Por: Antonio Mata
Esquadrinhou as terras logo abaixo, com uma segurança de rivalizar com os “pixels” na tela de um computador. Buscava movimentos mínimos; por menores que fossem.
Ao se inclinar e descer, provocou o som audível mais presente naquele momento. Era aquele do ar sendo cortado com facilidade e leveza; menos que o rumor de uma pipa.
Ao verificar que não era nada, não se incomodou. Retornou à térmica mais próxima e planou até 2500 metros, aproximadamente. A altura de vigília, nem muito alto, nem tão pouco abaixo.
O suficiente para exercitar a observação da paisagem lá embaixo, de um ponto elevado. Inicia então um deslocamento circular, que irá prosseguir; até cobrir um raio de 10 quilômetros.
Trata-se de um padrão repetido instintivamente. Estabelecer a área de cobertura; o campo de caçada. Nem é extenso demais, nem restrito em excesso. Todos aprendem a caçar assim e todos fazem igual.
Comportamento fixado pela repetição, prosseguiu no seu circuito habitual, já realizado tantas, e quantas vezes, assegurava padrões. Repetidos o suficiente para satisfazer a necessidade de sobreviver.
Este é o cerne de toda a questão. A sobrevivência a partir do mínimo necessário para a manutenção da vida.
Subiu à faixa dos 2500 metros mais uma vez. Cumpria seu padrão de busca, quando detectou um ser saltitante sobre a terra. Agora, é aproar e descer na direção do animal em movimento. Preparar a surpresa de forma rápida, sutil e silenciosa.
Reduziu a menos de cem metros do chão, se posicionando atrás do roedor, para prender e guindá-lo mais facilmente com as garras; capazes de levantar mais de três quilos.
Agora prossegue a menos de trinta metros do alvo, bastará fixar bem as garras e tudo estará consumado. A repetição instintiva, quase maquinal, demonstra todo o seu valor. Apenas o necessário.
Os olhos fixados na presa não atentaram para o objeto pontiagudo que se aproximava rapidamente, quase sem produzir ruído. Só um ligeiro e pouco pronunciado assobio.
Aleatório e artificial, o petardo encontra o seu pescoço; perfurando a garganta de uma extremidade a outra. Perde força e fica alojado no pescoço do gavião.
Precisa voltar, precisa subir. A dor é enorme; a flecha provoca um arrasto brutal, como a querer lhe arrancar o pescoço.
O objeto cravado na carne quase o paralisa, qualquer movimento deixa sentir dolorosamente a sua presença. Foi aos poucos que passou a sentir o seu peso. Chega a 100 metros.
Deve apenas planar? É para prosseguir? Até quando? Há como retirá-lo? Não há registro. Nem existem ações repetidas assim, nem no voo, nem na vida.
A respiração se torna mais pesada, o petardo agora parece ter os três quilos que supunha poder carregar. Precisa e rápido de um poleiro seguro e bem elevado.
Localizou a seguir aquilo que queria. Aproximou-se, abriu as asas, suportou a dor, o desconforto e o desequilíbrio que aquele troço sem registro provocava.
Ficou parado de bico aberto, olhando ao redor. Com o uso das garras não é possível retirar a flecha. A dor provoca um certo torpor; que não consegue superar.
O sangue escorre lentamente, mas tanto para os pulmões como na direção do peito. Querer voar daquele modo é torcer por um acidente maior e mais complicado.
Apenas aguarda, como quem acredita que já fez o que tinha que ser feito. O torpor aumenta, até quase perder os sentidos. Cambaleia, ora para a esquerda, ora para a direita.
Finalmente deixa o corpo tombar dos 42 metros até o solo. O guardião daquelas terras se despede. Não mais poderá deter a proliferação de roedores, eliminando o excesso de animais e sustentando a cadeia alimentar.
Foi uma brincadeira, bem menos que uma caçada. Não se caça gavião dessa forma. Foi só uma brincadeira, aquilo que eliminou a floresta de sua majestosa e fiel presença.
Fez cessar seus sobrevoos graciosos e silenciosos, entrecortados por um piado ocasional; o sinal de sua presença.
Asas a cortar os ares, asas a inspirar os homens de que este era o caminho para se alcançar os céus. Não há mais graça, não há mais leveza. É o fim.