Por: Antonio Mata
Quando amanheceu, meu pai já estava no areal como de costume. Nossa gente tirava o sustento da lida no Mar Grande Sempre Sereno. Sempre repleto de brisa, de maresia e de peixes.
Gostava disso, de levantar e vê-lo toda manhã. Também queria continuar a viver assim. Minha mãe e minha irmã completavam a alimentação com raízes e verduras. Lembranças de gente simples. De dias bons, de fartura e felizes.
Tive eu mesmo um sonho, que acabei contando aos demais. Ocasionalmente, diante da fogueira, pediam para contar e então tirar uma conclusão. Ninguém reclamou pelo fato de ser o sonho de um menino. Mesmo que ninguém mais tivesse sonhado.
Os homens tinham reunido suas redes, arpões e canoas. Puseram as canoas por sobre os ombros. Então tomaram o rumo para o outro lado. Saíram caminhando para longe do mar, ou o que restava dele. Não entendi nada.
O que também não sabia e que custei a entender, mesmo depois do sonho e mesmo depois que ele me contou, é que dessa vez ele estava abismado.
Iokan enxergava outra coisa. Parecia que o Mar Grande Sempre Sereno estava diferente, como jamais estivera antes. Isso deixou meu pai pensativo e desassossegado.
Nunca mais, nem Iokan, nem eu, nem ninguém voltaríamos a vê-lo como antes.
Algo repentino, daquelas coisas que metem medo? Não no Sempre Sereno. Ele não era disso. Nem com meu pai, nem meu avô. Nem com nenhum pescador antes de nós.
Mar é coisa grande. É muita água, muita areia nas praias e muito, muito peixe de nem se fazer a conta. Agora, como que vai explicar tudo? O morro sumiu, a Lua partiu, o vento foi embora e o mar fugiu. Já faz tempo que parei de pensar nisso. Não havia resposta.
O Sempre Sereno que alimentou nossa gente e tantos outros povos que viviam no litoral desde muito tempo. Ele se foi para nunca mais voltar. Parecia brincadeira, uma piada. Mas nenhum de nós voltaria a vê-lo.
Meu pai juntou algumas coisas e junto a mais dois pescadores tomaram o rumo do mar. Costeando seu novo contorno. Queriam saber se tudo estava se acabando. Ou se ele havia se encolhido. Não vi mais Iokan, meu pai, nem nenhum dos outros homens.
Se houvesse se transformado em um Pequeno Sereno, ainda assim teria gostado e talvez, também tivesse Iokan de volta. Só não foi assim que aconteceu.
Quando vi os homens decidindo colocar as canoas nos ombros e partir para longe das praias, na direção dos rios, no início minha mãe relutou ter de partir. Depois chamou meu irmão mais velho, juntou algumas coisas e tratou de acompanhá-los, assim como as demais famílias.
É que com o afastamento do mar, e não era devido à maré, primeiro surgiram lagos salgados. Depois estes lagos começaram a secar e os peixes a apodrecer.
Alguns voltaram contando que havia um ou dois lagos, logo após. Depois contaram que seriam, então, três ou quatro lagos. Até que um homem que andou muito e se expôs muito por entre animais.
A região estava ficando cheia de queixadas, onças e dentes longos que perambulavam por entre as lagunas. Cada um mais perigoso do que o outro. Parecia que também estavam querendo saber o que era aquilo que estava acontecendo. Lua após lua, chuva após chuva.
O último a retornar nos contou que era um número enorme de lagos e lagunas. O que todas elas tinham em comum: estavam secando. Se transformando em depósitos de sal e de areia. Depois, muita gente apareceu contando estas histórias.
Mas nenhum deles era Iokan, meu pai.
Homens, mulheres e crianças, todos choravam pela fuga do mar. Não entendiam por que razão resolvera partir. Desde os antigos que se ouvia sobre isso. Que o mar estava querendo ir embora. Ainda menino não entendia o significado.
Depois que se foi viver junto ao rio, com o tempo, até o paladar sofreu mudanças. A carne do peixe de rio não era a mesma do peixe de mar. Ainda que existisse sal para todo lado.
Os homens, que até então preferiam a vida de pescador de mar, tiveram que abandonar tal preferência e se adaptar. Assim, muitos foram pescar nos rios e muitos outros adotaram o ofício perigoso de caçador.
As referências praianas foram se perdendo. O peixe cozido na água do mar e misturado com ervas. As crianças já não sabiam mais o que era o cheiro de maresia.
Meu pai desapareceu, minha mãe já se foi, meu irmão também. Temo que quando eu mesmo partir, as histórias de pescarias no Mar Grande Sempre Sereno, se percam de uma vez e não fique mais ninguém para contar que, um dia, ele existiu.
O Sempre Sereno era um mar interior amazônico que já vinha acumulando grande quantidade de sedimentos provenientes da cordilheira andina.
Com o afundamento gradativo das terras da Atlântida, suas águas escoaram lentamente na direção do oceano em formação. Tal movimento ajudou a definir a calha do rio Solimões-Amazonas.
Assim como o espalhamento de saleiros e areais por toda a região nos níveis de superfície e logo abaixo. As chuvas, cada vez mais intensas, ajudaram a limpar tudo. Aliviando o sal na superfície e preparando o terreno para a expansão da grande floresta.