Imagem: Isack Ryuji - Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
Cedo nem pensar, pois não era mais. Não às 10:35h da manhã. Nem por isso se fez diferente de outros dias. De mãos entrelaçadas sobre a barriga, os olhos fechados e a cabeça tombada para o lado esquerdo.
Todo mundo já sabia. Doralice estava cochilando de novo. Era episódico e rápido, não mais que quatro ou cinco minutos. Só que três a quatro vezes ao dia. Mesmo assim, ainda que não se importasse, o apelido colou: Maria do cochilo.
— Lauro não vem mais, só mais tarde. Bateu a bicicleta com tanta força que quebrou a roda.
— Sizenando chega hoje à tarde, no ônibus do meio-dia, que vem de João Albuquerque.
— O caminhão baú, com a entrega de mercadoria, está parado desde às nove horas. Lá perto da entrada da cidade.
— José, de Heloísa, morreu, ainda a pouco. Vão avisar a família. Também tem que avisar a Heloísa. Está na casa do Furtado, desde ontem. Ainda nem acordou.
Indiscrições à parte, enquanto as viagens de Doralice se tornavam conhecidas, foi quase inevitável que as pessoas se dividissem em dois grandes grupos.
De um lado, aqueles que viam uma finalidade prática nas falas de Doralice. Já que era facílimo constatar o que ela dizia. Assim, Doralice não mentia. Apenas expunha os fatos do dia, adiantando as coisas. Às vezes até demais.
Na outra extremidade, ficavam aqueles que viam em Doralice uma enxerida, metida e mequetrefe. Uma terceira filiação, dizia que ela teria pacto com o capeta, de tal modo a perturbar os demais e lhes criar situações embaraçosas.
Esse negócio de avisar os demais que a bicicleta quebrou, que o caminhão enguiçou, seria apenas uma cortina de fumaça para encobrir suas reais intenções.
Para estes, era assim. A feiticeira dedurou Heloísa, e ainda teve quem achasse graça. Entretanto, quando a enxerida avisou que Joel, o dentista, estava pescando com a Fátima, mulher do Heleno, da farmácia, enquanto seu filho nascia, aí muita gente não gostou e a graça toda acabou. Para o João; Fátima; Heleno e para sua mulher na maternidade, só restava brincar de avestruz.
Doralice estava deixando a cidade nua.
— Não sou eu que quero. Basta que eu feche os olhos e acontece. Aparece tudo, como se eu estivesse lá no lugar. Fechei os olhos um instante e apareceu o caminhão do seu Filomeno, enguiçado na entrada da cidade. O que fui fazer lá, nem eu sei. Só sei que fui até lá. Aí vão me chamar de enxerida, de mequetrefe, só que eu não quis ver nada disso.
— E agora mãe, o que vamos fazer? Doralice está dizendo que não é ela. — Indagava Dulce de sua mãe, quanto a situação de sua irmã, Maria Doralice.
Dona Gioconda pensou mais um pouco. Mesmo que a resposta, para estas coisas sem explicações nem aqui, nem no além, já fosse até manjada.
— Vamos falar com o vigário.
No dia e hora combinados, dona Gioconda e Doralice estavam diante do vigário paroquial Samuel. Expõem, então, toda situação e a falta de soluções para o problema.
O vigário fica pensativo por um instante, e então sentencia.
— Cem Pai-Nosso; cem Ave Maria e Cem Salve Rainha.
— Cem; cem e cem, são trezentos. — Dizia Doralice.
— Cem Pai-Nosso; cem Ave Maria e cem Salve Rainha. Depois volte para sabermos o resultado.
As duas mulheres agradeceram a atenção e se afastaram.
— Isso você faz num instante. Dizia sua mãe.
— Vai servir?
— Não se preocupe, você vai ver.
No mesmo dia, Doralice cumpriu a penitência sugerida pelo religioso. Pouco antes do anoitecer, sentada no sofá da sala, teve um de seus costumeiros cochilos.
Os tons são de inegável realidade. Doralice se fazia presente enxergando e ouvindo tudo.
Viu-se em um estabelecimento comercial, onde um funcionário adulterava as datas dos produtos vencidos, passando álcool e gravando nova data. Cereais e alimentos congelados eram assim tratados como novos. O estabelecimento era de propriedade do senhor Januário, conhecido na cidade há muitos anos.
Em outra oportunidade, encontrou o próprio funcionário da empresa fornecedora de energia elétrica, adulterando o funcionamento de um medidor de energia, serviço pelo qual seria pago, por atrasar a contagem de kilowatts.
Acordou repentinamente e a seção de delações se iniciou.
— O Januário está mexendo na validade do pacote de arroz e do iogurte também. O Laurentino está fazendo gambiarra no relógio de luz e pegando dinheiro para fazer o serviço.
— Ah, meu Deus do céu! Isso ainda vai terminar em confusão!
— Que confusão, nada mãe. Se estão me mostrando, é porque é preciso falar para as pessoas. Se não fosse assim, para que fazer esse tipo de coisa? Para o que mais serve?
— Será sempre a sua palavra contra a de um monte de gente. Você já notou? Como você irá provar?
— Ora, mãe, as provas estão espalhadas por aí. Quem quiser que trate de investigar.
Como aquela conversa não iria dar em nada, mãe e filha deixaram de lado e foram cuidar de outras preocupações. À noite, já bem tarde, Doralice recebeu uma visita inesperada, sem que tivesse que deixar seu quarto.
— Doralice, preciso lhe dizer algo muito importante.
Doralice permaneceu na cama, porém prestava atenção.
— Daqui em diante, abandone as situações que você insiste em acompanhar, envolvendo as pessoas da cidade. Só servem para fomentar fofocas e os mexericos que acabam sem nenhum propósito mais útil. Cuide de você e utilize sua capacidade de deixar o corpo para ajudar aqueles que perderam seus entes queridos e que precisam de notícias.
Doralice ouvia com atenção.
— Faça visitações, não no mundo material, mas do lado espiritual e ao retornar ofereça esclarecimentos sobre parentes e amigos que já se foram, quando se fizerem necessários Faça isso no intuito de confortar, e não de confrontar.
O visitante prosseguiu.
— Aqueles que por ventura cometam seus erros estão submetidos às Leis Eternas de Deus, tanto quanto nós. Portanto, terão de responder por seus erros. Sejam quais forem. Se não for na vida física, será do outro lado da vida.
Acenando com a cabeça, Doralice mostrava compreender.
— Agora retorne a dormir. Quando acordar, terá impressões claras desse nosso encontro. As questões principais você irá lembrar. Não esqueça, mediunidade é coisa santa e com santidade precisa ser exercida. Prossiga e faça um bom trabalho.