Menu

terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Estes são os dias

                                                                            

                                                                                                                                           Foto: uniquedesign52

Por: Antonio Mata

A tela no painel do carro mostrava uma antiga canção. Foi o suficiente para conduzir-se a outros tempos na memória. A vitrola tocando aquele disco, enquanto se escrevia a letra no quadro.

Ela nunca escrevia a tradução toda, apenas tocava o disco, mostrava a letra e então insistia para que acompanhássemos o significado das palavras novas, encaixando-as no contexto da letra. Estas sim, as novas, eram escritas com a tradução ao lado. Depois repetia tudo, e colocava o compacto a tocar novamente.

          Why does the sun go on shining?

          Why does the sea rush to shore?

          Don’t They know it’s the end of the world?

          Cause you don’t love me any more...

Guardou a letra na memória. Achou graça, sozinho dentro do carro. Vera Lúcia era eficiente naquilo que fazia. O vídeo seguinte dava conta de algo que havia acontecido, só não sabia onde. Parado no semáforo, descobriu que era episódio recente, do dia, e lá em Minas. Um paredão rochoso havia caído em cima de pessoas que, dentro de pequenas embarcações, passeavam no lugar. Era uma atração turística. Desligou o aparelho, retomando a marcha em seguida.

Sem outra coisa em que pensar, Skeeter Davis voltou a cantar em sua mente. Refusou na memória por alguns instantes, só para se dar conta de que naqueles anos todos, nunca soube de outra coisa que Skeeter tivesse gravado, só conhecia “The end of the World”. Se gravou novamente, não sabia. Nem Vera Lúcia voltou a mostrar outra música sua.

       Why do the birds go on singing?

       Why do the stars glow above?

       Don’t they know it’s the end of the world?

       It ended when I lost your love

Já em casa, dentro da garagem, pôde rever as cenas dramáticas do Capitólio. O paredão começava a soltar fragmentos lentamente, um pedaço aqui, outro mais adiante. Inicia-se uma gritaria. Eram pessoas alertando para que os barcos saíssem dali. A bizarrice toda, é que aparentemente, não se importaram muito com o alerta, ou os pilotos das embarcações, talvez por estarem acostumados a conduzir seus barcos no lugar, também não ofereceram maior atenção. Alguém então, haveria de dizer de maneira sarcástica, “faz parte”.

Paralisou a imagem, cruzou os braços e queria pensar sobre o que viu. Bastou relaxar por alguns instantes, e ato contínuo, Skeeter voltou, misturando sua canção com as imagens do vídeo, como quem reedita mentalmente aquilo tudo.

       I wake-up in the morning, and I wonder

       Why everything’s the same as it was

       I can’t understand, no, I can’t understand

       How life goes on the way it does

Entrou em casa, e na sala as pessoas assistiam tv. As imagens mostravam inundações por todo país. Enchentes haviam tomado conta de várias cidades, em um fenômeno que parecia generalizado. Era Tocantins, Bahia, Pará, Minas. A lista vai parar, outras cidades em outros estados ainda vão inundar?

Inundações não constituem novidade, não aqui. A impressão que lhe chegou, é que parecia generalizar-se. Isto sim pareceu preocupante. Pessoas agarradas em automóveis, seguiam no meio da corredeira, acreditando poder salvar seu veículo. É lógico que isto não faz sentido, além de ser abertamente perigoso. Em um cenário destes, há quem considere o carro mais importante que a própria vida, tamanho o apego.

Foi tratar de tomar um banho, enquanto aquelas imagens, agora da tv, criavam outro desassossego, daqueles que poderiam estar em qualquer lugar. Não ligou nem um pouco quando Skeeter retornou com a sua canção.

A professora tinha concluído a primeira parte da aula. Havia posto seu compacto para tocar, havia transcrito a letra no quadro negro, também apresentara as palavras desconhecidas. Colocou o disquinho para tocar mais uma vez, acompanhando no quadro, palavra por palavra.

Agora chegava-se na parte mais sacal, transformar uma musiquinha chata, em um exercício chato. Avisar que aquilo valia nota, e que era preciso que todos fizessem. E nem de inglês gostava. Se pegou pensando em quantas vezes guardou reminiscências de coisas que não gostava de fazer.

       Why does my heart go on beating?

       How do these eyes of mine cry?

       Don’t They know it’s the end of the world?

       It ended when you said, “Good bye”

No quarto atirou-se sobre a cama, com o celular fazendo aquele som característico de recebimento de mensagens. Um amigo achou bonito, ou por puro masoquismo, quis lhe passar imagens de uma tempestade. Com ventos intensos, a chuva parecia  cair na horizontal, sem tocar o chão, mas que tombou árvores, derrubou muros, desmontou telhados e arrancou os fios da rede elétrica na cidade inteira.

Havia ocorrido na sua própria cidade, e lhe deixou de lembrança a garagem destelhada, parte do telhado da casa, danificado, e até o dia seguinte, ficaram sem energia. Aconteceu fazia três dias, mas aqueles videozinhos de celular continuavam chegando.

Acha melhor desligar aquele negócio e tirar um cochilo, antes que alguém o chamasse por alguma razão. Também não queria, não estava mais interessado em pensar em coisa alguma. Simplesmente fechou os olhos e se desligou por alguns instantes.

Sucesso instantâneo no hitparade de suas lembranças, já que naquele momento não conseguia lembrar de outra coisa, nem se importou quando aquela vozinha retornou com a mesma melodia, desde o início da manhã. Aceitou sem maior esforço a melodia embalando os episódios recentes, e já nem achava tão chata assim.

É bem verdade que foi arrastado, com seu pai abismado com aquele feito, indicativo de uma mediocridade intelectual que nem ele próprio compreendia direito.

— Cinco, Nelson, só cinco? Dizia seu pai, sem acreditar no que via naquele boletim desprovido de moral.

Sabia que estava sob grande risco, mas agora, depois que tudo passou, reconhecia ter feito a coisa certa.

— Eu sei pai, mas olha, eu vou me esforçar mais. Veja que foi só em inglês, pai. Todo o resto tá legal, a menor nota foi seis e meio. Quer dizer, a segunda menor nota.

— Seis e meio, em matemática, Nelson? Vai criar vergonha Nelson!

— Tá bom pai, eu sei, o senhor tem razão (o segredo é dar razão, e encerrar aquela conversa bem rápido). E tratou de concluir.

— Mas eu passei de ano pai! No ano que vem, vai ser melhor.

Falou aquilo por pura ingenuidade, a matemática da sétima série do ginasial, como logo descobriria, era uma verdadeira armadilha, repleta de uma álgebra por todos os lados. Mas tudo bem, ainda que acuado por seu pai, Nelson concluiria a matemática da sétima série, com um honroso sete, de média final.

Aos setenta e três anos, tudo não passa de meras lembranças, fazendo rir de si mesmo e das preocupações e justificativas de um tempo que já vai longe.

Sobreviveu às aulas de inglês e matemática. Também já fazia um bom tempo que havia se aposentado depois ter sido engenheiro de uma multinacional, o que o fazia viajar a serviço para o exterior com certa frequência. Acabou que uma coisa tinha muito pouco a ver com a outra.

Daqueles idos, o que guardou de verdade foi a lembrança de uma moça bonita, de vinte dois anos, olhos e cabelos castanhos, que dava aulas naquela escola. Detestava inglês, que acabou tendo que aprender, mas a moça, a perdoaria sempre.

Quanto a canção, cumpriu o seu papel de moldura da vida.

          ...         

          Don’t They know it’s the end of the world?

          It ended when you said, “Good bye”

A aula terminou e o compacto parou de tocar.

Go Back

Comment

Blog Search

Comments