Por: Antonio Mata
— E aí, está vendo o que estou vendo?
— Sim, sem dúvida. Será hoje mesmo, eu já esperava; deixe que irei até ele, falta pouco.
De súbito, sentiu um ligeiro e curto deslizar por sobre as pernas. Queria deduzir a partir da pressão levemente sentida. Poderia ser várias coisas, e agora pensava no que teria provocado aquela pressão tão leve.
De todo modo, se tivesse provocado aquela mesma pressão na altura dos calcanhares, aí sim acreditava que teria um problema dos bons. Estaria completamente sem sensibilidade e às cegas.
Na medida que aqueles dois minutos avançavam, foi ficando cada vez mais evidente que ali estavam duas coisas. Havia dois eventos singulares e distintos.
Tudo acontecendo ao mesmo tempo, naquele mínimo espaço de tempo. Em dois minutos tudo se deu, tudo se completou em apenas dois minutos.
Quase uma sintonia, um encontro combinado, com ele mesmo posando de penetra da história, da feita que era o único ciente do imbróglio. Pior, era o único preocupado com ele.
Mentalmente praguejava e parava, praguejava e parava. O segredo sempre fora sustentar o silêncio. Há de se ter foco, a atenção de um monge, a visão de uma águia, a imobilidade de um perdigueiro; e a audição de um morcego.
Para fazê-lo, só se torna viável com uma mente tranquila; uma cabeça fria. Não aquela porcaria velha; burra e senil que ele achou de levar consigo. Vestígios da vida, não haverá outra.
Estava se sentindo um bagulho, um inútil, só em pensar nisso; pois, logo entendeu que o resto era mera consequência. Desatenção, desconcentração, distração; linguagem de perdição.
Estava se preocupando à-toa, foi então que se deu conta de algo por demais interessante. Notou que na realidade; ainda estava completamente estático.
A respiração se fazia leve; o cheiro era um só. Não estava traumatizado com coisa alguma. Estava tudo bem.
Logo, sendo assim, até uma cabeça burra consegue entender que apenas ele tem ciência do imbróglio. É o mesmo que assumir que ninguém mais sabe de nada.
Ninguém sabia da existência dele próprio. Mais que invisível; se fez ausente. Viu só, cabeça de cavalo. Sentiu-se promovido agora?
Sem os apupos de se considerar o dono da situação, procurou se acercar do cenário, sustentar a calma e entender que, se havia alguém em condições de estar ali; esse alguém era ele mesmo.
Foi quando pôde divisar, por entre a folhagem, uma sombra que se mexia, que se deslocava lentamente. Parecia estar apenas passando, cruzando aquele lugar. Acontecendo bem na visada.
Um andar cadenciado a pouco mais de trinta metros. Era ele mesmo, sem nenhuma sombra de dúvida. Onça-preta, distingui-lo por entre as sombras; não era coisa muito fácil.
Preferia uma nomenclatura mais pomposa. O pantera, é mais sonoro; tem a pompa e a circunstância para um senhor das matas e das montanhas das Américas. Aquilo sim; era um nome espetacular. Assim acreditava o caçador; com a sua cultura de almanaque.
Espreitou o bicho paciente e zelosamente. Percorreu aquela região em várias outras ocasiões. Conhecia bem aquelas bandas. Foi meticuloso no planejamento daquele grande encontro.
Sabia de uns poucos relatos; aquelas coisas de se ouvir dizer. Mesmo estes poucos relatos falavam do bicho preto, que impunha medo e respeito aos homens do lugar.
Eventualmente algum caçador local, aparecia com aquela história de que um homem teria sido subjugado pela fera, quebrando-lhe o pescoço e destruindo a garganta.
Fazia tanto sentido. O que fazer com uma garganta intacta se o pescoço estiver partido?
O corpo sem vida teria sido puxado para o alto de uma árvore, tal e qual um troféu sinistro para ser devorado. Domínio de um caçador por excelência, nascido para caçar; para matar.
— Alguém achou a ossada, ou pelo menos parte dela? O fêmur de uma perna; um braço mesmo que em pedaços? Ossos humanos, alguém viu, encontrou?
Perguntava, não por sarcasmo, mas por objetividade. Seriam indicações claras de que o bicho estaria no lugar, e por alguma razão; atacando os homens. Aí, só um caçador resolve, pensava consigo mesmo, todo cheio.
— Pra dizer a verdade pro senhor; osso eu nunca vi e nem nunca ouvi falar. Só da história que o povo conta. Dizia um morador de um pequeno aglomerado de palafitas pouco distante, que havia se apresentado como guia, quando ainda não conhecia aquelas paragens.
Mais persistentes eram as histórias de avistamento. Caçadores das redondezas que narravam encontros fortuitos com a onça- preta, e que tratavam de se afastar. Então o bicho existia; só não queriam encarar o pantera.
Não era covardia, era respeito. Sendo assim, a história de homens sendo caçados, tinha tudo para ser muito menos que folclore; simples boatos.
Perdera o mote do cinema; daquelas histórias de sucesso. Grande caçador salva o vilarejo da beira do rio de um perigo aterrorizante.
Tá bom, chega de evocar bobagem. A história existiu, só que foi na África, no Quênia, nos idos do império britânico; em 1898. E não era uma onça, nem jaguar.
Era um leão, grande, bonito e soberbo. Na realidade dois; o maior só morreu no final do filme. Mais hollywoodiano que isso, impossível.
Persistia ainda o desejo de alvejá-lo. Trazer o troféu para a cidade e fotografá-lo, para mostrar aos amigos; aos filhos e aos netos. Ainda que a família mesmo; abominasse aquilo tudo.
Estava fora do tempo e fora da moda. Defendia valores para os quais ninguém ligava mais. Chamam isso de alienação.
Já não mais importava, havia espreitado o animal grandioso, e lá estava o bicho diante dele, no campo de caça. Tudo conspirou para a realização daquele encontro. Menos uma coisa inesperada, que aconteceu de repente.
A pressão leve que sentira nas pernas, não deixava nenhuma dúvida. Uma cobra, rastejante, fria e asquerosa, havia se acomodado por entre suas pernas. Deve ter achado confortavelmente quente; e se ajeitou.
Na outra ponta do imbróglio, do evento singular, estava uma figura negra parecendo muito grande. Não só pelo fato de que era enorme.
Também porque estava a poucas dezenas de metros de distância. Com a alça e massa de mira; postas bem no seu peito. Era só o trabalho de puxar lentamente o gatilho.
Se atirasse, o estrondo iria perturbar a cobra, que ainda não se sabia qual era. Se deixasse o pantera circulando, perderia o melhor momento de tiro.
O animal poderia se aproximar mais ainda. Então, decidiu aguardar. O que quer que tivesse de acontecer, seria naquele mínimo intervalo de tempo.
Foi vinte segundos de muita imobilidade, silêncio e angústia. Depois de dez segundos, a serpente se movimentou e simplesmente saiu de entre suas pernas.
Completou o cruzamento da esquerda para a direita. Saiu, deve ter se afastado; pensou. Já não sentia mais nada.
Aquele foi o momento em que o caçador voltou à cena. Estava livre, e o alvo, belo e nítido na sua frente. Não tinha percebido ainda a presença do homem.
É atirar e estará tudo acabado. Concentrou-se no animal, que deteve o seu movimento. Estava ao total alcance do caçador, e estático.
Só aguardava a mente dar a ordem; e os segundos avançavam. Nesse ínterim, o pantera-negra dobrou à sua direita e foi embora. Ele não atirou, e muito menos o encontro mortal se consumou. Nem o caçador invisível, ausente; acreditava naquilo.
Com o pantera se afastando, levantou-se de seu esconderijo, de sua posição de tiro muito bem camuflada. Estava pensando naquela decisão inusitada, incomum que havia tomado, e olhando na direção do pantera.
Quando ao se abaixar para pegar a capa de camuflagem, inadvertidamente pressionou um bicho fino, logo junto ao chão, que instintivamente o picou.
Aquele bicho fino; pequeno; comprido e arredondado delineava talvez, a pior coisa que poderia ter lhe acontecido. Uma cobra- coral, que logo descobriu se tratar de uma coral verdadeira. Esteve detido por ela, nos dois minutos mais fatídicos de sua existência.
Por conta dela, tomou decisões lógicas e coerentes para com a situação. Por causa dela pôs à prova sua atenção; seu silêncio; imobilidade; audição; visão e sua coragem.
Quando acreditava que estava tudo superado, tocou levemente com a mão direita por sobre a serpente. Foi lastimável; ainda mais por saber que tinha feito tudo certo.
As neurotoxinas estavam no seu organismo, na corrente do sangue. O melhor procedimento era apostar na sua compleição física e caminhar na direção do grande rio.
De lá, retomar a canoa e descer até os caboclos que viviam nas palafitas. Tinha até 24 horas para ir a óbito. Mas, poderia acontecer a qualquer momento.
É onde poderia ouvir dizer que teriam de colocá-lo em uma rabeta para chegar à cidade mais próxima. O veneno paralisa os músculos do corpo, e com o diafragma paralisado, o sufocamento pela incapacidade de fazer o ar entrar nos pulmões. O caçador sabia de tudo isso.
Com a visão turva e os passos cambaleantes, conseguiu chegar na canoa. Reuniu as forças que pareciam fugir de seu corpo, a empurrou sobre o rio e se jogou dentro. Ele e Deus, o Deus de todos nós, de todas as coisas; descem o rio.
Duas horas depois, deitado na canoa que descia o rio lentamente, o braço, de pele branca, curtida pelo sol; meio para fora. Foi avistado por pescadores que o levaram para a pequena comunidade ribeirinha.
Levá-lo para a cidade mais próxima. Era o que se podia fazer. Foi baldeado de uma canoa para outra, e a pequena rabeta retomou a descida do grande rio. Quando chegaram ao destino, o caçador já estava morto.
Permaneceu dentro da canoa. Estava sentado, prestando atenção nas pessoas e no sujeito deitado com o rosto virado para o outro lado; que eles estavam conduzindo. Morreu cinco horas após o acidente.
Quando chegaram na cidade, com o vozerio dos homens pedindo ajuda para socorrer o homem picado de cobra, é que viraram o corpo. Estavam retirando o corpo da canoa, quando pôde então, dar uma boa olhada naquele rosto.
Corpo, rosto, roupas; tudo tão familiar. Era desastrado, falho na atenção; mas não era burro. O sujeito retirado da canoa era ele mesmo; não havia nenhuma sombra de dúvida.
— Diogo, vem comigo, tem mais pessoas esperando por você.
Diogo olhou para o homem que surgiu bem ao seu lado e meio sem entender, perguntou:
— Quem é você, e o que faz aqui? E ainda vestido desse jeito, todo de branco no meio do rio, no meio do mato. Você tá perdido? É médico? Indagava Diogo, de senho franzido, ao seu interlocutor.
— Não Diogo, não estou perdido e sou apenas um amigo. Existe uma coisa que gostaria de ouvir de você. Posso lhe fazer uma pergunta?
— Ainda não estou entendendo nada, mas; pode perguntar.
— É uma questão muito simples, e muito relevante também. Por que você não atirou no Pantera? Estava em uma posição ótima de tiro; a serpente já havia se afastado. Por que não o fez?
O caçador pensou por alguns instantes, e finalmente respondeu:
— Eu não pude. Ele era tão majestoso, tão lindo. Estava diante do senhor das matas. Não pude fazer isso. Deixaria que ele se afastasse e então iria embora. Só isso, nada mais.
— Se você tivesse atirado no senhor da atenção, não haveria ninguém para lhe buscar Diogo, e você passaria muitos anos vagando sem rumo por estas matas. Até mesmo encontrando pelas trilhas; outros tantos fazendo a mesma coisa. Explicava o homem desconhecido. Diogo, de boca aberta, perguntou:
— Tem gente lá, no meio da selva?
— Muito mais do que você imagina. São índios, muitos índios. Aqui é a terra deles esqueceu? Então, prosseguiu:
— Mas tem também caboclos que vivem e morrem aqui, e têm afinidade e amor para a com a floresta. Tem ainda aqueles caboclos que se perderam e estão vagando. Igualmente, existem caçadores, forasteiros, garimpeiros, pilotos, traficantes, exploradores da floresta, matadores de índios, aliciadores e sequestradores de meninas para a prostituição nos garimpos. O visitante parou um momento, e depois prosseguiu.
— Estão todos vagando pela floresta sem saber por que Diogo. No fundo, sabem sim, só fazem de conta que não entendem, dando uma satisfação às suas consciências pesadas. Para aqueles que aqui habitam, a floresta é o lar. Para estes tantos outros que só a exploram, e à sua gente, é a sucursal do inferno.
— No seu caso Diogo, ao respeitar o belo pantera, você permitiu que ele continuasse aplicando suas lições de precaução e atenção. Por abandonar conscientemente sua própria índole de caçador, no momento crítico, respeitando a Criação Divina; resolvemos vir buscá-lo. Diogo ouvia sem dar um pio.
— Devo acrescentar que você também foi bom pai e amava sua mulher. Então, você tem seus méritos. Na contabilidade Divina tudo tem valor Diogo. Meu nome é Heitor, e lhe acompanho já tem algum tempo. Então completou:
— Mais que isso Diogo, gostaríamos de convidá-lo para outra coisa; mas isto já é também, outra história. Existem alguns cuidados que você precisa receber. Vamos que existem algumas pessoas esperando por você. Lembra do Agostinho? Indagava o recém-chegado Heitor, enquanto caminhavam pela mata.
— Claro que lembro, um grande amigo não se esquece. A gente caçava junto.
— Lembra do Saul?
— Tá falando sério? Mas, tá falando sério mesmo?
Entre sorrisos e lembranças, Diogo obteve sua resposta.
— É claro que sim, é ele mesmo; seu pai. Ele está lhe aguardando. Fica tranquilo Diogo, está tudo bem. Isto foi há muito tempo; mas eu também já fui caçador.