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Por: Antonio Mata
“Quando vi pela primeira vez aquelas águas negras, ainda não fazia nenhuma ideia do impacto que poderia significar na história de minha própria vida. Rio de grandeza, rio de beleza, rio da minha perdição.”
O gosto por peixes ornamentais herdara de seu pai. Desde a infância aprendera a apreciar os peixes pequeninos, e a cuidar também. Seu tio outro aquarista, havia criado uma loja para a oferta de equipamentos, aquários e peixes. Trabalhando com o tio, na sua adolescência, este seria também o seu primeiro emprego.
O tempo passou, e viria a exercer outras funções na vida, nada que de fato o entusiasmasse. Já aos 34 anos, vamos encontrá-lo trabalhando como bancário, sem o menor interesse em levar aquilo mais adiante. Sete anos enfadonhos, com os quais não obteve nenhuma satisfação.
Só uma coisa achou por bem salientar e guardar na memória, por conta de sua estadia no banco. Certa feita, alguém havia deixado um dos cadernos de um jornal sobre a mesa, próximo o suficiente para querer pegá-lo. Aquele jornal de dois dias atrás o traria de volta ao mundo dos peixes ornamentais.
Foi assim que soube de uma pequena notícia, que não chamou lá muita atenção, onde se informava que o mercado de peixes ornamentais se encontrava em franco crescimento.
Conhecia bem a atividade, e sabia que o aumento no número de criadores, forçava a demanda por peixes, que crescia também, por conta da inexperiência de pessoas que não sabiam cuidar dos animais, que então morriam prematuramente.
Exemplares bonitos e raros, pela dificuldade em se obter, se perdiam em poucos meses, por conta de entusiastas precipitados e despreparados. Água com ph indevido, com níveis por demais elevados de acidez; superpopulação de peixes no aquário; doenças por contaminação da água; peixes que não combinam dentro do mesmo aquário.
Nada que não se pudesse aprender. O problema é que muita gente adentrava o aquarismo, como quem procura uma espécie de brinquedo. O conhecimento ficava para depois.
Outra coisa não menos importante, peixes ornamentais comumente possuem um ciclo de vida curto, de um a cerca de dois anos. Muito diferente do tempo de vida de um cão ou um gato. Isto assegurava a manutenção da clientela, pela necessidade da reposição relativamente curta.
Desde que se consiga uma fonte segura para a obtenção dos peixes, ser distribuidor de peixes ornamentais é um ótimo negócio. Assim, queria ser o primeiro fornecedor da rede.
Achou por bem complementar com mais informações, e acabou concluindo aquilo que já desconfiava. A oferta de peixes não crescia, ou crescia pouco. O resultado disso era a falta de animais e a valorização dos existentes.
“Estava de saco cheio com o trabalho no banco. Juntei algumas economias e me demiti do emprego no banco.” A ideia de identificar pontos de obtenção de peixes ornamentais, havia crescido o suficiente, para me fazer procurar por eles.
Estive em países da América central, sem encontrar nada significativo. Apenas pequenos criadores em negócios de subsistência. Outras pessoas já haviam chegado mais cedo, e controlavam a oferta e a remessa de peixes. Não era isto que estava procurando.”
“Cheguei a passar vários meses na Venezuela, onde encontrei fornecedores instalados. Para investir ali, logo teria um pequeno negócio, e vários concorrentes, ainda pude realizar algumas remessas. Era só coisa pouca, e estava subordinado, compartilhando os lucros para obter algum dinheiro. Ao final do semestre, deixei a Venezuela.”
“Parti de Caracas para Manaus. Depois de circular pela cidade por uma semana levantando algumas informações, deixei a cidade e prossegui de barco motor, daqueles onde você viaja balançando na rede. O destino era Barcelos.”
“Adentrei aquele que seria um dos principais cenários de minha vida, o Rio Negro. Aonde iria de encontro à linha do tempo criada por mim mesmo. Aquilo que chamamos de futuro. Quer você queira ou não, e a maioria nem sabe, mas você vai criar uma. Eu também não sabia. Minha linha do tempo continha toda a riqueza, todos os conflitos e todas as tramas do meu próprio tempo. A minha linha, o meu tempo e a minha história. Aquela que eu criei”
“Foi rápido que fiz contato com os caboclos, pescadores da região. Já em Barcelos, no dia seguinte já estava dentro do rio, na companhia de Anacleto, um sujeito muito simples e muito pobre também, cuja principal preocupação era obter o sustento para a mulher e os três filhos.”
“Seu sonho era ter um motor de rabeta. Comprei um desses motores e equipamos sua canoa. Sem saber uma palavra de português, consegui fazê-lo entender que o motor era dele e que poderia me pagar com serviços.”
“Homem discreto e compenetrado, Anacleto se tornaria meu braço direito na execução daquela empreitada. Com o tempo, cada um aprenderia um pouco da língua do outro, e com essa mistura as coisas eram tocadas adiante.”
Em sucessivas subidas pelo Negro, os homens foram identificando, com o conhecimento de Anacleto, e outros caboclos ribeirinhos, as melhores localizações de captura de cardumes de Cardinal Tetra, entre outros, um peixe de uns dois centímetros, muito vistoso com seu corpo avermelhado e sua faixa azul prateada da cabeça até o início da cauda. O tetra verde neon, também era muito procurado.
O peixinho é extremamente popular entre os aquaristas, tanto os mais experientes como os iniciantes. Onde se via um peixe minúsculo, enxergava produto, e um mercado promissor. Só era preciso tempo e paciência para organizar as coisas.
A captura do Cardinal exige trabalho, penetração nos igarapés, os rios menores que desaguam no rio Negro, sendo preciso adentrar o igarapé, se afastando do rio principal. O peixe gosta das águas tranquilas das margens, sombreadas sob as árvores, e com folhas e galhos no leito do rio, compondo o seu habitat. É aí na mansuetude destas águas limpas, cor de chá claro, que eles vivem e proliferam aos milhões.
“Enquanto Anacleto manobrava a canoa, eu anotava o nome dos igarapés, fazia uma estimativa da distância até os pontos de ocorrência, e de lá até o rio Negro. Era preciso encontrar os grandes berçários e conhecer seus tempos e prazos. Acionaria a família de meu tio, com quem trabalhara tempos atrás. Era preciso estabelecer a receptação e criar um distribuidor.”
“Procurei colocar tudo sobre um mapa, só que eram inexistentes. Tive que fazer os meus próprios, a partir de imagens de satélite. O problema é que estas imagens nem sempre mostravam os igarapés menores, pois eram cobertos pela vegetação. Era preciso reunir todos os dados para planejar a exploração. Reuni os pescadores e pagava em dinheiro. Aos poucos a exploração comercial foi ganhando forma.”
“Pagava por milheiro de peixes recebidos. Com menos de 150 dólares, pagava por um mês de trabalho. Um pescador entregava em um mês, cerca de 100 milheiros. Uma dúzia de Cardinal, para o comprador final, o aquarista, custava 12 dólares, um dólar por cada peixinho daqueles. As remessas avaliadas em 20 mil, e depois em 50 mil dólares, se tornaram habituais.”
“Logo havia recrutado dezenas de piabeiros, assim chamados, pois os peixes ornamentais, nestas terras são conhecidos como piabas. Estes ribeirinhos faziam o trabalho mais penoso de percorrer os estreitos igarapés, mata adentro, às vezes por horas a fio na busca das piabas”
“Diferente, inóspita e bela, assim é a bacia hidrográfica do rio Negro. A quantidade de pássaros, e outras espécies de animais era impressionante. Tartarugas, ariranhas, macacos, araras, tucanos, antas, cruzavam pelo caminho. Além daqueles mais perigosos, como sucuris, jacarés e onças.”
Havia se fixado na pequena e acanhada cidade de Barcelos, instalando lá a sua base, porém estabeleceu pontos de apoio nas imediações de onde é hoje, Calanaque, e um ponto maior em Santa Izabel do Rio Negro.
Nos pontos de apoio era possível obter provisões, e principalmente entregar os carregamentos de peixes, que eram então repassados para Barcelos. Utilizavam embarcações rápidas munidas de tanques com água fresca, e à sombra, para a viagem, de tal modo que as perdas com o manuseio fossem as mínimas possíveis, e a disponibilidade da mercadoria, a mais breve possível. Tudo para que a minúscula e preciosa criatura não fosse comprometida, o que nem sempre era verdade.
Descobrira com o tempo, que na confluência do rio Negro com o rio Branco, e descendo pelo Negro, se encontrava os longevos, belos e caros Acarás Disco, e suas subespécies, os verde, azuis, marrons e Heckel.
Também encontrara os Acarás Bandeira e subespécies. Ainda que não fossem tão prolíficos como os Cardinal, e, portanto, menos comuns, em sua área de atuação estavam presentes. Descendo o rio, havia maior disponibilidade de cardumes.
Peixe de igarapés e de lagos escondidos na floresta, possuíam um grande atrativo, o preço, eram muito procurados e muito valiosos. Estabeleceu, por garantia, um ponto de compra em Moura, para aquisição de Acarás.
Controlando vasta extensão do Negro, adentrando e catalogando seus igarapés, mobilizando centenas de piabeiros e ribeirinhos. Estabelecendo o fluxo de exportação destes peixes pequeninos.
Dessa forma cuidava dos valiosos ornamentos. Era de se imaginar que outros interessados, ante o sucesso alcançado, se apresentassem para organizar o próprio negócio. Foi a partir daí que a exploração assumiu outro aspecto.
Homens foram armados com espingardas e passaram a circular pelo Negro, de forma dissimulada, como simples piabeiros no exercício da pescaria, na realidade faziam a patrulha do rio, alertando e expulsando os intrusos.
O que um dia começou como simples murmúrio, da parte de quem se considerava insatisfeito, foi se transformando em uma onda silenciosa de insatisfação. Muitos ribeirinhos queriam pegar seus próprios peixes e vende-los para quem oferecesse o melhor preço. Tal e qual ocorre com os peixes comestíveis.
Certa feita, inspecionando seus postos de apoio, fora interpelado por uma morena nativa, uma cabocla de pele clara, cabelos e olhos negros. A mulher não estava propriamente exalando simpatias. Na realidade cobrava do homem, respostas que nunca estivera disposto a dar.
Ainda que não gostasse da atitude e das palavras da jovem, achou por bem não se indispor de forma tão imediata, e se prontificou a ouvi-la. Bernadete, era seu nome.
— Não preciso me alongar, até porque muita coisa já é de seu conhecimento. O que quero saber, é a razão pela qual está impedindo que pescadores independentes subam os igarapés para buscar os peixes ornamentais. E prosseguiu.
— São todos gente daqui do lugar. A pesca de piabas já existia antes da sua chegada. Eles vivem da pesca, assim como seus pais, antes deles.
“Pensei na fala daquela mulher, e não queria entrar em discussão com ela. Era evidente demais que tinha convicção no que dizia, e, vamos aos fatos, era tudo verdade.”
“Achei melhor conversar e explicar as coisas, talvez pudesse, quem sabe, contar com seu apoio. Era inteligente, e o seu falar não era propriamente de uma ribeirinha. Lógico que recebera educação. Ouvi todas as suas reclamações, e por fim mais uma, que também era verdade.”
— Tenho ouvido com uma certa frequência, que estariam pescando piabas demais. Soube pelos pescadores, que existem igarapés onde os peixes estão desaparecendo. Os acarás, de Barcelos até Santa Izabel, quase não se vê mais.
“Eu a ouvia com atenção e uma certa dose de admiração. O que me vinha à cabeça realmente, era alguém instruído que pudesse falar em defesa da empresa. Como fazer isso?”
“Não bastasse suas queixas, ao final, fez ainda uma afirmação que se mostraria o epitáfio de nós dois.”
— Precisa compreender, que na continuação da exploração dos peixes, e dessa gente, tudo o que irá conseguir é a ruína de todos nós.
“Ouvi tudo, baixei a cabeça, fiz menção de rir daquele seu tom melodramático, mas resisti e evitei o conflito. Não era hora para nada disso. Não podia desfocar de jeito nenhum. Então decidi pela paz.”
— Está bem Bernadete, ouvi e respeito suas preocupações e opiniões. Acredito que não seja algo tão difícil de se acordar. Tenho também minha obrigações, que também preciso atender. Então, proponho darmos algum tempo. Vamos pensar um pouco, e nos vemos novamente, em Barcelos, para expor nossas ideias. O que acha, podemos combinar dessa forma?
— Tenho amigos em Barcelos, está bem, a gente combina um dia. A propósito, o seu nome é mesmo Laurêncio?
— Não, é só um aportuguesamento. E eu encontrei no meio da selva, alguém que talvez grave o meu nome mais facilmente. Meu nome é Lawrence, como em Lawrence da Arábia.
Aproveitou a curiosidade da jovem pelo seu nome para descontrair e terminar aquela conversa de forma amigável. Deu certo, ela sorria e muito da antipatia e oposição do começo já havia sido superada. Boas expectativas sempre ajudam, e havia plantado uma na mente de Bernadete. Ela não iria deixar passar por nada nesse mundo.
No dia aprazado deu-se o encontro, em bases mais amistosas que antes. A casa, em meio a um grande jardim, confortável e espaçosa, destoava das moradias da pequena Barcelos. Recebeu Bernadete na varanda lateral, de frente ao grande jardim, onde os pássaros da região, “se convidavam”, e passavam a embelezar a paisagem do lugar. Sem maior demora, foi Lawrence quem iniciou o diálogo.
— Pude pensar bastante Bernadete, o suficiente para definir uma proposta, tão honesta quanto viável.
— E então, o que propõe? Indagava Bernadete.
— O desenvolvimento de criatórios Bernadete, gradativamente, ao invés de só pescar direto da natureza, que é uma de suas preocupações, vamos criar peixes ornamentais.
É evidente que Bernadete apreciou a ideia, mas queria saber do resto, e havia mais. Lawrence prosseguiu.
— Uma nova frente de trabalho e aprimoramento técnico com a implantação dos criatórios. A capacitação da população local para a criação vai ser importante. Paralelo a isso Bernadete, o controle da pesca, tanto das piabas como dos acarás.
Bernadete simpatizava com a proposta, era bem além do que pensava. Lawrence continuou.
— Vamos estabelecer o defeso Bernadete. É o caminho da autorregulamentação, com o apoio dos pescadores, é claro. Na época do defeso poderão se dedicar a outras atividades, costumeiramente já fazem isso. Assim protegemos não só a empresa, como a região na calha do rio Negro, entre Moura, até Barcelos e daí até Santa Izabel. Tem tudo para dar certo.
Bernadete, sem dúvida apreciou a proposta. Entraram e maiores pormenores sobre o assunto. Era ainda preciso anunciar aos pescadores as mudanças, que deveriam ocorrer em breve. Lawrence acrescentou algo importante.
— Há um aspecto fundamental que não podemos esquecer. Precisamos de um bom coordenador para a implantação do projeto. Alguém que conheça estes rios, tenha afinidade com as populações do lugar e a disposição necessária para implantar tudo. É claro que terá o apoio técnico de que irá precisar.
— Ora, Anacleto já é seu homem de confiança há muito tempo. Afirmava Bernadete.
— Sim, é verdade, Anacleto é importante. Só que isto vai exigir mais disposição para aprender, para conhecer. Anacleto é meu capataz, é ele que toma conta de tudo. Para esta empreitada, precisamos de outra pessoa, alguém com mais formação. Me ocorreu, você mesma Bernadete.
— Eu, coordenar o projeto? Não posso...
— É claro que pode Bernadete. Quem mais tenho visto se importar com sorte dessa gente e dessa região?
— Agradeço a confiança, senhor Lawrence, mas realmente, não me vejo como coordenadora do projeto, ainda que o considere ótimo, e espero sinceramente que obtenha sucesso com ele.
Bernadete sabia o quanto aquilo era importante, mas não estava disposta a ser subordinada, assalariada de Lawrence. Acreditava que isto poderia tolher o seu raio de ação. Preferia acompanhar o andamento das coisas, junto aos ribeirinhos, como já fazia.
Não seria dessa vez, e Lawrence teve de aceitar.
Intuição, premonição, ou aviso, Bernadete sentia que devia aguardar o desenrolar dos acontecimentos, até aquilo se tornar verdadeiro. Não custava nada aguardar.
“Aquela cabocla me intrigava com aquele seu comportamento. Outra pessoa, mulher ou homem, estaria se derretendo por um cargo tão relevante, em uma terra de tão poucas oportunidades. Bernadete teve a audácia de recusar”.
“Um demônio caboclo qualquer, fechou acordo com os meus próprios, e resolveram se meter no que não era da conta deles.”
“Lawrence, você gosta dela.”
— Não, não gosto, e trate de voltar para o inferno de onde vieram, você e leve esse branquelo consigo. Não preciso de nenhum de vocês, nunca precisei.
Quem visse aquela cena, diria tratar-se de um velho gagá falando sozinho. Não era não, era apenas Lawrence entregue aos seus próprios fantasmas. De fato, gostava da garota e não assumia, por puro preconceito. Tudo tão comum, tão banal e tão clichê. Não seria o primeiro a gostar de uma mestiça da região, nem tampouco seria o último a negar. Isto não tem a ver com cor de pele, e sim com fraqueza moral.
“Tinha mais coisas em mente, e não queria que nada atrapalhasse. Muito menos as opiniões de Bernadete. Faria o que havia combinado com ela. O projeto foi tocado adiante, e realmente passamos a trabalhar com criatórios. Os empregos para sua gente, também vieram. A formação técnica fazia parte.”
“O que ela demoraria para entender, e fora concebido pensando nisso, para não despertar suspeitas sobre outras ações, é que apenas abandonaríamos os igarapés mais explorados. A guarda para manter os demais afastados destes igarapés, permaneceria. De todo modo estaríamos zelando pela natureza.”
“A exploração prosseguiria em outros tantos igarapés e lagos. Com os Acará, como o número já era pequeno, era só aumentar o preço e justificar que tinha a ver com a preservação. Quem tivesse dinheiro, iria querer comprar do mesmo jeito.”
“Já os Cardinal, eram por demais populares, apreciados como peixe de entrada para novos aquaristas. Reduzir a oferta, poderia inibir a compra por parte dos aquaristas iniciantes, por conta do consequente aumento do preço. A mina de ouro precisava continuar sendo explorada.”
“Por cerca de um ano, deu certo como o melhor traçado dos planos. Bernadete estava satisfeita, e acabou nos defendendo nas reuniões comunitárias, sem que isto nos custasse nada. Tínhamos a confiança da população em nosso trabalho. Não me considerava nenhum mestre, mas até que fui bem ardiloso.”
“Nada é para sempre, está escrito em algum lugar. Em março do ano seguinte houve um conflito entre piabeiros e funcionários nossos fazendo a guarda das entradas dos igarapés. Forçaram o acesso. A lancha dos vigilantes atropelou a canoa dos piabeiros, e bateram neles com a coronha das armas. Passou um mês, e aconteceu de novo. Pescadores foram espancados por vigilantes ao reclamarem do preço que estava sendo pago no milheiro de peixes. Dessa vez, a população ficou sabendo e reagiu.”
“O posto de apoio de Santa Izabel, foi atacado a pedradas. Chamou-se a polícia para impedir a invasão do local. Era preciso reverter a situação e rápido.
Já escurecia, pensei em chamar Bernadete e demais representantes dos pescadores e ribeirinhos, o mais breve possível. Não queria deixar para o dia seguinte. Havia muita animosidade no ar. Não foi preciso, quando cheguei em casa, ela já estava à minha espera.”
— Ainda bem que você está aqui Bernadete. É preciso tomar atitudes urgentes no sentido de restabelecer a ordem e esclarecer as famílias. Você não acha?
Bernadete, sem maiores rodeios lhe ofereceu o resultado do que vinha levantando a um certo tempo.
— Duvido muito do seu interesse em restabelecer a ordem. Aliás, duvido muito de tudo o que você diz.
— Está bem, venha comigo. O que quer que esteja pensando, acredito que existam coisas que você ignora. Só um instante, eu já volto.
Lawrence retornou com uma espécie de agenda espessa, com capa de couro decorada à mão. Bernadete lembrou já ter visto o objeto em suas mãos outras vezes. Vivia anotando várias coisas que surgiam pelo caminho. Ocorrência de animais, acesso de igarapés muito piscosos, posição de comunidades ribeirinhas, tudo aquilo que pudesse ser importante para a exploração.
Acompanhou Lawrence até os fundos da casa, onde seguiram para um pequeno atracadouro. Foi Bernadete quem principiou a conversa dessa vez.
— Estes anos todos você tem falsificado guias e autorizações para a exportação de peixes. Tem subornado funcionários para obter as autorizações. Tem explorado a pesca muito além da capacidade de reposição. Os ribeirinhos reclamam, e com razão. O que faz a sua riqueza, provoca a falta do sustento deles. Parou por um instante, e prosseguiu.
— Está contrabandeando animais silvestres. Tem retirado onças, ariranhas, tucanos, araras. Tudo o que possa ser transformado em dinheiro. Tem receptado ouro, e retirado clandestinamente do país. É por isso que precisava fazer tantas anotações. Nada, nenhum detalhe, podia ser abandonado ou esquecido. Fez outra pausa em sua narrativa.
— Há uma pista clandestina, por onde se embarca tudo em um avião, um bimotor, que cruza a fronteira conduzindo o produto do seu trabalho. Tudo clandestino, tudo às ocultas. Finalmente concluiu sua fala.
— Agora acabou Lawrence, não tenho mais nenhuma razão para acreditar em você. Eu lamento, mas somos de mundos diferentes, enxergamos a vida de uma forma diferente.
“Entendi que minha saga amazônica havia realmente terminado. Não era só Bernadete, porém, sua fala deixava evidente que mais pessoas já estavam se dando conta dos fatos. Começar a ser procurado pela polícia, agora seria mera consequência. Era como pensei, era como desconfiei.”
“Não sei se foi consciente, ou por pura idiotice. A verdade é que acabara de ser avisado, mais que isso, acabara de ser confirmado. O castelinho de cartas ruíra com tudo o que estava dentro. E havia muito, muito a perder.”
Bernadete havia se afastado alguns passos na direção do rio, o mesmo Negro que a viu crescer e partir, e para onde resolveu voltar. Gostava do lugar, da sua gente, da vida simples sobre aquele enorme caudal que amparava a todos.
Apreciava seu rio Negro, sob a luz da lua, e muito pouco ligou para o estalido repentino e estranho. Diferente dos sons da floresta, com os quais já estava habituada. Sentiu a nuca doer, o que muito pouco lhe importou. A cena da lua sobre o espelho negro, era por demais encantadora para querer prestar atenção em outra coisa. Não sentiu, e nem viu quando seu corpo, transformado em boneco sem vida se precipitou ao chão.
Estava consumado. Lawrence, aquele dos planos e valores a perder, havia sacado uma pistola .22, de dentro do fundo falso de sua agenda trabalhada em couro. Dois mundos que nunca se confundiram, haviam acabado de colidir. O mundo do materialismo doente e obcecado, e o mundo Gaia; mundo Terra; mundo de espíritos; de fadas e duendes; de Iara e Tupã; de todos os tempos; de todos os santos e de todas as raças; mundo de criaturas; o mundo do Criador.
“Não devia ter me procurado, estava dando o fora mesmo. Sabia que era uma mulher de muitos valores, tanto quanto sabia que nunca estaria comigo. Fui o seu desengano, sem que um tivesse de fato se aproximado do outro. Não haveria como, jamais comungaria das minhas ideias.”
“Coloquei seu corpo dentro da lancha, desci o rio por uma hora, e o atirei no meio das águas. Foi só cruzar o rio, e do outro lado já me aguardavam em um veículo. Por uma trilha no meio da mata chegaríamos à pista de pouso. Esperou-se o sol raiar. Entrei no avião e fomos embora.”
Deixou seu paraíso na Terra, que ficava cada vez mais para trás, na distância e no tempo, assim pensou. Nunca mais retornou ao Brasil, à Amazônia, ou às águas do Negro. Fora a sua saga, a sua aventura, dezoito milhões de dólares em dinheiro, além de propriedades, títulos e outros valores, totalizando uns 22 milhões, atestavam sua estirpe de desbravador.
Em certas rodas, adquiriu fama de “self made man” , aquele tipo de pessoa que encarou a vida de frente, e que apesar de todos os impedimentos e dificuldades, foi forte, corajoso e triunfou. Só não podia falar demais. Existiam coisas que não se podia contar. Tinha 41 anos quando assumiu sua visão de triunfo.
A década seguinte assistiu a multiplicação da sua riqueza, e de tudo aquilo que o dinheiro gostava de comprar. Empresário de sucesso, era assim que o conheciam.
A vida que pediu a Deus. Não é assim que se diz? Foi quando uma dor desagradável começou a se manifestar, e com a qual muito pouco se incomodou. Quando a dor se fez mais insuportável, decidiu descobrir o que era aquilo e procurou um médico. Este primeiro o encaminhou a outro especialista, um cancerologista.
O especialista foi absolutamente honesto.
— Um câncer severo, está solidamente instalado. Receio que não possamos fazer mais nada Lawrence. Aproveite seus dias, viaje, visite os amigos, faça algo que lhe agrade. Se você tiver seis meses pela frente, considere como um presente de Deus.
Havia acabado de completar 51 anos. Não foi viajar, nem visitar ninguém. Não tinha amigos a visitar, estivera ocupado demais com seus negócios para pensar em amizades. Enclausurou-se em casa, junto de seus próprios fantasmas.
Em três meses foi internado. Em três semanas, transformado em pele pálida e ossos com olhos azuis, o desbravador dos sertões amazônicos deixava o mundo dos vivos, de forma um tanto quanto anônima. Mais um nome a ser esquecido, não fosse uma placa de bronze em sua tumba, oferecida por alguns parentes, “Coragem, destemor e sucesso”.
“Quando o negrume se assenhorou dos meus dias, não estranhei nem reclamei. A escuridão pode ser brutal, quanto mais brutal for a própria mente. Não havia o que se ver, apenas ouvia gritos, urros, imprecações, maldições, sentia meu corpo coberto por larvas, e um cheiro pesado de pus. Aceitava tudo como um pedaço de pau, imprestável e inútil, ali vivi e ali enlouqueci.”
“Não sei como foi, não lembro, não sei do tempo, nem do modo. Um dia fui retirado daquele inferno. Acordei em uma cama de hospital. Depois de um tempo que também não sei precisar, fui conduzido a uma espécie de grupo de reeducação, ou qualquer coisa que o valha. Havia passado 44 anos na escuridão, como fiquei sabendo depois.”
“Lá me dei conta de que estava cercado por pessoas com um elo comum. Eram aqueles que queriam animais vivos, e aqueles que os queriam mortos. Havia caçadores por esporte; como troféus; ou pela fama. Estavam lá comerciantes de peles de animais; de marfim; patas; cabeças; caudas; vísceras.”
“Traficantes da vida dos grandes biomas da Terra, estávamos todos reunidos. O tema a ser abordado era a Criação Divina, e suas implicações com a vida humana, a vida do planeta, e a disseminação da vida em outros planetas.”
“Enfim, a Cocriação, uma das mais nobres ofertas dirigidas a um ser inteligente, no interesse da expansão da vida universal. Para quem não sabia por que se estuda ciências na escola, ao tempo de criança, fica aí o meu recado, a minha descoberta, e a minha falência.”
“Eu havia ajudado a explorar, destruir, sequestrar, um dos maiores berçários da vida na Terra, um dos grandes berços da vida universal, a Amazônia.”
“A panspermia cósmica é mais que uma hipótese, e muito maior do que Anaxágoras, ou Helmholtz, pudessem pensar. Acredite, quando me dei conta da real grandeza da vida, o remorso corroeu meu espírito, tal e qual ácido sulfúrico sobre a carne.”
Na manhã seguinte, diante de um grande lago, pensando a respeito de tudo o que havia escutado, foi interpelado por uma voz que ele conhecia.
— Você já está pronto? Vamos, há muito o que fazer.
Era Maria Bernadete. Ficou sem fala, queria desaparecer dali. Foi ela mesma que interpelou, mais uma vez.
— Não se amole, fique tranquilo. Há um grupo de socorristas que vai à Terra em missão. É preciso proteger os animais da exploração que estão sofrendo. Você adquiriu muito conhecimento sobre animais. E completou.
— Agora é a oportunidade de servir a Deus, utilizando tudo o que aprendeu, não para destruir, mas para proteger. Percebe como o seu conhecimento é importante?
Lawrence, mais atônito que consciente, balbuciou.
— Acho que sim...
— Então vamos embora. A propósito, se é que importa saber, em outros tempos nós formamos um casal. Você era um comerciante belga abastado, e um caçador, e eu tomava conta da nossa casa e das crianças. Era genioso, e adepto de decisões impulsivas. Parou por um momento.
— Locupletou-se com a ideia de ir para a África, o paraíso dos caçadores, e foi. Nunca mais o vimos, ou soubemos de você. Seus filhos cresceram sem saber o que aconteceu com o pai. Foi viver suas aventuras nas savanas, e desapareceu.
— Eu não me lembro..., sussurrava Lawrence.
— Agora já não importa mais. Lamentável mesmo, foi o resultado do nosso reencontro. Dizia Bernadete, olhando bem nos seus olhos. Virou-se e se pôs a caminhar.
“Eu era um verme. Grudento como um verme, agia como um verme. A minha redenção, caminhava e se afastava adiante, na forma feminina de uma mestiça. Por estúpido que fosse, sabia que era agora, ou nunca.”
“Levantei a cabeça, abandonando por instantes, minha condição de ser pequeno e miserável, e apressei o passo para acompanhá-la. Preferi a Redenção”.
FIM