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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Deolinda

Por: Antonio Mata 
 
Da lida rude na roça guardou a pele morena e curtida que o chapéu de aba longa não conseguia esconder do sol. Refletido de terra, de areia, de milho colhido, feijão debulhado, macaxeira no saco carregado nas costas. Muito sol para se pegar, antes da sombra poder chegar.
 
Olhos miúdos e escuros, sem semblante carregado ou tristonho. Vivia como Deus assim o quis e apesar de tudo, era capaz de sorrir. Sendo ainda pouco, Deolinda também era parteira. Tendo visto nascer mais da metade das crianças do lugar.
 
Incluiria nessa lista, Raimundinho, então aos dez anos, pois sempre haveria de aparecer mais de um. Raimundinho, Mundinho e Mundico, são apenas variantes para separar crianças que cresceram juntas e com o mesmo nome. Tudo expressão de genuína criatividade familiar. 
 
Ah, o segundo nome era Nonato. Todos eles, é claro.
Era o mais novo e o mais apegado com a avó, lhe acompanhando nas idas ao roçado. Fosse ajudando a carregar o enxadeco de arrancar a macaxeira, fosse ajudando a carregar algumas raízes.
 
Foi numa dessas andanças, aquela que Deolinda melhor guardou na memória. Até pelo significado profundo, quanto fantástico e, ao mesmo tempo, tão singelo.
 
Retornavam para casa, já quase dez horas. Quando Raimundinho, de repente, se deu conta de ter esquecido seu boné no roçado, retornou uns 50 metros, para buscar.
 
Pegou o boné, bateu a poeira, pôs na cabeça e tratou de voltar até sua avó. Não se deu a menor conta do que se passava. Mas, já não estava mais sozinho.
 
Caminhava na direção de sua avó, quando Deolinda, ao firmar a vista, viu se preparando para saltar e correr atrás de Raimundinho, o grande e perigoso felino das matas.
 
Gritou para que seu neto corresse na sua direção. O que poderia também, significar a morte do menino.
Deveria então ficar em silêncio e ver seu neto ser capturado e levado para o alto de uma árvore para ser devorado? Quantas pessoas saberiam o que fazer?
 
Apenas fez o que o seu coração e o desespero da situação lhe permitiram fazer. Então gritou.
 
— Corre Raimundinho, corre!!
 
— Meu Deus! É meu neto, meu Deus!!
 
Raimundinho desabalou a correr e não via bicho algum, pois nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Correu feito um serelepe na direção de Deolinda. Como qualquer criança assustada, ante a atitude da sua avó faria.
 
O que se deu diante dos olhos de Deolinda, extrapolou a melhor das histórias de pescador. História que caçador não saberia inventar. Algo para nunca mais se esquecer.
 
A onça saltou na direção do garoto, que corria de encontro a sua avó. Em dado momento e inesperadamente, o felino desviou da trajetória do menino. Como quem desvia de um obstáculo. 
 
Para o espanto de Deolinda, a onça, ao desviar, deu poderosa cabeçada contra uma árvore logo à sua frente, como se o bicho não enxergasse um palmo diante do nariz.
 
Após poucos segundos, o animal se recompôs para logo em seguida fazer uma careta, jogar o corpo para trás e sair dali numa correria tão repentina, como no momento em que havia chegado. O animal faminto e perigoso, deu a louca, surtou.
 
Com o menino em seus braços, ainda assustada e Raimundinho sem ainda saber direito tudo o que havia acontecido e do risco iminente de sua morte, ao constatar que o menino estava bem, juntaram suas coisas e se afastaram do lugar.
 
Raimundinho só teve tempo de ver, de longe e rapidamente, o bicho correr e se embrenhar no mato.
 
Hoje, a velha Deolinda quando conta essa história, equiparam ao falatório de pescadores e caçadores e ela, rindo sempre, exibindo seu lindo sorriso banguela, se diverte com o episódio na companhia do neto, já adulto.
 
Nunca souberam direito o que foi que aconteceu.
 
A árvore diante da onça era apenas uma holografia, somente para provocar o desvio. A árvore verdadeira foi apagada da cena avistada pelo animal, que ficou cego só para esta árvore, daí a forte cabeçada. 
 
A careta, o salto e a fuga foram provocados por um cheiro forte de amoníaco, totalmente desconhecido do animal. 
 
Pois é, Deus sabe das coisas. É assim que abençoa as Deolindas dos rincões amazônicos.

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