Foto: Wikipédia
Por: Antonio Mata
Corria muito, o máximo que as suas pernas pudessem oferecer. Desesperado, embrenhou-se cada vez mais na mata.
Viu-se com a água misturada à vegetação, notou que só pisava em raízes e plantas. Principiou um encharcamento mais profundo; já acima dos joelhos.
Por entre as árvores e intensa folhagem podia ver o colchão de raízes com a água já chegando à sua cintura. Não pensava em parar, não queria assumir este risco estúpido e prosseguiu, empurrado pela adrenalina e pelo desespero. Continuou se embrenhando cada vez mais, mata adentro.
Até que as águas começaram a baixar, anunciando que a travessia se completara. Estava perdido; aproveitando o solo de terra firme, mais uma vez, prosseguiu buscando avançar sempre.
Se retornasse ao pântano, saberia que andou o tempo todo em círculos. Perdera a noção do tempo e só pensava em avançar adiante. Foram horas? Foram dias? Já não sabia mais dizer.
A cabeça lhe doía, as costas doíam, as pernas, os pés doíam. Entre tombos e retomadas, já esgotado sentiu que a mata fechada se tornara repentinamente mais aberta.
Até que finalmente se deu de frente com um lavrado extenso, verdejante. Havia mais luz, ainda que o céu estivesse por demais nublado.
Viu flores no campo, pássaros em revoada. Ao longe, delineou algo que encheu seus olhos de surpresa e espanto. Repentinamente seu peito se tomou de júbilo e alegria.
Seus olhos avistavam ao longe uma cidade, os seus contornos, as suas construções, as grandes formas piramidais, o casario. Tudo estava lá, bem na sua frente.
Nas proximidades da cidade, lavouras diversas organizadas geometricamente, que de longe não lhe era possível definir. Mais próximo, enxergou milharais, extensos roçados de mandioca, bananal, entre outros.
Reuniu suas forças e cruzou, não sem dificuldade, uma estrada extensa, até se aproximar do aglomerado humano e poder ver as pessoas de perto. Estava diante de uma cidade real. Em sua mente era só encantamento.
Precisava ver, conhecer, ouvir, anotar tudo, centenas de vezes se preciso fosse. Em sua alma de explorador, era o triunfo, o sucesso e a fama. Havia encontrado, sem dúvida, a cidade perdida da Amazônia, pensava.
A pele morena dos habitantes, os trajes simples parecendo feitos de fios locais, de algodão e lã. Tudo com muita cor e arranjos geométricos.
Os adornos eram feitos com sementes, penas, fibras. Coisas obtidas na região. Alcançou o que parecia ser uma avenida de acesso, calçada com tijolos de barro.
Ficou abismado com o trânsito de pessoas e animais. A mão direita avançava, adentrava a cidade, enquanto quem estivesse na mão esquerda, deixava a cidade.
Não havia muros ou paliçadas, e sim um portal ao final da estrada e início da avenida, marcando o que poderia se chamar de perímetro urbano, onde a cidade se adensava.
O portal era um arco feito com blocos de rocha. Logo do lado direito se localizava um grande mercado. Tanto na avenida como no mercado, o movimento era grande.
À esquerda da grande avenida, viam-se oficinas misturadas ao casario, caracterizando como um local de moradia, mas também de trabalho, tal e qual pequenas manufaturas.
Já tinha visto aquilo antes, a loja ou oficina na frente, com a moradia daqueles que ali trabalhavam, normalmente ao fundo.
Os prédios pequenos, de um ou dois pavimentos, eram de adobe com estruturas em madeira. Era tudo bem convencional, porém com uma sutil diferença.
De um lado, as cores e os odores. Nada de fachadas tristes e repetitivas. As paredes de adobe eram muito bem pintadas em cores vibrantes e tons pastéis em harmonia.
O casario ornado com plantas e flores, arranjos diversos, além de peças talhadas em madeira, pintadas ou não, e aplicadas na decoração das moradias. A ideia de equilíbrio era presente.
Do outro lado, não havia o habitual sentido de tumulto, com pessoas se esbarrando e o cheiro, muitas vezes desagradável que as aglomerações humanas e as concentrações de oficinas costumam apresentar.
Percorrendo as ruelas próximas, notou uma coisa. Não havia carcaças de animais expostas; ninguém oferecia carne. Também não viu animais abandonados nas ruas. Não viu acúmulo de lixo, e as ruas tinham um aspecto limpo; a despeito do movimento urbano do lugar. Notou fácil uma quase ausência de artefatos de metalurgia, não fosse por uns poucos adornos em ouro ou prata. Os instrumentos de corte eram feitos em obsidiana.
Floriano estava extasiado com a sua descoberta. Sua mente buscava focalizar tudo, registrar tudo. Queria desenhar, pintar aquelas cenas, antes que os detalhes desaparecessem de sua cabeça como que em sonho.
Percebeu também que era visto, não como um forasteiro intrujão, mas como um visitante de fato. Havia da parte dos habitantes, um discreto ar de curiosidade. Sem encontrar nenhuma hostilidade.
Percorrendo as ruas do lugar encontrou uma mulher com a qual buscou travar uma conversa, ao notar que a mesma compreendia tudo o que ele dizia.
Seu nome era Tamaya, e ao compreender as preocupações de Floriano, pediu que ele a acompanhasse até alguém que pudesse ajudá-lo mais adequadamente.
Floriano acompanhado da mulher, adentrou uma habitação simples, com jardineiras ao seu redor e mobiliário rústico em madeira. Não havia nada que indicasse o lugar como sendo algo de especial, tudo muito simples.
Foi apresentado a um homem de aspecto, já bem idoso, ainda que seu corpo se apresentasse sadio, como se não houvesse o desgaste natural dos anos passados. Era Wayra, o seu interlocutor, e que se dispunha a ajudá-lo.
— Pois bem Floriano, o que o trás até nós? Espero poder satisfazer sua curiosidade e tirar suas dúvidas. Dizia Wayra, iniciando a conversa.
— Estou pasmo Wayra, com tudo o que vejo, com a organização, a atitude das pessoas, as construções, tudo parece ser mais belo e possuir mais vida. Como se chama este lugar.
— Você está na cidade de Killary meu amigo, “a Luz do Luar”. Aqui superamos muitos dos conflitos que você está acostumado a observar em outras paragens. Aqui vivemos em paz.
— Wayra, fico muito contente com suas palavras. Penso que Killary poderia se tornar um exemplo para os demais povos, na sua forma de viver, mais fraternal e equilibrada.
— Floriano, precisa ter em mente de que haviam cidades e povoados índios, que eram do conhecimento dos demais e que apenas queriam viver em paz. Não é mesmo? Consegue lembrar o que aconteceu com elas?
Floriano sabia que o velho Wayra estava se referindo à Conquista da América Espanhola, um dos episódios mais sangrentos da história dos antigos povos pré-colombianos.
— Consigo sim Wayra. Foram destruídas e seu povo escravizado. Tem razão, foi assim que aconteceu.
O explorador pensava em uma forma de apresentar aquele recanto de paz e concórdia ao resto do mundo, mas não via como. Wayra tinha razão, poderiam simplesmente invadi-lo, desprezar sua cultura, sua gente e dominá-lo.
— Além disso Floriano, há outra coisa que você parece não ter compreendido ainda.
— Que outra coisa Wayra? Diga, do que se trata?
O velho anfitrião se levantou e aproximou-se de Floriano, que estava sentado logo à sua frente. Tocou-lhe a fronte com a mão direita. Então Floriano viu-se reconduzido aos sertões da América do Sul, na companhia de sua comitiva de exploradores.
Com passo firme e decidido, o homem prosseguia se embrenhando cada vez mais fundo na mata. Qualquer sinal de civilização já havia ficado há muito, no tempo e no espaço.
Conduzia pequeno grupamento o qual comandava em estilo militar. Cabo Antenor, eleito seu ordenança, era um ex-miliciano beberrão, expulso da milícia provincial por sucessivos casos de embriaguez em serviço.
O soldado Hernández era tísico. Havia ingressado na milícia por interveniência de seu pai, que era amigo do comandante da tropa policial. Foi dispensado do serviço oito meses depois. Por ser baixo, muito magro e de pouco vigor físico; teve dificuldades com o peso do mosquetão e com o disparo da arma.
Diogo e Santiago eram dois mulatos de meia idade, sem nenhuma experiência de sobrevivência nas matas, acostumados no campo e cedidos por um fazendeiro enfeitiçado pelas ideias de Floriano.
Havia também um índio desenraizado, de nome Manoel, que na juventude percorrera as matas da região. Ainda que sofresse de catarata e não saísse do âmbito dos povoados há mais de vinte anos, onde ajudava com o gado, era o que mais perto se conseguiu de um mateiro, um guia.
Havia orientações gerais que sempre auxiliaram no deslocamento de expedições pelos sertões sul-americanos. Por exemplo, para adentrar os grandes sertões: “vão para o norte”.
De igual modo para se achar o caminho de casa: “vão para o sul”. Dependendo de onde a expedição se encontre, basta inverter a orientação que vai dar no mesmo. Afinal, todos os caminhos conduziriam ao oceano, restando apenas saber qual. Floriano nunca tinha ouvido falar da grande cordilheira Andina.
Floriano, há pelo menos dez anos, vinha amadurecendo a ideia de encontrar a chamada cidade perdida da América do Sul. Ouvia atentamente os relatos dos viajantes da época.
Estes colhiam relatos surpreendentes quanto ao tamanho, a pujança e riqueza destas verdadeiras metrópoles indígenas encravadas nos lugares mais impensáveis.
A julgar pelos relatos, descrições em livros e correspondências, além de lendas e histórias contidas na cultura oral dos índios, tinha muitas razões para acreditar que a descoberta de um grande sítio arqueológico, seria mera questão de tempo.
Foi na terceira tentativa, e justamente no terceiro ano consecutivo na busca de apoio para sua empreitada que conseguiu reunir as condições materiais mínimas, assim supunha, para a realização do seu intento. Uma expedição científica e de exploração.
Não conhecia nada que se pudesse chamar de ciência, particularmente. Lia muito sobre aventuras e explorações. Ainda que tenha sido um guarda-livros muito experiente e dedicado. Mas o sonho de desbravar os sertões, nunca o abandonou.
A tropa de exploração seguiria com o equipamento no lombo de burros, enquanto fosse viável de se fazê-lo. Quando não fosse mais possível, prosseguiriam à pé sertão adentro, conduzindo estritamente o necessário.
Os dias se transformaram em semanas, que se transformaram em meses rapidamente. A expedição ainda não havia localizado nada mais significativo do que pedaços de cerâmica de acampamentos indígenas.
Cruzavam uma campina, podendo observar mais facilmente os arredores. Avançavam com a cobertura de vegetação herbácea a um metro de altura. Em dado momento um grupo de índios ocultos na campina se levantou diante do grupo.
À frente de sua tropa Floriano deparou-se com pelo menos uma centena de índios, armados com arcos e flechas. Rapidamente compreendeu a gravidade da situação e a necessidade de se manter a calma.
— Prestem atenção! Tenham calma, vamos buscar nos entender com eles. Não estamos atrás de confusão.
O grupo, estacionado em campo aberto, com uma fileira de índios à sua frente. Ordenar uma fuga seria suicídio, ainda que conseguissem deixar a campina e retornar à floresta.
Pelo lado direito, a floresta estava mais próxima. Haveria muitas baixas; isto se não sucumbisse toda a tropa de Floriano. O comandante da expedição, então mostra sua espingarda, se abaixa e deixa sua arma no chão, em sinal de paz.
Avisa aos demais para que façam o mesmo. Tinham armas de fogo ele, o soldado Hernández, o cabo Antenor e os dois mulatos. Floriano não viu, mas Antenor e Hernández não atenderam ao comando e não depuseram suas armas.
Ao verificarem isto, e por ser da parte dos dois milicianos presentes; os dois mulatos entenderam que não deveriam atender a seu comandante, e fizeram o mesmo.
Ao final Floriano depunha armas sozinho. A sequência de eventos foi tão rápida quanto desastrosa.
Nesse ínterim, três índios se adiantaram quatro ou cinco passos, na direção do grupo. Quando Floriano virou-se para trás e os viu apontando as armas, gritou:
— Baixem as armas, baixem as armas! Não atirem!
Gritava de volta Hernández:
— Estão vindo para cá!
— Não estão, não! Gritava novamente Floriano.
— Tá vindo sim, tá vindo sim! Gritava o cabo Antenor.
Foi Hernández que, chocado, disparou a única carga de sua espingarda de carregar pela boca. O estrondo precipitou os fatos, com Antenor e os dois mulatos disparando e esvaziando suas armas.
Um, dois, três, quatro disparos em dois segundos. Dos três índios que se adiantaram, um foi atingido e caiu.
Toda a tropa viu Floriano virar à direita e correr na direção da mata. Todos então fizeram o mesmo. Ou pelo menos, tentaram fazer. Todos debaixo de uma chuva de flechas com pontas de madeira endurecidas no braseiro.
Os corpos dos exploradores, sem nenhuma proteção, tinham carne macia para se perfurar com facilidade. Alcançar a mata tornou-se uma ilusão.
Manoel, o índio guia, ainda viu Floriano passar correndo ao seu lado e não pensou duas vezes. Saiu em desabalada correria, atrás de seu líder. Correndo logo atrás, se viu sem o querer, transformado em uma espécie de escudo vivo que protegia seu comandante. Foi assim que acabou recebendo meia dúzia de petardos nas costas.
Só uma flecha, no meio daquela confusão escapou de Manoel, transformado em escudo, e conseguiu alcançar o comandante da expedição. Perfurou-lhe as costas e atingiu o coração do líder explorador.
O comandante Floriano morreu logo em seguida. A norte do quê? Ao sul de onde? Agora já não importa mais. Os índios sequer sabiam o que isto queria dizer.
Naquele encontro no meio da campina, ninguém sobreviveu para contar a história. A expedição de Floriano se perdeu no espaço das matas e no tempo das ilusões. Finalmente, acabou sendo esquecida, junto com a busca da cidade perdida.