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DKW

                                                                  

                                                                                                                                                          Foto: Wikimedia.org

Por: Antonio Mata

Restava percorrer algo como 90 ou 100 quilômetros, antes de poder dizer que estava em casa. Dinheiro, comida, paciência e esforço já haviam ficado pelo caminho, e aquilo não havia terminado.

Como nunca tivesse tirado os pés do estado, o simples fato de receber o convite, por si só, já era estupendo. Fazia tempos que sonhava com uma oportunidade de conhecer outras paragens.

A oportunidade chegou com o convite de seu tio Cândido, que fazia questão de rever o sobrinho e recebê-lo em sua casa. Por conta de álbuns de fotografias de família, havia encontrado uma antiga foto do tio com ele no colo, quando tinha dois anos de idade. Foi-se o tempo, 21 anos, além de cerca de 1200km separavam os dois.

Acertado os detalhes, embarcou de ônibus para Brasília para rever o tio, contar algumas histórias e passar alguns dias de suas férias na capital. Aproveitaria as paisagens, as conversas com o amigo Fernandes, que o acompanharia na viagem, e os intervalos de parada. Tinha entre 18 e 19 horas de viajem para vencer, mas a despeito do trajeto, estava satisfeito.

Deixaram o Rio de Janeiro por volta do meio-dia, chegando em Brasília antes das 07 horas da manhã. Cândido já estava na estação aguardando a chegada dos dois. Já em casa, pôde conhecer familiares que a distância e o tempo haviam separado, com o tio os arrastando para “n” visitas pelos arredores da cidade. E tudo no melhor estilo, já velho conhecido do sobrinho, nas andanças do RJ, de busão.

Já era noite quando regressaram para a residência do tio e sua família. Ainda que estivessem exaustos, logo após um rápido jantar, Cândido então, lhe falou da satisfação e alegria de poder rever o sobrinho depois de tantos anos, e de como isto era importante para ele. Afinal, era o filho mais velho de seu irmão, João Neto, com quem mais guardava afinidade.

— Gostaria de marcar essa visita de vocês aqui, em nossa casa. Particularmente a sua presença, Heitor, meu sobrinho. Então amanhã cedo, tão logo estejam de pé, quero lhe mostrar algo que talvez, você goste. Está comigo, já a bastante tempo, mas acho que vai ajudar e vai lhe servir bastante.

Heitor agradeceu a atenção e foi se deitar, procurando imaginar o que poderia ser a surpresa de seu tio. De todo modo, no dia seguinte tudo estaria elucidado, bastando esperar.

Já na manhã seguinte, com seu tio os acompanhando até a uma pequena área coberta nos fundos da casa, lá estava a tão esperada surpresa de seu tio. Ainda que não possuísse os elementos necessários para avaliar a surpresa em termos de valor, estética ou qualidade, o fato é que ela estava lá, estacionada na sua frente.

— Olha que maravilha Heitor, é toda sua!

Heitor era meio por fora, quando o assunto era automóvel. Acreditava que o tio havia chamado o carro de “toda sua”, se referindo à surpresa que fizera ao sobrinho. Foi o próprio Cândido quem explicou.

— Heitor, é uma perua DKW Vemag, F-91, de 1956, lhe dizia Cândido, com um indisfarçável sorriso de satisfação. De boca aberta, esperava por uma reação do sobrinho Heitor.

A uma análise de olho, assim mesmo, à primeira vista, o carro estava limpo e encerado. Tinha o charme das coisas antigas, aquele tipo de carro que, se passar, vão parar para olhar.

Lataria na cor verde meio tom, com o teto pintado em branco. Não foi bem o que Heitor pensou, se é que pôde pensar em alguma coisa. O carrinho era no mínimo diferente. Heitor nunca tinha visto nada nem parecido. Se tivesse recebido uma pequena pista, poderia ter pensado em um fusquinha 66, muito comum, todo mecânico conhece, e vendeu bastante.

O tipo de carro bom de achar peças até no ferro velho. Se duvidar, estaria na estrada até hoje, comendo asfalto como no dia em que saiu da fábrica. Mas uma perua DKW 56, em 2015? Não estava dando jeito, Heitor por mais que se esforça-se para admirar aquele carro comprido, planejado e pensado para um chefe de família,  não conseguia encaixá-lo nos seus jovens planos direito. Deu um sorriso amarelo para o tio e estendeu o polegar direito, nem que fosse só para dar uma satisfação. Foi Fernandes que botou pilha no amigo, falando baixinho.

— Heitor, cavalo dado não se conta os dentes, quando voltar a gente já vai na perua. Vai ser demais Heitor! É aventura Heitor!

Voltar para casa no DKW. A ideia não tinha nada de absurda, mas era preciso pensar primeiro. Mais uma vez foi Fernandes que se adiantou.

— Seu Cândido, se importa de darmos uma volta, só para saber como está de mecânica?

— Sem problemas, podem levar, vou apanhar as chaves.

Fernandes deu um sorriso de satisfação, pois o entusiasmo de Cândido era muito bom sinal.

— Vamos dar uma volta Heitor, e você vai poder tirar suas dúvidas. Fica frio, já vi coisa pior, e essa perua tá legal. Se não der certo a gente volta de ônibus.

—  É verdade, tá legal então.

Alguns minutos para se observar o câmbio de alavanca curta, junto ao volante, e outras duas alavancas mais curtas ainda, para luzes e sinaleiras. Ligou-se o motor e logo se fez aquele som muito pouco comum hoje em dia, para um motor de automóvel.

Era o motor de três cilindros, três bobinas e dois tempos, com 896cc, e 38 cavalos do DKW. Tinha uma fumaceira do óleo 2T, saindo pela descarga. Aspecto que hoje, seria um escândalo, mas em 56 era só mais um detalhe no charme do carrinho.

Uma olhada nos níveis de óleo, água e fluido de freio, e tão logo aqueceu saíram para dar uma volta no bairro. O carro de tração dianteira e roda-livre, mostrou-se inteiro. Algumas acelerações, verificação dos freios, luzes, direção e acostumar-se com a sequência de marchas. Estava tudo em ordem. A ideia de voltar para o Rio de Janeiro, guiando seu presente surpresa, começava a empolgar o Heitor.

Fernandes queria mais pilha para colocar no amigo, nada que um Google da vida não resolvesse. Logo ficou sabendo que o DKW sedan, que viria depois, teve seu tempo de “o favorito dos motoristas de táxi”. Nada mal, taxistas apreciavam o carro, que era de mecânica simples e robusta e podia levar cinco passageiros. Tinha ainda, um consumo razoável para a época. Lembremos que era o tempo da gasolina de baixo preço. Era um custo módico, mesmo para os taxistas. Só não podia esquecer de colocar 1 litro de óleo 2T, para cada 40 litros de gasolina, na hora de abastecer. Ainda não existia um recipiente em separado para o óleo, o que só aconteceria em 1965.

Tudo bem, não precisa contar os dentes, mas bem que poderiam ter dado uma olhada, só para saber se todos estavam lá. Indagar sobre a última troca de freios, teria sido providencial. Mas como é que os garotos iriam saber disso? Como é Fernandes?

Foi através do amigo Fernandes que Heitor ficou sabendo de uma perua DKW 56, vendida por 80 mil. Agora a brincadeira havia mudado de figura, até aos olhos de Heitor. Mesmo que houvesse uma certa despesa na reforma do carro, e teria de fazê-lo, na hora de vender, aquilo era um bocado de dinheiro.

Completou-se uma semana de estadia e então, com o carro e documentos em ordem, e com todos satisfeitos, despediram-se de Cândido, iniciando a viagem de volta ao Rio de Janeiro, pela BR040, e seus 1200km além.

Heitor estava preocupado em não forçar o carro, em função da idade do mesmo, e Fernandes, na condição de copiloto, orientava Heitor na viagem.

— Se não quer forçar, então vá a 60Km/h.

Sugestão aceita, porém significava um veículo de passeio em velocidade normalmente incompatível para uma estrada.

— Tá ok, então vá a 70Km/h.

Mais uma vez, adotou-se a proposta e passaram a se deslocar a 70Km/h. Caminhões passam por perto tocando aquelas buzinas de cone duplo e de som muito agudo. Ainda estavam atrapalhando quem quisesse passar.

— Não faz mal, vamos a 80Km/h.

Começava-se a fazer parte do tráfego regular sem importunar os demais. Avançaram por cerca de 200Km, sem maiores complicações, até que a cena começou a se modificar.

Pouco adiante, foram parados por uma patrulha da Polícia Rodoviária. O policial pediu os documentos do veículo e andou ao redor do mesmo verificando o estado do carro. Retornou de mão no queixo com um ar desconfiado.

Mandou acender os faróis, mandou trocar os faróis, piscar para a direita, para a esquerda, pisar no freio e acender as lanternas, enquanto verificava na traseira do veículo. Pediu para engatar a marcha à ré, e estava tudo correto. Voltou mais uma vez, e mandou calcar no pedal do freio, enquanto observava o pedal descer a meio curso. Estava tudo normal. Tudo no carrinho funcionava.

— Tem certeza de você vai chegar no RJ?

— Acho que sim seu guarda, o carro está ótimo.

— Está bem, tenham cuidado e boa viagem.

Heitor achou que era implicância do guarda rodoviário. Só porque o seu carro era velho, dizia.

O DKW acabara de passar no seu primeiro teste na estrada. Mas não seria o único. Parecia que 200km era, mais ou menos o seu limite, e agora faltavam apenas mais 1000km.

Mau olhado do policial rodoviário, ou não, foi logo a seguir. Com 230km, surgiu a primeira pane de verdade. O pneu dianteiro direito começou a esvaziar. Pararam em um posto próximo, e calibraram todos os pneus. Mais 45km e o pneu estava murchando novamente.

— Não é possível, voltamos à estrada a pouco mais de trinta minutos e o pneu já está esvaziando. Lamentava Heitor, enquanto buscava por uma borracharia.

Parando mais uma vez, descobriu que havia muita sujeira acumulada entre o pneu e a roda, que por vez tinham muita ferrugem. Foi-lhe recomendado limpar todos as rodas por precaução, e foi dito ainda que os pneus estavam por demais ressecados. Os pneus não estavam carecas, mas desgastados. Poderiam ser recuperados, mas não haveria garantia pelo serviço, em função do trajeto extenso que pretendiam percorrer. Em função da viagem foi recomendado a troca dos pneus.

Heitor começava a desconfiar que o tio Cândido, gostava de manter o carro encerado e polido, mas para algumas questões bem objetivas, parecia não dar maior atenção.

Nas pequenas e eventuais distâncias percorridas por Cândido, os problemas ficavam inibidos, meio que mascarados. Bastou pegar a estrada sem os devidos cuidados e as coisas começaram a acontecer.

Ainda que a contragosto, Heitor mandou colocar 4 pneus novos, de aro 15, e era só isso. Os pneus de aro 5.60-15, com tala estreita, como era utilizado nos anos 50 e 60, típicos do DKW, e câmaras de ar, não estariam disponíveis, não na beira da estrada. Começava a despersonalização do carrinho.

Aos 450km, o DKW passou a apresentar aquecimento excessivo, o que começou a preocupar os dois ocupantes. Em uma verificação das tubulações, o próprio Heitor encontrou facilmente uma mangueira de refrigeração perfurada.  Sem dispor da peça, mais uma vez, seguem de forma intermitente, parando para completar a água, até encontrar uma oficina.

Lá, um mecânico, ante a falta da peça na mesma medida, mantém a peça e faz a popular gambiarra, amarrando uma tira de câmara de ar. Há de se imaginar que terá de servir. Afinal, a viagem depende disso. Colocou mais algumas tiras de câmara de ar no porta-malas, e partiu, no compromisso de fazer verificações mais frequentes.

Caminhando para os 520km, a perua começou a dar sinais de que estaria ficando sem combustível, e muito antes da hora. Nova verificação e agora era a mangueira de abastecimento que se soltava, por conta da trepidação. Nada que uma pequena braçadeira não resolvesse, ou mesmo um pedaço de arame. Só não havia nada disso. Outra parada de modo a se encontrar arame ou braçadeira. A simpatia de Heitor pela ideia de Fernandes, já havia virado poeira.

Pequenos inconvenientes podem surgir em qualquer veículo de idade avançada, principalmente se o carro não for de muito conhecimento da parte de seu dono. Leva algum tempo para se conhecer o próprio carro. Esse tempo, Heitor, na pressa não teve.

Felizmente, já haviam cruzado os 940km, com muitos méritos. Pacientemente parando e verificando tudo. O Rio de Janeiro, já não é mais um sonho assim tão distante.

Fernandes conversava com Heitor, buscando alegrar o amigo. Não demoraria muito e estariam fora daquela armadilha. Ficaram para trás 970km, e nada de ruim havia acontecido. Apenas o rádio não funcionava direito, o que na estrada é comum, na medida em que se afastava das estações. Foi quando a bomba explodiu.

Desciam por um declive suave na pista, com um paredão à direita. De repente, como se diria popularmente, “do nada”, Heitor pisa no freio e se dá conta de que o pedal desce fundo sem frear a perua. A raciocínio seguinte, é recorrer ao freio motor. É aí que se iniciavam as angústias do motorista. O motor de dois tempos da perua, possuía pouco freio motor. O pequeno declive assumiu ares de despenhadeiro.

Apenas havia outra coisa, que bastaria Fernandes ter lido o texto todo, ou ter se informado mais um pouco e rapidamente teria tomado conhecimento. Os freios a tambor, usuais nas quatro rodas do DKW, ante o desgaste, costumavam estourar o cilindro. Isto fazia com que o veículo, de repente, perdesse o freio.

Como uma coisa puxa outra coisa, o DKW 56, tinha um probleminha à toa que foi com o tempo solucionado, por engenheiros atentos ao comportamento do veículo, e às opiniões dos clientes. É que o uso intenso dos freios fazia com que eles aquecessem demais, podendo inclusive travar suas rodas. Foi só fazer doze furos nas rodas e o problema foi equacionado. Tio Cândido era um purista, suas rodas eram as originais de 1956, quer dizer, sem os furos de arrefecimento.

Aconteceu o que tinha de acontecer. Se foi esta ou aquela situação, é porque havia maldades diferentes para se escolher. Agora, nada de parar na oficina resmungando e olhando para o amigo Fernandes com cara de mau. Poderia ter ficado sozinho nessa, bastaria que Fernandes tivesse resolvido voltar de ônibus. Mas ele não fez nada disso. Amigo é assim, mesmo que seja para ficar em uma perua sem freios, em uma descida, a um passo da eternidade.

Se Heitor era um sujeito de raciocínio rápido, estava na hora de usar, e já. Quando sentiu a situação perdida, com a perua ganhando velocidade, fez exatamente o que a sua lucidez mandou. Buscou diminuir a velocidade encostando as rodas no meio fio, porém não foi o suficiente.

Sem pensar duas vezes, encostou o carro no paredão, e de pancada em pancada, com Fernandes sentado do seu lado direito, alucinado, vendo o carro se acabar, com a lataria, a única coisa que protegia seu corpo das rochas, vendo o metal se retorcendo todo a cada pancada.

O DKW 56, recebido com alegria, quando do seu lançamento no Brasil, foi reduzindo e perdendo velocidade, até parar. Heitor havia contido o movimento. Fernandes tremia mais que vara de bambu ao vento, mas tanto ele como Heitor, estavam vivos.

O sol ainda não se punha, quando do acidente. Desceram do carro para verificar aquele final patético. A roda dianteira direita havia desaparecido. A traseira havia arrebentado o pneu e a roda. Para-lama, para choque, farol e lanterna direita, tudo inexistente.

A porta direita que temporariamente protegia Fernandes, ficou sanfonada, já que não havia espaço para se abrir para trás.  Levou junto ainda, parte da carroceria. O para-brisa, além dos demais vidros do lado direito, tudo quebrado. A perua havia sofrido uma espécie de derrame mecânico, que deformou todo o seu lado direito. Heitor comentou, a bem da verdade.

— Mais que com o presente, acabei com o carro do meu tio.

Com a ajuda de motoristas, e de uma patrulha da Polícia Rodoviária, conseguiram um carro guincho para retirar o veículo do local. Na manhã seguinte, após uma rápida discussão, trouxeram o dono de um ferro velho para avaliar o que restou do histórico e saudoso DKW.

— Olha véi, do jeito que tá aí, posso te dar 1500 reais. Só presta para retirar as peças, e sabe Deus, quando vai aparecer alguém procurando peça de DKW.

Depois de um certo impasse, e considerando que colecionadores poderiam se interessar em  recuperar a perua, fecharam com a bagatela de 1800 reais. Descontando os pneus seminovos, as paradas nas oficinas e carro guincho, sobraram 210 reais.

Embarcaram no primeiro busão que passou rumo ao Rio de Janeiro. Já sem dinheiro, percorreram o trajeto final, a pé, até a chegada em Bonsucesso.

Fernandes, no intuito de alentar o amigo, ainda buscou mais algumas palavras de ânimo.

— Olha só amigão, veja por este ângulo. Nós nunca, jamais, em circunstância alguma, teríamos vivido tantas aventuras e detonado tanta adrenalina como nessa viagem. Foi demais cara! Você não percebe?

Heitor reuniu toda sua paciência e compreensão com o amigo de muitos anos.

— Não.

— Pô, Heitor, a vida é isso aí que você tá vendo. Estamos vivos, e amanhã é outro dia. Não é assim que se diz?

— É.

— E então cara, toca pra frente maluco, toca pra frente!

Acabrunhado e ainda abatido, mas no fundo sabia que o amigo tinha razão. Ameaçou um sorriso meio sem graça, e concordou com Fernandes.

— É mesmo..., é sim. Vamos pra casa, minha mãe deve ter feito macarronada.

— O quê, tá me convidando?

— É claro, vamos.

E assim voltaram para a casa do Heitor, para comer macarronada. Quanto a aquele ícone dos primórdios da indústria automobilística nacional, bem, ficou lá no ferro velho, na rodovia.

Caso você seja um daqueles caras fissurados por carros antigos, sei lá, de repente você até o recupera. Passa por lá e dá uma olhada. É um DKW F-91, 1956 na cor verde meio tom. Não vai ser difícil de achar.

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