Foto: Wikimedia commons
Por: Antonio Mata.
Raimundo, que só para variar, também era Nonato, dava o acabamento em mais uma cômoda com quatro gavetas, e portas sobre rodízios. Envernizara a peça em tons claros para salientar o bonito castanho-avermelhado, natural do jatobá.
Retirante do sertão cearense, aprendera em Belém, e ainda muito jovem, o ofício de marceneiro, prestando pequenos serviços em troca de comida. Com tempo e muito trabalho, em pequeno barracão, aventurou montar sua própria oficina.
A empreitada acompanhou o crescimento do bairro e da cidade, prestando serviços à própria comunidade. Fenômeno comum às cidades brasileiras dos anos 60 e seguintes. Aos poucos, conquistou sua clientela, e no final deu certo. Raimundo tornou-se um imigrante próspero.
O jovem com o tempo casou-se, tendo ocorrido aquela situação típica onde o casal só consegue ter filhos do mesmo sexo. Dos cinco filhos, todos homens, um morreu de meningite ainda bebê, os outros quatro chegaram à vida adulta, Túlio, Agostinho, Valdir e Francisco.
Túlio e Agostinho, sempre muito próximos, porém, rebeldes e encrenqueiros. Na adolescência patrocinaram confusões diversas no bairro, sendo necessário, e não poucas vezes a intervenção de Raimundo. Só não se viram em situações mais difíceis, por conta do apreço por Raimundo, muito conhecido no lugar.
Valdir e Francisco tinham personalidades diferentes. Ainda que não fossem propriamente unidos, não era comum participarem das confusões criadas por Túlio e Agostinho, aliás, isto sim é que significava o pesadelo de Raimundo. Desde a tenra infância, os quatro irmãos brigavam com grande frequência. Situação comum era Túlio e Agostinho se unirem para brigar com Valdir e Francisco.
Os esforços de Raimundo sempre foram no sentido de apaziguar os quatro filhos, principalmente quando se tornaram rapazes. Para que todos se respeitassem como irmãos. Não era por falta de atenção dos pais. Os irmãos, simplesmente não se entendiam.
Nos conflitos e brigas pelo bairro, era comum assistir aquele imbróglio, no mínimo estranho onde entre os brigões, dois irmãos estavam de um lado, e os outros dois estavam do outro, tamanha a animosidade e diferenças entre opiniões.
Com a vida adulta chegando, trataram de tomar cada um, o seu próprio rumo. Foi só com o afastamento físico que o ciclo de brigas, mas também de decepções para o velho Raimundo, teve de fato um final menos infeliz. A união entre os irmãos, esta não se mostrou possível.
Francisco adquiriu gosto pelos aviões Catalina da FAB, que pousavam no rio, nas proximidades de sua casa, episódio que muito chamava a tenção das pessoas, tornando-se um pequeno espetáculo semanal, assistir a amerissagem do Catalina, o desembarque de passageiros e carga, e saber quem estava chegando de avião. O pequeno Francisco corria para ver mais de perto o local onde o hidroavião atracava.
Por conta destes episódios, sentou praça na Aeronáutica, à época do serviço militar, onde se tornou cabo auxiliar de mecânica. Depois de uma temporada no estado de São Paulo, retornou como 3° sargento mecânico de voo, ainda a tempo de ser tripulante dos CA-10 Catalina, já próximos de deixarem o serviço ativo. Onde os demais viam lentidão e obsolescência, Francisco enxergava o velho transportador que inspirou seus sonhos de infância.
Valdir, trabalhando com o pai, tornou-se um exímio artesão em marchetaria, combinando materiais diversos para obter formas geométricas que embelezavam, desde pequenos objetos, até pisos, painéis e móveis com um acabamento primoroso. Quando o velho Raimundo finalmente se aposentou, foi Valdir quem tocou adiante a oficina da família.
Túlio foi aquele, dentre os irmãos, que não conseguia “sossegar o facho” em lugar nenhum. No comportamento tinha a companhia de Agostinho. Buscou diversos empregos, tendo até relativo sucesso. O próprio Agostinho se tornou vendedor em uma banca de secos e molhados, no mercado do Ver o Peso.
Túlio gostava de funções que lhe permitissem o uso de armas. Tornou-se policial militar, saindo em seguida por inadaptação à disciplina da corporação. Foi vigilante de empresa privada e segurança particular, sem maior interesse com a disciplina e as regras do trabalho.
Acabou envolvido com o crime organizado, onde por conta de um acerto de contas entre gangues rivais, foi baleado diversas vezes, vindo a morrer com um tiro na cabeça. Túlio contava à época, 25 anos de idade.
Já Agostinho, com a perda do irmão mais velho, pôde rever sua própria conduta. Com a ajuda do pai, adquiriu em sociedade um barco motor para transporte de carga e passageiros pelos rios da região. O barco de madeira, um tipo conhecido como “recreio”, comprado de segunda mão, foi rebatizado com o nome de Venceslau, em homenagem ao avô paterno. Agostinho tocou o resto de sua vida, intimamente ligado às coisas da navegação fluvial pelos rios amazônicos.
Já idoso, Raimundo ainda lembrava tristemente do jovem Túlio, e sua trajetória tão confusa e trágica. Repensava as suas próprias ações e os fatos da vida passada, buscando algum fragmento que pudesse explicar a animosidade dos filhos e o comportamento rebelde de Túlio. Não havia, não encontrava, o que só aumentava a sua frustração, ainda tanto tempo depois dos lamentáveis episódios ocorridos.
Em uma dessas ocasiões, ficara até mais tarde, envolvido em seus pensamentos, observando as matas que se perdiam, do outro lado do rio, ao longe na escuridão, adormeceu.
Conduzido à aridez do sertão nordestino, em meio à caatinga, observa a tropa de soldados que avança em coluna. É a volante, uma tropa de soldados da polícia envolvida na caça de cangaceiros que assolavam os sertões nos idos dos anos 20, principalmente. Pôde observar dois homens na volante em marcha. Um era Francisco, cabo da volante. O outro, era Valdir, um soldado raso.
Pouco além, um bando de cangaceiros espreitavam os caminhos da volante, e organizam a tocaia, escondidos por de trás das rochas, de costas para o sol do fim de tarde.
Armados com uma mistura de rifles Winchester, .44 de 1873, e fuzis Mauser 1908, os bandoleiros entrincheirados no alto do morro tinham ótima posição de tiro, deixando a tropa de polícia, inexperiente, exposta ao fogo direto, contra um paredão rochoso.
Ante à aproximação da volante, e chegando ao ponto ideal da tocaia, ouve-se o comando do líder do bando, iniciando o fogo contra a tropa desguarnecida. Uma voz esganiçada grita sem parar:
— Mata os macaco! Mata os macaco! Acaba com a macacada!
Raimundo pode ver com toda a clareza. É Túlio, comandando o ataque à tropa policial. Ao seu lado está Agostinho.
Pegos de surpresa, os soldados da volante tentam reagir ao ataque. Com o sol contra os olhos, a missão se mostra mais difícil do que se poderia supor. Tal e qual um bando de homens assustados, e não uma tropa de soldados, a volante inexperiente retorna nos próprios calos para sair do paredão onde se encontrava. No caminho encontram ainda o fogo de cangaceiros que habilmente fechavam a saída do local. Fogem em correria debaixo de fogo.
O líder cangaceiro mete um balaço na cabeça de Francisco, e outro no peito de Valdir. Quando a refrega termina, quatro policiais estão mortos. Francisco e Valdir estão entre eles.
O líder do bando de cangaceiros, se aproxima e urina no rosto dos soldados mortos, em seguida manda decapitá-los. Francisco e Valdir, em espírito, assistem ao comportamento vil. Em seguida o bando se retira do local. Francisco, Valdir e os outros dois soldados mortos assistem a cena atônitos, e vêm seus corpos no chão sem nada entender. A volante naquela tarde teve ainda mais sete feridos no combate.
Agora Raimundo já compreende a animosidade dos filhos. Acorda repentinamente, já é noite. Olha para o céu estrelado. De alguma forma, entender o que se passou lhe traz o alívio que buscava. Recolhe-se de vez e vai dormir.
Não há efeito sem causa. O fenômeno da vida se dá a partir de Leis Divinas, universais e imutáveis, que organizam e lhe dão direcionamento. Quem planta o bem colhe o bem, quem viceja no mal, assumirá a responsabilidade pelos crimes cometidos.