Por: Antonio Mata
Hy Brazil, sonhos e vozes
O senho franzido, de face compenetrada, apenas sustentava sua decisão de estar ali, sem, no entanto, poder explicar-lhe. Anos de sucesso de seu povo, afirmavam os próprios companheiros. Como haveria de, aparentemente, se opor a algo tão presente?
O Nabão corria indiferente aos dois ou três pedriscos que lhe atirava o jovem meio grandalhão, de ar pensativo. Os pedriscos eram inúteis, ante aquilo que o perturbava.
O que poderia justificar uma mudança de rota? Sendo que tudo prosseguia enriquecendo e trazendo a glória? O sucesso enorme, os riscos inegáveis e em demasia. O mar oceano havia se tornado o túmulo daquela multidão de homens simples, que deixavam suas vilas, alçados à condição de desbravadores.
De fato, a pequena multidão de um reino pequeno, que se apresentava para as jornadas de seu tempo, de coragem e lealdade forjadas na peleja, na imensidão do mar e em batalhas em terras distantes. A saga ecoava cada vez mais forte, transformados que foram em guerreiros de real valor.
Viviam seu momento de afirmação. O ato de servir a Deus, ao Cristo, a seu rei. Razões suficientes para viver e se sentirem úteis. Este era o tempo e a vez. Estes eram os homens que se apresentavam. A Europa ainda, apenas assistia. Porém, não seria por muito tempo.
Pedro, o fidalgo, o jovem cavaleiro na beira do rio sabia de tudo isso. A realidade o comprazia e o dividia. O sonho, as vozes, o compraziam e o dividiam. Hy Brazil um detalhe, uma lembrança, quase nada. Fosse de lenda, fosse de ilusão.
Um olho no queijo, o outro...
Da ameia do castelo, dois antigos companheiros conversavam.
— Quem dera meu Deus, a serenidade deste rio, fosse o indicativo dos nossos corações. Infelizmente o desassossego não deixa. Era João quem falava.
— Sim, isto é a mais pura verdade. Como uma tempestade sem hora para chegar, mas que não se afasta. Somente se sabe que ela poderá surgir. De qualquer forma fizemos o que se podia fazer. Tomamos todos os cuidados possíveis.
Gaspar deteve-se um instante, a observar Pedro ao longe, lá embaixo. Ora caminhava, ora parava por entre as árvores. Identificável apenas pela capa vermelha e pelo costume de ficar vagueando junto ao rio, imerso em seus próprios pensamentos.
— Agora é rezar e contar com a proteção de nosso Senhor. Que Deus abençoe estas terras, El Rei e os seus súditos. Essa gente chã que também precisa da calmaria deste regato. Não esqueçamos que as mortes já são muitas.
— Colocar espiões, tanto em Granada como em Castela, foi uma providência importante. — Prosseguia João:
— O que quer que aconteça, precisamos ser avisados com antecedência útil. As distâncias são curtas. O tempo para se organizar uma defesa eficiente, muito limitado. Temos que nos antecipar sempre. Se quisermos ter sucesso.
— Pois tem que ser. As vilas e freguesias do Algarve, passando pelo Alentejo, até Traz os Montes. Do Minho ao Guadiana, na altura da Raia seca e de rio, a atenção há de ser permanente. Homens para fazer o alerta, do outro lado da Raia, a tempo de mobilizar tropas em número. Muito dinheiro foi transformado em aço, bestas e bocas de fogo. — Parou a pensar.
— Este reino é pequeno, mas é tinhoso.
A Ordem Militar de Cristo, reunia a nata dos cavaleiros e, portanto, da nobreza lusitana. Ao manter e oferecer apoio aos Cavaleiros do Templo, isto em uma época em que os templários haviam caído em desgraça. Contudo o reino precisava de cavaleiros valentes e hábeis, dispostos a morrer por seu rei.
Dom Dinis, el Rei, manteve a coesão e a fidelidade entre os seus vassalos mais valentes e destemidos. O pequeno Portugal seria defendido pelos seus melhores e mais fiéis combatentes.
Um olho no queijo, o outro no rato. A história, riqueza, conhecimento, cultura e identidade de um povo estavam nas mãos daqueles homens. Portugal vivia sob o risco de ter de lutar em duas frentes e ver seus homens morrerem em terra e no mar.
João olhava para o amigo com ar de satisfação. Aquele era mesmo um reino tão pequeno quanto tinhoso.
— Enquanto isso, cavaleiros do Cristo avançam mar adentro. Descobrir novas terras e riquezas é agora o seu papel. Contudo meu amigo, veja só. Pedro, por moço que seja, se ufana e se orgulha de sua presença nesta ordem que há de conduzi-lo a dias de glória. Mas, permanece tão taciturno e solitário.
— Também já pude notar. — Dizia Gaspar. — Tem buscado a leitura dos mapas e o conhecimento dos assuntos náuticos. Não duvido que venha a se tornar um cavaleiro do mar. Aliás, igual a Fernão, seu pai.
— Tem sim, em particular aqueles mapas venezianos, de Pizzicano e Andrea Bianco. Estes mapas indicam aquela ilha desconhecida, muito mais a oeste. Houve quem acreditasse ser os Açores. Outros ainda, para as bandas da Irlanda e além. Já se sabe que não são. Aquela ilha de lenda, que outros povos chamam de Hy Brazil.
— Pedro me parece estar se convencendo da existência dessa ilha. Só espero que essa busca não o prejudique. Se apoiar em mapas antigos, sendo que até hoje não há relato algum. Ninguém voltou para contar a história.
As observações de Gaspar fizeram João interrompê-lo.
— Ora Gaspar, ninguém conta tais histórias. Se não quiser receber concorrentes, querendo a mesma ilha. Veja a Madeira e Açores. Era tanto segredo que fizeram, que acabaram perdendo o caminho até lá. Esses caminhos valem ouro. Como estes mapas venezianos são velhos, já permitem sua venda. O que não quer dizer que não tenham valor. A ilha, caprichosa, pode estar lá apenas esperando que alguém a encontre. — E completou.
— Ela pode muito bem ser mui pequenina.
— Por que tanto interesse em uma Hy Brazil mui pequenina? — Indagou Gaspar.
— Como vou saber? Quem diria que uma simples pimenta poderia ser algo tão valioso? A mais pura verdade é que não sabemos de nada. — João prosseguiu ainda.
— Talvez seja este o tormento de Pedro. Hy Brazil de um lado, Preste João do outro e os nossos corações no meio. Quem vencerá esta peleja de sonhos? O que será ilusão, o que será realidade nesse mundo de meu Deus?
Era um tempo, era assim, de sonho, ilusão e realidade. Deus, fantasmas e demônios disputavam o sangue lusitano, pelas fronteiras, por sobre os mares e no fundo deles. Ora o queijo a impulsionar os interesses dos homens, ora o gato. A mostrar que não estavam sozinhos. Havia espaço nas mentes para tudo. Até para nenhum dos dois. Pedro, pensativo, oscilava entre a razão e a pura tolice.
— Muitas incursões foram realizadas e não há mais nada, para além do que já se encontrou. — Sustentava Gaspar. — O mar oceano é muito sinistro. Perigos em cada onda, em cada tempestade. Sabe lá Deus a quantos ele já não levou para o fundo. Por vez, Pedro já sabe disso tudo. — Gaspar preferiu sustentar a sua visão das coisas e prosseguia.
— Com todos querendo ganhar o mar na direção da África, na direção do arrojo, da riqueza e da fama, Pedro insiste em olhar para outro lado. Para o desconhecido e perigoso ocidente. Realmente não o compreendo. As rotas de comércio da altura de Gibraltar até além da Guiné e ultrapassando o Saara, deram acesso a especiarias, escravos e a ouro. As benfeitorias fortificadas têm dado muito certo.
Gaspar sabia bem que toda a prosperidade do reino dependia do seu sucesso na África. Dom Henrique, o Infante, conduzira os homens em empreitadas de sucesso, cada vez mais ao sul. Os homens cresciam ouvindo as histórias sobre Sagres, dos navios, dos mares, conquistas e navegações.
Ainda se realizavam esforços para que se encontrassem as terras do rei cristão Preste João. Quando encontrassem, teriam um aliado forte contra os muçulmanos, que resistiam no controle da costa africana. Isto, por si só, já seria de grande valia. Acabava a lenda, se iniciava a história. Seriam cristãos avançando cada vez mais. Por confuso e equivocado que fosse.
João falava, enquanto lembrava de episódios passados que lhes eram caros. Episódios das lutas na África. Episódios de vitórias, de ganhos, mas também de perdas.
O ano é 1471, o dia 24 de agosto.
Duas bombardas martelavam os muros de Arzila, cidade litorânea do Marrocos, faziam três dias. A cidade havia sido sitiada pelos portugueses sob o comando do rei Dom Afonso V e sua nobreza. Parte do muro cedeu, além de uma torre. Tropas adentraram a cidade a partir da pequena brecha, enquanto os soldados corriam a abrir os portões da cidade.
Durante a invasão, o capitão Simão de Pádua, pai de João se viu cercado por mouros que defendiam o local. Em combate, tropeçou e caiu. Recebeu um pesado golpe de ponta de espada, que rompeu sua malha de anéis de ferro.
A lâmina penetrou seu corpo perfurando os pulmões que se encheram de sangue. Simão morreu no local, sufocado e olhando para o céu, enquanto lusitanos tomavam a cidade.
As baixas portuguesas foram expressivas, porém Arzila foi dominada. A conquista era a ponta de lança para assegurar a invasão da cidade portuária de Tanger. O ardil, engendrado desde o início pelos conselheiros do rei Afonso V, deu certo.
A conquista de Arzila e a consequente queda de Tanger, onde os defensores fugiram, é considerada ainda hoje, a mais bem planejada operação militar lusitana, em terras do Marrocos durante aquele período.
Lá embaixo absorto em seus pensamentos, junto ao rio Nabão, o moço buscava pôr em ordem tudo o que sabia. Tudo o que poderia nortear sua decisão. Corria o ano de 1487, em julho. A decisão não era simples nem era fácil. Uma vez tomada, fosse para o lado das conquistas africanas, teria um cenário já conhecido e os riscos inerentes à empreitada.
Desde que em 1434 Gil Eanes havia cruzado o Cabo do Medo (Cabo Bojador), abrindo assim o caminho para o sul da África, muita coisa havia mudado.
O homem jogara por terra muitas das crendices medievais que atormentavam os navegadores europeus. Os abismos do fim do mundo, e os monstros marinhos gigantes, não se puseram a atormentá-lo, nem a seus homens.
É bem verdade e então, agora já sabiam. Muita coisa passaria a acontecer. Inclusive o despovoamento de várias vilas do reino. Era sempre assim: o queijo e o rato.
Contudo, Eanes pouco se afastara do continente. Mas descobrira as águas muito rasas do Bojador e repletas de traiçoeiros corais. Era isso que destruía as embarcações, e não monstros marinhos.
O Ocidente e Hy Brazil
Faltava guiar-se para o ocidente, adentrar o mar oceano e provar mais uma vez, cerca de 53 anos depois, que os monstros não existiam. Porém a meter medo, ainda haviam as tempestades, as calmarias, o escorbuto, a falta de comida e água potável, o pouco conhecimento das correntes e dos ventos.
Faltava ainda muito. Faltava superar o medo da derrota, mais que o medo da morte. Prosseguia reunindo o máximo de informações e a possibilidade de apoio à empreitada, por si só arriscada.
Naquela mesma noite o jovem fidalgo já recolhido a seu leito, tornou a sonhar. Caravelas e naus, envergando a cruz da Ordem de Cristo em suas velas, avançavam pelo mar oceano. O vento soprava forte e os navios sacudiam como se fossem brinquedos. Ainda assim, os barcos prosseguiam mar adentro.
O céu escurece assumindo o cinzento carregado e mortificante. A última visão de muitos portugueses. A água fria é soprada sobre os homens com força. Pedro se debate vendo aquilo, sem entender. Tempo de glória ou o pesadelo de seu sepulcro profundo e de tantos outros antes dele?
Em dado momento a tempestade cessa e o céu volta a clarear. Surgem gaivotas no céu. A seguir, folhas e galhos flutuando no mar, até que logo adiante a terra se torna visível.
Pelos anos além, o sonho se repetiria e se tornaria cada vez mais claro. Até compreender instruções objetivas.
Pedro, conduz a esquadra e chega nas novas terras. Tira da lenda e põe lá a cruz que te conduziu e conduz, por todo o tempo. Eu vou na frente.
Prosseguia pensativo, entretanto, buscando argumentos que reforçassem sua posição. O que não era nem um pouco fácil. Até que um fato, por demais novo, simplesmente virou o jogo das navegações, fazendo soar toda sorte de alarmes.
Espiões a serviço de Portugal davam conta de que um navegador genovês, a serviço de Castela, havia encontrado terras a oeste, adentrando o mar oceano. Corria o ano de 1493.
Sinal mais inconteste seria impossível. De imediato, Pedro foi chamado à corte. Agora havia um particular interesse por seus sonhos e intuições, tudo já tão antigo. A ponto de alguns considerarem o jovem cavaleiro repleto de inspirações, aos 25 anos, um tanto quanto lunático.
A persistência de seus sonhos e intuições, aliado à viagem sob a coroa de Castela, acabaram por convencer os mais hesitantes. Haveria de ser uma inspiração divina.
Ninguém haveria de imaginar, nem teria como. Nos ecos que habitam o tempo e o espaço, numa Atlântida desconhecida dos homens, murmurava, vindo dos tempos passados que a história não registrou, o nome Baratzil. A terra mística do Sul. As ruínas que ninguém viu.
Aos poucos, conquistou-se o apoio da Ordem de Cristo, e com ela o apoio de D. Manuel, rei de Portugal, somente a partir de 1495. Foi quando o plano se delineou e se pôs em marcha.
Por demorado que fosse, eram protagonistas de uma epopeia rumo ao desconhecido. Em 9 de março de 1500, a frota deixa o Porto do Restelo, em Lisboa. A viagem até as terras americanas levaria 44 dias.
Pedro à frente da juventude das vilas lusitanas, tão inspirados quanto ele próprio, avançavam em 10 naus e 3 caravelas, navios que se afastavam vagarosamente. Agora, condutor de homens, olhava ao redor e pensava consigo mesmo:
“Nossa vida é assim e assim prosseguirá. Navegar é preciso, morrer é muito fácil e muito simples. Por isso morrem tantos portugueses, tanto quanto morrem as moscas. Mesmo assim, nossos destinos estão com o grande mar oceano.”
FIM