Imagem: Wikimedia Commons-James Martins
Por: Antonio Mata
Às margens do rio, onde já não é mais branco nem preto, pois se misturam. Enquanto as águas pardas e escuras desciam em silêncio. Onde corria o mês de abril de 1884.
Um quê de incômodo, de mal estar. Besteiras que surgiam em sua mente, sem pé nem cabeça. Eram pensamentos soltos. Alguma coisa naquela fazenda chamou-lhe a atenção. Não chegava no lugar pela primeira vez. Apenas não havia se dado conta, ou não enxergava as coisas, como naquele momento.
Foi o que viu ali. Aquelas crianças brincando, correndo. Fazendo as brincadeiras e os brinquedos da roça. Crianças todas, parecendo de pele escura. Chamou a atenção pela quantidade. Havia ali perto de uma dúzia de crianças, ou mais.
Por ser ligado ao dono da fazenda, na realidade, era filho de um grande amigo. Assim, circulava sem maiores impedimentos. A sucessão de matas na beira do rio, não era algo que prendesse a sua atenção.
Estava ali a pedido de seu pai, por quem nutria respeito. Muito embora detestasse o afastado lugar. Só fazia de conta que prestava atenção nas conversas do velho.
É que o mesmo nunca teve a ideia de lhe perguntar, um ou dois minutos depois, se lembrava do que tinha acabado de falar. O ancião branco, mas de pele curtida teria se decepcionado.
O velho Ananias de Açores, se apossara daquelas terras com uma ideia a mais, além de fazer um simples roçado, ou desmatar para criar gado. O casarão com a grande moenda não deixava nenhuma dúvida. Mesmo com o campo ainda desnudo, aguardando o início de nova safra.
O engenho de cana de açúcar sempre fora lugar de escravos, e este não haveria de ser diferente dos demais. Não havia muito o que exportar para terras mais distantes, se fosse esse o caso.
É que mesmo o consumo local de açúcar, era restrito, ali e nos arredores. Empreitada pequena, porém, suficientemente lucrativa para prender o velho no lugar. Ao menos era o que Clemente pensava sobre aquilo tudo. Até ali, antes de ver os negrinhos brincando.
Largou de suas observações pessoais e afastou-se da companhia do velho. Discretamente, tomou um rumo que mudou depois, se pondo a caminho dos negrinhos. Aqueles mesmos que prenderam sua atenção desde o início.
Encontrou-os brincando de atirar bolotas de barro em uma poça d’água. Faziam montinhos de pelotas para lançá-las depois. Aproximou-se e somente olhava as crianças brincando ali perto.
Sem dúvida que haviam irmãos, pois formavam uma escadinha. Tanto quanto já não eram mais negros de África, propriamente. O tráfico era proibido há muito tempo. O tipo de cabelos e a pele de alguns, mais clara, já indicavam não só a presença de mulatinhos, mas também a origem paterna.
Clemente balbuciava consigo mesmo.
— O que foi que deu na cabeça do velho para fazer esse monte de mulatinhos? Em uma propriedade pequena? Se queria ampliar, seria para quê? Vender para quem?
Era lógico demais que não era só aquilo que estava ali, diante das vistas. Seria apenas a parte visível. Fosse o que fosse, ainda não havia se completado, lhe parecia. Achou melhor fazer algumas perguntas aos mulatinhos que brincavam na poça de lama.
— E aí meninos, como funciona essa brincadeira?
— É só acertar na poça, aí aumenta a distância. Quem não acerta, vai saindo da brincadeira, até acabar. Quem acertar tudo, é quem vence. É o capataz e vai dar uma lapada em cada um.
— Tá falando sério?
— Não tá não. Ele sabe que sobra pra ele também. — Comentou outro garoto.
— Entendi. Então aqui são quatorze meninos. E as meninas para onde estão e quantas são?
— São dezoito e estão do outro lado. Têm quem fica na cozinha. Tem quem fica no terreiro ajudando. As pequenas ficam brincando por lá mesmo. Só para ficar por perto.
— Claro, então vocês são 32 crianças, acertei?
— Acho que sim.
— Quem é o pai de vocês?
O garoto olhou para os lados, como quem busca por apoio, ou por alguma resposta mais adequada. Só que esta não veio.
— E aí, o gato comeu a língua de vocês?
O silêncio prosseguiu.
— E suas mães, onde estão suas mães?
Novos olhares para os lados e novo silêncio. Agora não fazia mais sentido.
— Não estou entendendo, onde estão as mães de vocês?
Novo silêncio.
Clemente, que já vinha intrigado desde o início de sua visita ao velho, ficou mais intrigado ainda.
— Tá bom. Olha só, vai ficar só aqui entre a gente e ninguém mais precisa saber.
Um dos menores presentes, principiou a falar.
— A minha mãe sumiu.
— Cala a boca! — Ouviu logo em seguida.
Contudo, outro dentre os meninos, completou.
— Nhô, nhô Ananias disse que elas foram embora.
— Você disse “elas”. Então as mães foram todas embora?
Mais uma vez, os meninos abaixaram a cabeça e retornaram ao costumeiro silêncio. Lhes era difícil, senão perigoso, sustentar aquele tipo de conversa.
Clemente procurava interpretar o cenário que surgia em sua mente tal e qual um punhado de peças de madeira espalhadas, de um jogo de tabuleiro que faltava montar.
Buscou extrair mais detalhes no grupo das meninas. Algumas choravam, enquanto as mais novas, não mais que quatro ou cinco anos, balbuciavam coisas, sem que as mais velhas se interessassem em esclarecer.
Estavam mais interessadas em esconder e se possível, que o próprio Clemente saísse dali. Certamente que haveriam consequências para quem se atrevesse a falar. Ainda mais para um bando de mulatinhos.
Em uma terra de muita exploração do homem pelo homem, o que quer que pudesse ter acontecido, algo haveria de explicar o sumiço das mães de 32 crianças de idade muito próximas.
O visitante não estava simpatizando com o que pudesse ter acontecido, ou ainda acontecia. Nunca fora muito interessado pelas questões da escravidão. Seu pai, um comerciante de poucos haveres e possibilidades, não possuía escravos. Também não se importava com o assunto.
Apesar disso, lhe intrigava o simples desaparecimento das mães escravas, sem uma razão visível. Se as tivesse vendido, aqui e ali, as pessoas acabariam sabendo. As próprias crianças saberiam e não haveria razão para tanto silêncio.
Pensava então consigo mesmo, Há algo de podre no reino da Dinamarca. Não conhecia a Dinamarca, nem porque haveria algo de podre por lá, mas ali naquela fazenda, tinha sim. Pelo visto, só o próprio Ananias, poderia oferecer mais alguma informação. Justamente aquele que provavelmente seria o menos interessado em um bisbilhoteiro. Mesmo que fosse o filho de um amigo seu.
Sendo assim, descobrir o que aconteceu com um grupo de escravas. Isso interessava? Não perguntara sequer, quantas eram essas mães cheias de mulatos. Sendo assim, deu por encerrado o cerne de suas preocupações de uma hora atrás.
Foi concluir seu passeio inútil, já que não havia nada para se ver. Depois era só se despedir do velho e das duas mulheres mestiças de pele clara, Ana Maria e Raimunda. Tinha visto a ambas, modestamente vestidas, porém melhor, se considerar os demais serviçais, todos maltrapilhos na casa do velho.
Depois, só aguardar a manhã seguinte e a canoa que o levaria de volta a cidade. Teria cumprido com a droga da sua obrigação de amor filial, e então, dane-se.
Foi logo após o desjejum. Café, macaxeira e cará, servido pelas mestiças. Já na casa da fazenda, em fim de conversa com Ananias, enquanto aguardava a canoa que o levaria de volta. O assunto mais escorregadio do lugar, tornou a voltar.
Não que estivesse propriamente interessado, mas o assunto achou de voltar, assim mesmo.
— Ainda que mal lhe pergunte, notei a ausência das mães de tantas crianças mulatas que existem por aqui. Quem está cuidando daquelas crianças e afinal, por onde andam as mães? É que não me pareceu que tenham sido vendidas.
Clemente mencionou logo, a sua descrença quanto a uma possível venda, só para descartar de pronto, um provável lote de mentiras. Só para economizar os próprios ouvidos.
Não obstante, foi o suficiente para emudecer o velho.
— Faz ideia do que possa ter ocorrido? Instigou de uma vez.
O velho olhava para o rio ao longe. Parecia pensar em algo sensato, coerente, razoável e não comprometedor. Pelo menos para ele mesmo. Até que se pôs a falar, sem pressa.
— Aqui, esse lugar aqui...
— O murro, a cabeçada...
— Aqui, é na ponta da faca. — Falava e olhava para o rio.
— Você vê o tempo passar. A tua pele vai ficando engelhada de tanto sol e serviço. Os mosquitos comem a sua cara, enquanto você perde os dentes. Um de cada vez.
— Então, quando você menos espera, estará sem nenhum. É assim que vou acabar aqui. Entre o trabalho, a possibilidade de perder tudo e ainda sem os dentes. De repente, até sem a vida.
Tornou a parar longamente, olhando as águas ao longe. De olhar vidrado no rosto raivoso, prosseguiu.
— Ninguém vai tirar tudo o que é meu. Tudo o que me pertence. Tudo o que trabalhei para possuir. Cada palmo de terra, cada facho de cana, cada tacho de garapa...
— E não é só isso...
— Cada negrinha, cada cria, cada mulato. Isso é tudo meu. Não tenho que dar satisfações a ninguém. Nem a você.
— Então foi isso que aconteceu.
— Aconteceu o quê Clemente? Perguntou cinicamente.
— As lutas pela Lei do Ventre Livre. Sabia que chegaria mais cedo ou mais tarde. Você ficou sabendo. Por isso tratou de emprenhar essas mulheres o máximo que pôde. Mesmo assim a lei chegou, mas você prosseguiu. Tratava de vendê-los logo, aos dez ou doze anos. Só por precaução. Permitiu ficar com Ana e Raimunda.
E prosseguiu.
— Além disso, eu já entendi. É claro que as duas mestiças brancas, são suas filhas, não é mesmo?
— Não tenho que dar satisfações nem a você.
— Não precisa. Só uma coisa ainda me intriga. Na verdade, duas, pois a primeira já entendi. Os mestiços de cabelos lisos e pele mais clara, que vi brincado. São seus netos, não é mesmo? Vai vendê-los assim mesmo?
— Não tenho que dar satisfações nem a você.
— Não precisa responder. Está na mata, mas não está perdido. Sabe que os abolicionistas estão trabalhando. Por isso lamenta ficar sem nada.
— Neemias encarava Clemente sem dizer palavra.
— Só mais uma coisa. Se você não as vendeu, o que fez com as outras mulheres, as mães negras?
— Não lhe dou satisfações Clemente.
— Claro que não. Você as matou e devem estar enterradas por aí. Não é mesmo Ananias?
Não recebeu nada em resposta.
Levantou-se, sem se despedir dirigiu-se à porta sem falar com ninguém. Já a caminho do rio, onde embarcaria de volta a cidade, passou por Ana Maria.
— O porão.
Clemente virou-se.
— O que tem o porão, o que tem lá dentro?
— As quatro negras, as mães das outras crianças.
— Meu Deus, o que é que você está dizendo? Estão presas no porão?
Ana Maria, com um rosto que não expressava nenhum tipo de sentimento, respondeu.
— Estavam, agora já não estão mais. Pelo tempo já estão todas mortas.
Ana Maria contava aquilo como se fosse uma questão de menor relevância e não um assassinato. Na realidade uma chacina. Cruel e premeditada. Mesmo assim, ensejava outra questão. O velho as prendeu para morrer, por conta do quê?
A resposta era simples, o egoísmo. Com a chance da libertação se aproximando, achou melhor resolver tudo do seu próprio jeito.
— Nunca procurou fazer nada, fugir pelo menos?
— Para onde? Só conheço esse lugar. Nunca nos deixou atravessar o rio.
— Então é assim que vocês vivem? Pois venha comigo Ana Maria. Tenho certeza que meu pai vai lhe receber.
— Ele vai mandar o capataz com os seus homens me trazerem de volta. E você não vai poder fazer nada. Eu nasci escrava.
— Pois você deve tentar. Vou falar com meu pai. Vou falar com todo mundo. Todos vão saber.
— Meus filhos, você deve tê-los visto. Os filhos de Raimunda também. O que serve para mim, serve para ela.
Clemente entendeu que ela não deixaria aquele lugar.
Pesaroso, confuso e descrente dos homens, entrou na canoa retornando para a cidade, cerca de oito horas além, com homens no remo. Nunca mais retornou ao engenho do mato nem voltou a ver Ananias, as mulheres ou as crianças.
De fato, contou a tal história a seu pai, que o que fez foi esquecer o então, amigo. Nunca mais se ouviu falar de Ananias ou o que mais fosse que envolvesse aquele lugar.
O que se sabe de se ouvir dizer, é que no início do século XX, por volta de 1901 ou 1902, o velho morreu. O engenho acabou antes, pois já não dava lucro há muito tempo.
Por vez, vender negrinhos perdeu o sentido, já que na cidade as pessoas com dinheiro sabiam que a libertação das crianças escravas, ocorrera por força de lei, em 1871. O fim da escravidão, que se deu em 1888, já era aceito como mera consequência. Já não valia mais a pena. A fazenda foi sendo abandonada aos poucos, com a floresta retomando os campos.
Há uma razão mesquinha e bem objetiva por trás da sina que ajudou a condenar Ana Maria e Raimunda. De pele clara, porém de aspecto franzino, Ana e Raimunda não foram abençoadas com o dom da beleza.
Com a morte do velho, elas mesmas destrancaram o porão e retiraram as ossadas das mulheres de seus grilhões. Os restos mortais foram sepultados não longe dali.
Ana e Raimunda ainda viveram no lugar até 1933 e 1939, quando faleceram, respectivamente. Seus mestiços e das outras quatro mulheres, com o tempo, se espalharam por todo o Amazonas.