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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Da cor do sangue

Por: Antonio Mata.

Junto à praia, sentou-se no areal. Uma dúzia de gaivotas flutuavam ao vento da manhã, à meia distância, sem sair do lugar. Observava as três caravelas e as três naus se afastando. Logo iriam desaparecer na direção do sol nascente. O ano era 1557.

Todos os barcos abarrotados com toras de brasil. As toras distribuídas em volume e cortadas geometricamente para embarcar o máximo possível. Nessa disposição, uma caravela embarcava 350 quintas (algo como 20 toneladas). Já a nau, mais de 560 quintas. Se todas as embarcações chegassem a Lisboa, estaria rico. Era só voltar e começar tudo mais uma vez. 

A última vela desapareceu. Só não levou consigo a insatisfação e as preocupações de Alvar. O trabalho nas terras do além-mar era exigente e perigoso. Enquanto se pudesse contar com índios amistosos, era uma coisa. Entretanto, havia os naufrágios. A aventura na capitania se dava entre altos e baixos.

Nas prisões de Portugal, gente miserável era posta a ralar pedaços de madeira vermelha. O pó grosso de serragem que surgia após a ralação era posto em um grande caldeirão com água fervente. Após a fervura o que sobrava era um extrato avermelhado de grande valor comercial.

Não saía da cabeça de Alvar Gouveia que aquilo estaria sendo feito de modo errado. Contratar navios e os carregar com toras de brasil era uma operação custosa.

Já em Lisboa, uma vez extraído o concentrado vermelho e valioso, o resto virava apenas lixo. A chapa de aglomerado, feita de serragem, cera e resina, somente surgiria no longínquo século XX.

— Ora, esse trabalho pode ser reduzido em seus custos e ampliado em seu lucro. Como não conseguem enxergar isso? Pois chegou a hora de fazê-lo. — Alvar pensava e cofiava a barba, enquanto dirigia a si a solução de um problema que poderia significar mais riqueza.

Decidiu trazer da Europa maiores quantidades de bugigangas para negociar com os nativos daquela terra. Já que apreciavam tanto toda sorte de bobagens e miudezas que pudessem lhes oferecer.

Encomendou também peças em ferro fundido de um palmo de largura e três de comprimento. Comumente utilizadas para fazer outros objetos em ferro. Porém, a ideia era uma só. Dobrar e puncionar as chapas, criando uma superfície com centenas de saliências pontiagudas. Uma vez fixadas em placas de madeira com pregos, surgiriam dezenas de raladores.

Reuniu suas peças e negociou com os índios o início das atividades. A ralação de brasil seria feita pelas mulheres nativas, em troca de presentes. Já que os homens derrubavam costumeiramente as árvores e cortavam as toras, recebendo em troca machados de ferro.

A artimanha deu certo mais uma vez. Não só as mulheres vieram, como trouxeram seus filhos. Logo havia pessoas ralando brasil de dia, de tarde e de noite sob a luz de tochas. Não se podia perder tempo. Preparou-se a fervura em água, a retirada da serragem que era então espremida, completando assim, a produção do extrato.

Quando o comboio vindo de Portugal aportasse, tudo tinha de estar pronto. Providenciou ainda a vinda de tanoeiros portugueses. Era preciso acomodar o extrato de brasil em grandes tonéis para a viagem até a Europa.

— Não é preciso escravizar ninguém. Os pobres diabos trazem suas mulheres e crianças por conta própria. Vai ser mais fácil do que imaginava no início — Dizia Alvar.

Deixou de embarcar o equivalente a um comboio de seis navios, reduzindo e dispensando o uso de tantas embarcações. Ao invés disso, ralou a madeira toda e embarcou metade da produção do extrato vermelho em uma caravela e metade em outra. Apenas como medida de segurança, ante a possibilidade de naufrágios.

Dessa forma, deixava de contratar quatro navios, sem nada perder. Armar e equipar um navio para cruzar o mar oceano custava uma pequena fortuna. Deixou esse custo em homens, navios e armas a um terço do habitual.

A rota das Índias Orientais, contornando a África, consumia dezenas de navios e milhares de homens nos naufrágios e nos embates navais e terrestres contra os turcos e indianos no oceano Índico. A medida economizava homens e navios.

Seria muito bem-vinda pelas autoridades do reino. Este, um reino pequeno com grandes dificuldades para manter o ritmo acelerado de sua própria expansão e enriquecimento. Já existiam vilas em processo de despovoamento, o que era crítico.

A primeira remessa foi muito bem-vinda. Rapidamente revenderam a carga para os comerciantes no porto de Amsterdã pelo triplo do valor. De lá seria repassada para as guildas de tecelões para o fabrico e tingimento de tecidos do resto da Europa pelo sêxtuplo do valor.

Contudo, havia quem não gostasse. Certos membros da nobreza que obtinham lucros agenciando o trabalho dos sentenciados em Lisboa, junto às autoridades do reino. Fazendo assim o seu quinhão. Sentiram-se excluídos de um negócio fácil e rentável. Assim pensavam.

Alvar Gouveia se via mais que satisfeito com suas remessas de extrato.

O enriquecimento não caíra do céu, mas fora rápido. Afinal, explorar índios e sem ter que escravizá-los era algo ótimo. Entretanto, a mente do explorador e comerciante estava repleta de ideias. Algumas até perigosas e funestas.

— Já sou o homem mais rico da capitania. Mais alguns anos e bem que merecia voltar para Portugal para assumir um papel de destaque no reino. Quem sabe adquirir um castelo. Ou mesmo, quem sabe, construir um. — Alvar sonhava com um Portugal medieval que já estava partindo. Fazia parte do novo Portugal, mas sonhava com o antigo.

Em meio às suas ideias, foi a realidade que lhe trouxe de volta um problema, mas também um fato novo. Alvar achava muito abusivo o pagamento da quinta. O imposto de 20% exigido pelas autoridades de El Rey sobre toda a produção.

Os fantasmas de Alvar haviam cruzado o mar oceano com ele.

Enfim, o fato novo. Certa vez, observando um grupo de índios, chamou sua atenção a tinta vermelha com a qual faziam linhas e desenhos sobre o corpo. Acreditava ser extrato de brasil. Qual não foi sua surpresa. Aquele corante utilizado no corpo era extraído da semente de uma certa planta conhecida como urucu.

“Existe então outro tipo de corante. E é extraído de plantas pequenas que existem aos milhares”. A cabeça de Alvar não cessava de pensar a respeito.

Descobriu que era trabalho das mulheres. Encontrar as plantas, colher os frutos secos e deles retirar as sementes. Pilar demoradamente, até as transformar em pó. Depois misturar com resina vegetal. Descobriu que também colocavam aquilo na comida por conta de seu cheiro forte e do sabor que conferia aos alimentos. Essa parte não lhe interessou.

Suas preocupações estavam em outro nível.

Descobrira que quando precisavam guardar uma certa quantidade de urucu, misturando resina, faziam uma bola de urucu que era então envolvida por folhas e depois guardada em local seco e à sombra.

Foi isso que chamou sua atenção. Ainda que não tivesse nada a ver com as sementes de urucu ou as pelotas para guardar. O ponto central era a ideia de guardar para depois.

Quando iniciou a remessa do extrato de brasil, o oficial de rendas lhe questionou quanto ao tipo de madeira utilizada para a confecção daqueles barris. Queria saber se eram feitos de brasil e se iriam voltar. Na realidade já sabia a resposta, pois era este o seu ofício. Fiscalizar tudo o que fosse embarcado para o reino. O único destino possível.

Assim sendo, observou que os barris feitos em brasil não retornavam. Passando a somar o seu peso para efeito de pagamento da quinta de El Rey. O imposto e motivo das amolações de Alvar. A ideia de guardar para depois foi a sua resposta.

O oficial pesava o tonel vazio e depois com a carga líquida. Assim podia calcular a quinta de cada um. O imposto sobre o tonel seco era pequeno. Alvar viu naquilo, mais exatamente uma implicância e quis dar o troco.

Já sabendo dos procedimentos do oficial, idealizou um fundo falso para seus barris onde colocava serragem de brasil prensada. Depois cobria tudo com uma tampa mais fina de brasil. Logicamente, o barril para pesagem era o barril seco e sem o fundo falso.

Agindo dessa forma, conseguiu burlar a conferência de carga do oficial de rendas. Enviava uma quantidade menor de extrato, onde incidia o imposto principal, portanto pagando menos na pesagem.

A redução do peso do extrato aliada a serragem no fundo falso, que seria vendida quando chegasse em Portugal, compensavam o imposto cobrado. Alvar Gouveia havia se livrado da quinta de El Rey, prosseguindo com seus negócios.

Dia de movimento no porto da capitania.

A preciosa carga do ambicioso Alvar estava sendo transportada para o local de embarque. De súbito, um dos barris se desprendeu e rolou alguns metros, quebrando uma de suas peças laterais, entornando o extrato e expondo o fundo falso cheio de serragem prensada. Diante de todos, inclusive o oficial da coroa, a aventura chegara ao fim.

Orgulhoso e intransigente, não cultivara amigos na capitania. Os demais preferiram tirá-lo do caminho. Preso e posto a ferros, foi encaminhado a Lisboa, onde nobres prejudicados em seus negócios trataram de enfurecer as autoridades da corte contra Alvar.

Esse esquema de preparação do extrato na própria capitania estava se mostrando inseguro demais para os interesses da coroa, diziam. Enquanto Alvar era conduzido a masmorra, um grupo de conselheiros decidiu encaminhar a El Rey um pedido de extinção da produção de extrato de brasil fora de Portugal.

O pedido acabou sendo aceito. O explorador das novas terras havia enriquecido muito rápido. Mas, sua queda foi meteórica. Viu tomado todos os seus bens e seu castelo se transformou em pó.

Da masmorra, em sua mente só havia pó. Era pó de serragem, pó de urucu e agora, até pó de um castelo que nunca existiu. Por traição a coroa, Alvar Gouveia foi sentenciado a morte por enforcamento. Seu corpo na ponta de uma corda acabou exposto por todo o dia na entrada do rio Tejo.

A inteligência, a coragem, a esperança e a fé constroem o homem, a ganância simplesmente o destrói. 

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