza é sempre pizza.

Existe outro restaurante que funciona perto dessa rua e bem que poderia entrar no planejamento do dia. Só que tem um problema de difícil solução. Lá têm por costume, só colocar os sacos para fora,  primeiro dentro de umas latas grandes, e logo em seguida aparecem uns homens que recolhem tudo e levam embora. Não dá tempo para mais nada. Desse jeito não vale a pena  e é melhor que ninguém veja isso no meu planejamento.

Também encontro outras casas abertas e cheias de gente bebendo,  comendo, e largando muita coisa que não querem mais.  Tem diversos tipos de salgados,  sanduíches, iscas de carne,  camarão e  frango. 

Coisas que nem sei o que é porque nunca comi. Existem sopas e caldos.  São vários tipos de macarrão e molhos.  Não chego perto e nem tento.

Toda vez que quis fazer isso,  se aborreceram e o garçom veio me tirar de lá. Mas a pior parte é que não dá para chegar até onde estão os sacos de sobras. Nunca consegui entrar,  até que desisti. Fica tudo fechado. Assim não adianta colocar no plano. É como se aqueles sacos para mim nunca existissem. Se tornou um problema sem solução.

Assim se completava o plano de manutenção da vida. Não era grande coisa, mas, se atendido na hora certa e do jeito certo, ele funcionava bem. Nunca dá para ficar gordo. Mas quantos gordos vivem na rua?

Assim conseguia ajeitar o lado da comida,  mas havia outro coisa. Me via no meio de tanta gente, de tantas casas, de tantas luzes. Mas não tinham nada a ver comigo,  e eu não significava nada para eles. Estava completamente só.

Os dias se seguiam com a descoberta de outros locais bons para procurar o que comer e colocava no plano mental como opções. Chamam isso de flexibilidade, afinal dessa vez,  não seria por falta de organização e método.

A nomenclatura dava um ar de coisa séria para algo do qual nunca duvidei de que pudesse ser brincadeira.

Até que um dia, levantei-me cedo como de costume. Fiquei sentado por algum tempo e depois fui andar um pouco. A padaria ainda teria de vender quase tudo antes que a mulher gorda pudesse me dar alguma atenção.

Então fiquei andando pelas ruas. Havia acordado muito cedo e tinha que esperar todo mundo chegar. Nem os carros estavam passando ainda, e nem pessoa alguma.

Aí ficou tudo claro, e nada de carro e nem de gente. Fui até à escola onde deixavam as crianças e estava tudo fechado. Passei na padaria.

Foi aí que vi o primeiro punhado de pessoas. Dessa vez, todas estavam com o rosto coberto. Fui me aproximar de um deles, mas ao me ver, a pessoa apertou o passo e se afastou rapidamente.

Lembrei que ainda não era a minha vez e então fui embora. No final eu voltaria, talvez fosse por causa disso. Eu nunca entrava no meio dos demais, sempre esperei.

                                                                                                                         Só quem me conhecia era a mulher gorda. Aguardaria mais um pouco e então poderia fazer uma tentativa com ela. Já conhecia, seria na minha hora, estava dentro do plano. Logo, tinha chances de dar tudo certo.

Voltei no tempo habitual para buscar o pão. Estava de pé,  na frente do lugar, quase no meio da rua. A porta estava baixada. Já não havia ninguém.

Deveria ter adentrado cedo e buscado direto pela mulher gorda? Não sei, teria dado certo? Com outras pessoas para me botar para fora, isto teria sido o provável de acontecer.

Fui mais uma vez percorrer as ruas vazias. O plano não funcionou ainda, mas, tudo bem. Não funciona toda vez mesmo. É tudo uma questão de paciência.

Agora é aguardar o horário de almoço e o início da tarde, e com ela a segunda tentativa do dia. Notei uma coisa que estava incomodando, e que agora se avolumava desde que tive de esperar pelo pão.

As ruas continuavam vazias, mas o sol já seguia alto, mostrando que já não era mais cedo. Pouquíssimos carros ainda passavam. Desci por uma rua extensa que deveria estar movimentada a uma hora daquelas com muito barulho e falatórios.

O pregão dos ambulantes fazendo ofertas e apinhando as calçadas,  mas não havia vivalma por ali, e tudo fechado. Igual à padaria com as portas baixadas.

Descendo mais um pouco, pude ver uma dupla fardada junto de seu carro. Não gostava de contato com eles, poderiam pensar que era para me levar também.

Sei lá, não quis abusar e fiquei atrás de um quiosque. Pude ouvir sua conversa. Falavam de pessoas que estavam morrendo. Não vi nada demais. Já tinha visto gente atropelada antes nas ruas, e nem por isso foi todo mundo embora.

Esperei que saíssem do local e então lembrei de voltar para cuidar do segundo passo do plano diário. Agora começava a sentir um frio no estômago e algumas ideias chegavam até mim que nem assombração.

Antes reclamava da solidão em um lugar cheio de gente. Agora estava sozinho em um lugar vazio de gente. As ruas desertas me apavoravam mais que qualquer outra coisa. Cheguei no restaurante.

Fui até os fundos e encontrei tudo fechado e as latas vazias. Retornei à frente e não havia nada ali. Nem adiante, nem voltando,  nem em canto algum.

Saí dali desolado e junto do meio fio, sentei-me para pensar. Não havia o que comer, não havia o que fazer e nem para aonde ir.

Me deitei por ali mesmo, não havia ninguém para olhar ou reclamar, e agora, mais do que antes, não importava mais.

Não sabia o que estava acontecendo, não via nada que explicasse e não entendia nada, e tudo era só o vazio. O plano estava se perdendo a cada hora que passava. Já ficava preocupado com as chances daquela noite. Não tinha gente de dia. Vai ter de noite?

Dormi, pior não poderia ficar. Estava muito sentido com a ingratidão e com o desprezo. Sabia que já estava até acostumado com tudo isso, mas dessa vez doeu muito.

Não tinha casa nem endereço, comia restos e dormia no tempo tendo o céu estrelado como teto. Era assim há muito tempo.

Por pior que eu mesmo pudesse ser, poderiam ter ao menos me chamado. Os nojentos preferiram sair e me deixar aqui. Nunca liguei muito, mas agora só tinha vontade de chorar.

Podem ficar com as suas ruas sujas, suas lojas apinhadas e sua comida fria, que não querem, mas também não dão. Podem ficar com seus restaurantes,  pizzarias e o resto. Nunca foram feitos para mim mesmo.

Tanto quanto já sabia, foi a noite. Também foi o segundo e deserto dia, tão vazio quanto o primeiro. Foi assim o terceiro dia, tudo tão igual e tão vazio. As forças estavam me deixando, as ruas estavam me deixando.

A vida que já havia mudado, também queria me deixar. Havia resolvido continuar lentamente e não voltar nos mesmos lugares para não andar em círculos.

Me vi em áreas que não conhecia direito. Estranhava muito, mas não havia ninguém do mesmo jeito. A agonia de andar com fome estava acabando comigo. Mas era o que havia; tudo o que eu tinha.

Vez por outra via o que parecia ser um rosto por detrás de uma vidraça. Um ou outro veículo passava rapidamente sem me ver. Estava ficando invisível; mais ainda do que já era.

Prosseguia muito fraco e queria parar. Estava cansado demais para continuar. Era melhor desistir agora e deixar para amanhã, se houver amanhã.

Estava desiludido comigo mesmo. Como havia permitido conduzir a vida daquela forma? Como pude ser tão atrapalhado, tão cego? Agora não havia mais volta. Não dava mais para consertar.

Pude ver de relance, alguém do outro lado da rua, junto de um estacionamento vazio. Apontava para mim e parecia que me chamava. Havia tempos que ninguém me chamava para coisa alguma.

Então fui até lá; não havia nenhum impedimento mesmo. Sugeriu que me aproximasse e então me mostrou uma vasilha com sopa! Eu já havia provado aquilo antes, era bom e ainda estava quase morna, e havia pão. E havia água.

Foi a sopa mais saborosa que já havia recebido de alguém. Fiquei ao seu lado. Perguntou pelo meu nome. Então me dei conta de uma coisa. Eu não lembrava mais. Já não sabia mais qual era o meu nome.

Se alguém resolvesse me chamar pelo nome,  quem sabe eu pudesse me lembrar. Então ele mesmo é quem dizia “Tá bom deixa pra lá, se acomode, pois já é tarde e amanhã será outro dia”.

Me ajeitei em cima de um pedaço de papelão. Aí prestei atenção nas estrelas. Continuavam no mesmo lugar e eu já não estava mais sozinho.

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