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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Ele não demora

                                                                               Foto: ElizabethBadami por Pixabay 

Por: Antonio Mata 

 

Rendeu-se ao cansaço e ao mal-estar. Acomodou-se como lhe foi possível um cochilo e logo estaria tudo bem. É o que pensava ao se deitar. Olhava para as nuvens passando lá fora enquanto procurava se balançar levemente. O ar mais quente e úmido, típico da época.

Queria sair dali, talvez partir para outro lugar. Já não dava mais. Achava um jeito de parar de pensar daquela forma. Pisar no terreiro ao redor da casa, ao menos. Olhar algumas plantas e sentir o cheiro do mato. Melhor que a imobilidade mal sã em que se encontrava.

O som ainda um tanto quanto recente de crianças brincando com barquinhos feitos à mão, de balsa, retornavam levemente. As bonecas de cabelos de milho que ensinara às suas irmãs.

Assim, de uma para outra, de geração em geração, os brinquedos, aqueles saídos das mentes das próprias crianças, são passados e recriados no tempo.

Foi Luisinho que de tanto ver o Justo Chermont passar, um dia resolveu fazer o seu. Este só expelia fumaça, que era aquilo que Luís podia ver e entender. Para que servia a fumaça? Ora, para empurrar o barco.

Fez o seu em balsa, idealizou uma caixa central que recebeu a palha. Tocou fogo na caixa e tapou com uma placa igualmente de balsa, sendo que havia uma abertura central, a chaminé por onde a fumaça pudesse sair. Deu um leve empurrão e seu vapor saiu a deslizar pelo rio.

Infelizmente, só por dois minutos, pois logo principiou um incêndio no interior da embarcação que assim acabou indo a pique a uns cinco ou seis metros da beira do rio. Entre a preparação, cercada de olhos por todos os lados, a torcida organizada da família do Luís, dez minutos. Depois  acender o fogo, tapar, fazer fumaça com a palha úmida, mais três minutos.

Iniciar a navegação, avançar no rio, outros dois minutos do início da viagem. Principiar o incêndio e se alastrar pela embarcação, mais três minutos. Finalmente o trágico e lamentável naufrágio, assistido por todos, mais dois minutos até desaparecer nas águas profundas e perigosas dos abismos da beira do rio, a cinco metros da beirada. Foi assim, aquele episódio inusitado que proporcionou vinte minutos de aventura, inovação, narrativa e diversão. Simplesmente fantástico.

Velhos, adultos e crianças, todos de pé na beira do rio assistindo a inventiva inocente e intrépida do Luizinho, com água até a cintura, narrando o desenrolar da história com ares de dramaticidade.

— Meu Deus do céu, o Constantino incendiou no meio do rio e afundou. Quem será que conseguiu escapar? Quem terá chegado na beira do rio, para poder contar a história do Constantino? Quem poderá saber do seu fim?

Um brinquedo de fábrica jamais faria isso. Jamais mobilizaria 27 pessoas a assistir uma aventura com começo meio e fim. O brinquedo, a brincadeira, a narrativa e a diversão. Corria o ano de 1908, era o mês de julho, quando o naufrágio do barquinho de balsa Constantino, saído das mãos do Luizinho se deu.

Na brincadeira e na narrativa, Luisinho expunha a marca do rio. Registra o presente, o agora. Aquilo que passou, fica para trás  sem deixar vestígios. Se não houver um sobrevivente ninguém ficará sabendo o que aconteceu. Tinha de haver um sobrevivente.

Com as meninas a inventiva ficava por conta das bonecas de cabelo de milho e dos trapos e pedaços de tecidos, habilmente transformados em vestidos, muitas vezes sem dispor de uma tesoura sequer.

A cor dos cabelos escolhidos no milharal de acordo com o milho estar mais maduro ou não. É assim que no milharal, as ruivas e louras têm vez. Os cabelos negros, de Luzia e de seus irmãos exigiam uma operação adicional. Misturar o sumo do jenipapo com carvão vegetal bem pilado.

A balsa oferecia canoas, o barco a vapor do Luizinho, mas também o leme e o mastro com vela de trapo. A marujada feita de barro e pintada com o amarelo do açafrão, o branco da tabatinga, o vermelho do urucum e o preto do jenipapo, assim como suas combinações.

Era assim, havia o corte; o encaixe; a raspagem; a costura; a lavagem; a pintura; a modelagem e o cozimento. Conduzida por mãos infantis. Era a fábrica de brinquedos da beira do rio.

Embalou-se nestas lembranças de um tempo rico de união, de histórias e de sorrisos. Onde estará Luisinho neste momento? Maria Helena, para onde foi? Elias, Vitória e Ana Maria? E os primos Raul; Alfredo; do Carmo?

Já não via mais ninguém, só as nuvens que passam na janela. Só resta esperar, o que se pode fazer é esperar. Hoje, amanhã e depois, até que volte, até voltar.

— Luzia vem comigo. Vem se levantar, eu te ajudo. Agora precisa vir comigo, vamos cuidar de você.

— Ah, não precisa. Eu estou esperando, é para esperar aqui, porque ele vai voltar. É só aguardar que ele volta.

— É isso que preciso lhe dizer. Houve um pequeno acidente com a canoa. Não foi nada que comprometesse e ele está bem. Venha conosco, ficará mais fácil para você vê-lo. Venha, nesse momento, você precisa mais de apoio do que ele. Não vai querer ser encontrada passando mal e sozinha, não é mesmo?

— E se depois ele aparecer?

— Não se preocupe, nós cuidaremos de avisá-lo também.

Luzia concordou e se esforçou para se colocar de pé, não sem dificuldade. Esticou-se, pôs um pé no chão, depois o outro. Deu a mão à sua socorrista e caminhou uns poucos passos.

Foi retirada do barraco semidestruído sem olhar para trás e então se afastaram.

Três anos para pensar, três anos para esperar, três anos para se esquecer. O que um dia fora uma habitação singela sobre palafitas, corroída pelo tempo se desmontava, a rede reduzida a trapos, o corpo se decompôs, a ossada apoiada no chão. Os restos de uma espera inútil.

Em poucos dias, sofrendo dores agudas, a menina de 14 anos não resistiu. Após três anos, finalmente consentiu em ser retirada do lugar. Não fazia melhor ideia de tudo o que havia vivenciado e suportado naqueles anos.

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