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EQM

                                                      

                                                                                                                                   Foto: Wikipedia

Por: Antonio Mata

A ideia era que realmente se acostumasse, seja com os procedimentos, seja com o horário, sempre muito cedo. Por gosto, tornou-se o seu terceiro emprego, felizmente chegando aonde de fato tanto queria.

O segundo foi como motorista de aplicativo. No tempo em que isso dava algum dinheiro. O primeiro foi com seu tio, em um armazém de secos e molhados. Este lhe custou quatro anos pedalando pelas ruas e vielas do lugar, antes que pudesse obter a habilitação para dirigir.

O motorista de aplicativo só enxergava um propósito adiante. Foi sua paixão que o fez consumir quase tudo o que ganhou dirigindo. Satisfação, alegrias, alcançar novos horizontes, enquanto sua vida percorria distâncias cada vez maiores.

Contava seus tostões até poder pagar mais uma hora de voo. A paixão pelos aviões o fez se afastar do antigo emprego. Completou suas 40 horas do treinamento básico e partiu rumo às 200 horas regulares para a licença de piloto comercial. Foram três anos até completá-las e mais um, até a oportunidade de assumir novos rumos com o seu primeiro avião.

Um velho e confiável Cessna 172 para quatro pessoas, impulsionados a 210 km/h, por 160 hp. Seria com ele que iria saciar a sua sede de aventura, movimento e gosto por voar. Não sem os dramas do ofício. Os dramas comuns aos pilotos da Amazônia. Mesmo com 700 horas de voo, depois.

Cruzava os céus dos distantes rincões da região levando passageiros e pequenas cargas no monomotor. Gostava de sobrevoar o grande tapete verde, visível adiante e abaixo, pouco se importando com o tempo que levasse.

Ao nascer do sol, o avião decolou de Humaitá com destino a Manicoré, a 268 Km, com o avião vazio. Batendo lata, como dizem os pilotos. Em seguida prosseguiria para Manaus, 332 Km adiante. Em voo visual, mantendo o rio Madeira sempre à sua esquerda, levaria 1:15 h, ou pouco mais para chegar no destino.

Com cerca de 40 minutos de voo, sobreveio a pane. O motor começou a falhar. Com o avião perdendo altura, busca se aproximar do rio que não está distante. Restava saber se conseguiria chegar até ele. Pode perder a total potência do motor a qualquer momento.

De fato, a pane total levou cerca de um minuto. Não alcançaria o rio Madeira. Apesar disso, vislumbrou um lago se projetando à sua frente, da direita para a esquerda. Ainda não sabia, mas era o lago Cabeceira do Uraniara. Se a ideia era encontrar uma superfície de água para um pouso de emergência, havia conseguido. A despeito do trem de pouso fixo do 172, não contribuir nem um pouco. Preparou-se para o choque.

Tão logo as rodas traseiras tocaram na água, jogaram o pequeno avião para a frente, perdendo velocidade rapidamente. Logo o avião estaria cheio d’água e afundando. Tudo se deu muito rápido. Sentia a água fria do lago, enquanto lutava para sair dali. Alguma coisa impedia a porta do avião de se abrir o suficiente para que pudesse escapar.

A água escura do lago impedia melhor visibilidade. Prosseguiu lutando pela vida, até que o esforço e a falta de oxigênio cobraram seu contributo. Estava se afogando e não conseguia se soltar, a porta não abria.

Seria um tronco no fundo do lago, se projetando acima e bloqueando o movimento da porta? Estaria então no fundo do lago? Que importa, não conseguia ver quase nada e estava se afogando, enquanto permanecia preso no avião.

Por um momento, pareceu se desprender do cenário trágico que o envolvia. Sentiu algo como se já conhecesse aquilo. Na realidade não conhecia, só visto na tv ou ouvido falar. Uma sequência de imagens contava rapidamente a história de sua vida. Desde os dias de escola, sua família; pais e irmãos; as entregas de bicicleta; a loja de seu tio; seu carro e o avião.

Via o lago que se enchia de luz. De repente já não estava mais no lago, muito menos molhado. Já não via mais o avião e nem se preocupava com isso.

Sentia-se excepcionalmente bem no meio daquela sequência de cores e imagens. Uma passagem, o túnel, tão citado por várias pessoas estava bem ali, na sua frente.

Uma paz muito grande o envolvia. Sentia vontade de caminhar na direção do túnel. Antes de tomar tal decisão, notou que não estava sozinho. Olhou para a pessoa, a poucos metros de onde se encontrava. Então perguntou:

— Eu poderia ficar aqui? Posso entrar no túnel?

— Devo lhe dizer que ainda é cedo. Não é a sua hora de fazê-lo. Muito menos de entrar no túnel. Você deve e precisa voltar.

— Como posso fazê-lo? Estava preso no fundo do lago. Lá é frio e estava me afogando.

— Vamos cuidar disso. Volte e cuide de sair do avião.

Tão rápido quanto aquela história insólita se deu, retornou para o avião acidentado. Notou quando a porta se abriu. Juntou suas forças e rapidamente atirou-se para fora e para cima.

Sentiu duas mãos poderosas segurarem suas pernas e o conduzir para cima. Já a superfície, pôde respirar e nadar até a margem.

Não bastasse o susto e o acidente, preocupou-se imediatamente com a possibilidade de encontrar jacarés no lago, algo muito comum. Qual não foi sua satisfação ao observar dois caboclos remando pequena canoa em sua direção.

— Ei moço, a gente viu o avião descer no rio! Tem mais alguém lá embaixo?

— Não, não tem mais ninguém.

— É melhor assim. Venha para a canoa e vamos sair daqui, pois podem aparecer jacarés.

Parecia que alguém havia se antecipado aos fatos, providenciando tudo. Viram o avião cair. Seguiram na canoa até o local. Por fim, realizaram o resgate.

Os habitantes do lugar conduziram o piloto até a localidade de São Raimundo, às margens do Madeira, de onde foi possível prosseguir para Manicoré.

Já recuperado, Lourenço teve confirmada a sua suspeita. Havia vivenciado uma Experiência de Quase Morte – EQM. Agora já era mais de ouvir falar. Sabia que era bem real. Mais que isso, descobriu que de alguma forma, do outro lado, existem pessoas amigas que se importam com os homens e que de algum modo realizam o acompanhamento daquilo tudo o que se passa entre as pessoas.

Ainda que um pouco confuso, estava principalmente agradecido por tudo o que havia vivenciado. Daquilo nasceram-lhe duas certezas. Morrer não é o fim, e alguém haveria de cuidar de tudo aquilo, logo, Deus existe.

Lourenço voltaria a pilotar e tantas outras situações, algumas inesperadas, surgiriam. Outras simplesmente faziam parte da vida de quem cruza a grande floresta pelo ar. Novas histórias viriam, sendo que o episódio do lago, cujo relato, era convidado a fazê-lo, de quando em vez, jamais seria esquecido.

 

 

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