Fonte: Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
Circulavam livremente pelos mares, dando preferência às águas mais rasas e mais quentes. Percorriam as praias saltitando e dando mergulhos, na altura da arrebentação.
Havia peixes em cardume que, de tempos em tempos, se acumulavam na faixa costeira. Momento de fartura, bom motivo para se estar ali.
Viam-se empurrados por um instinto muito forte, sobre o qual pouco podiam fazer, a não ser atendê-lo. Assim, vez por outra adentravam a foz dos rios, subindo pelo canal através daquela água insípida, tão diferente da habitual. Estas incursões estavam se tornando cada vez mais frequentes.
Não era só isso. Por mais que o tempo passasse, se ajeitavam por entre as águas por demais rasas, verdadeiras poças, muito pouco ligando para as águas profundas ao redor.
Muito contribuía para este comportamento estranho, o fato de não encontrarem nada nem ninguém, que de imediato pudesse afugentá-los ou oferecer perigo. Não naquele momento de descoberta.
Não que gostassem particularmente daquela poça d’água. Logo ficou evidente que seus interesses estavam mais além.
Foi quando certa vez, em um apupo de coragem, subiram à terra e empurraram seus corpos com aqueles membros, ainda meio frágeis para absorver todo aquele esforço, porém, em um dado momento era inegável que seriam úteis para deslocar seus corpos sobre a terra.
Estavam avançando em terra, em deslocamentos cada vez maiores, que por vez robusteciam aqueles novos membros, que para alguns pareciam anacrônicos e meio que sem utilidade.
Seria por pouco tempo. Plantas rasteiras, o calor da terra, os arbustos ao redor, tudo era novidade e motivo para mais explorações.
Não demorou grande coisa para que resolvessem apreciar certas folhas suculentas que apareciam pelo caminho, atraídos pelo sabor diferente e desconhecido. Um sempre seguia o outro na busca de novas explorações, novos alimentos e novos sabores.
Com o tempo, passariam a procurar estas áreas mais verdejantes. A restrição consistia em ter por perto uma fonte de água. Ainda buscavam a vida nos rios e mares, na busca de peixes e do frescor das águas. Não se davam conta do que estava acontecendo.
O fato é que de mergulho em mergulho, estes foram se tornando cada vez mais raros, menos interessantes. Passariam a voltar somente para beber água.
O passo seguinte foi mera consequência do primeiro. Mais uma vez, empurrados pelo instinto, adentraram cada vez mais aquelas terras, perdendo contato com o litoral e as áreas próximas a foz dos rios.
Enquanto alguns subiam os rios, ainda a nado, outros o faziam margeando os canais e se deslocando pelos canais menores, cada vez mais para o interior.
Ao longe se delineavam planícies e o sopé das montanhas. Tudo o que necessitavam era de um canal, um rio que nascesse naquelas bandas. Este rio era avidamente procurado. O rio que os levaria às terras mais distantes.
Ainda não se objetava de se escalar os grandes paredões que se viam ao longe. Porém, isto viria com o tempo.
Havia um certo frenesi no ar. Não cruzavam as terras por uma questão de sobrevivência. Cruzavam, pois queriam saber o que havia mais adiante. Em certo momento, de estômagos cheios, puseram-se a dormir.
Lá pelas tantas, veem-se admirando bela paisagem que se abria por entre aquelas paragens. Cores, aromas, sons e frescor, lhes tocavam os sentidos. O convite aberto para um mundo bom, benfazejo e paradisíaco.
É quando alguém, inesperadamente dirige a palavra a um deles.
— E então, o que acha desta grande criação?
Olhando espantado, pouco consegue entender.
— Quem são vocês? O que fazem aqui?
— Somos viajantes do tempo. Eu sou o Futuro, e este é meu amigo fiel, Vir a Ser.
— O que vocês querem?
— Apenas mostrar o que virá. A explosão da vida, nos céus, nas terras e nos mares.
— E depois?
— Bem, permitir que povoem todos estes espaços.
— E depois?
— Adquirir conhecimentos a respeito das coisas.
— E depois?
— Aprender a fazer coisas.
— E depois?
— Utilizar o fogo, cozinhar, assar, queimar, transformar.
— E depois?
— Fazer objetos úteis, ferramentas, várias coisas.
— E depois?
— Ora, organizar a vida em grupos, criar povos, crescer, criar cidades.
— E depois?
— Depois fazer as cidades crescerem, espalhar muitas cidades pela terra.
— Ah! E depois?
— Depois descobrir a pólvora.
— O que é pólvora?
— Ora, uma coisa que quando se põe fogo, ela explode.
— Explode como?
— Ora, explode..., explode..., espalhando as rochas, as pedras, e às vezes, explode com todo mundo, com as pessoas...
— O que é todo mundo? O que são pessoas?
— Ora, são seres que nascem, crescem, e vivem fazendo estas coisas, cada vez melhor...
— Ah, agora eu entendi!
— Não é fantástico, grandioso?
— É sim, mas olha, tem uma coisa. E se a pólvora explodir?
— Bem, se explodir vai quebrar algumas coisas.
— Às vezes aqui, fica um querendo morder o outro.
— Mas isso é normal, vocês são animais irracionais, ainda têm muito o que aprender.
— Entendi. E se um explodir o outro?
— Isto não foi feito para explodir o outro.
— E se o fogo queimar tudo?
— Pare com isso, o fogo não vai queimar tudo!
— E se depois de explodir e queimar, sujar a água?
— Ninguém vai sujar água nenhuma! Quer dizer, nem tanto assim...
— E se depois do fogo e da explosão sujarem o ar nos céus?
— Não se suja o ar assim! Não é assim que acontece!
— E se depois de sujar a terra e o ar, resolverem sujar o mar, o grande oceano?
— Pare com isso! Eu sou o Futuro, e ninguém vai sujar o mar e nem oceano nenhum!
Um dos tetrápodes dá um salto.
— Ei, você acorda, acorda!
De olhos arregalados em meio a cara de sono, não entende nada.
— O que foi, para quê essa gritaria toda? Tetrápodes também precisam dormir, sabia?
— O sonho, acorda, é fria, é roubada! Vamos embora, fomos enganados! Depressa, vamos voltar para o mar, tem que avisar todo mundo! Esse negócio de viver na terra é roubada!
— Ah! Bem que eu estava sentindo saudade do meu brejozinho, de uma lagoa, uma beira de rio...
— Brejozinho nada, lá vão te pegar, corra para o mar e se esconda bem fundo, onde ninguém te encontre!
O futuro se aborreceu.
— Deixem de gritaria, qual o motivo de escândalo? Há um futuro grandioso para quem vive na terra. Eu sou o Futuro!
Indignado, o Futuro perdeu a pose e jogou pesado.
— Vou fazê-los voltar!
— Não vai não!
— Vou sim, vou sim!
— Não vai não!
— Vou sim, seu anfibiozinho sem definição!
— Pois vá fazer o futuro dos insetos, o meu não! Vade retro, se afaste! Corre, vamos embora, corre!
Numa correria enlouquecida, que lembraria um jacaré, se já existisse, tomaram o rumo das praias, de onde um dia tinham saído. Hiato na história natural, viés evolutivo que ninguém mais irá contar.
O Futuro, à beira da desesperança, ainda insistia.
— Não sejam estúpidos, esperem vai ser bom para vocês!
— Estamos dispensando! Procure alguém com orelhas grandes, quatro patas e quatro cascos.
Foi o último brado que ecoou pelo ar rarefeito daquele mundo diferente, onde cada um lutava pelo seu lugar e por suas preferências. Quem sabe um dia, um oceano congestionado faça-os mudar de ideia. Saltaram nas ondas, cruzaram a arrebentação, ganhando as águas do mar aberto mais uma vez.
Vir a Ser, amigo inseparável do futuro, era quem indagava.
— E agora, o que vamos fazer?
O Futuro, ainda cabisbaixo, responde.
— Bom, teremos que começar tudo de novo.
— Ei, Futuro, o que há de errado em ter orelhas grandes, quatro patas e quatro cascos?
— Realmente não sei. Nem sempre é fácil entender esses animais. É preciso paciência e tempo, muito tempo.
Talvez possa ser uma chave, algum significado evolutivo que ainda se encontra oculto.
— Para onde iremos agora?
O Futuro pensa um pouco.
— Soube de um planeta azul, não muito longe daqui. Vamos até lá, e então começaremos tudo de novo.
— Vai buscar o significado da chave oculta?
Perguntou Vir a Ser.
— Vamos sim, talvez possa dar certo.
E assim o Futuro e Vir a Ser, foram em busca dos grandes cenários da evolução e da chave oculta da vida, que decifre e ordene o desenvolvimento de todos os seres.
Quem sabe um dia, um paleontólogo, perdido por aquelas paragens, em um mundo desconhecido, ao analisar a sucessão das camadas rochosas, possa identificar esta ambiguidade.
Um dia os tetrápodes ganharam a terra, lá estava o registro. Depois os registros desapareceram de repente. Evoluíram e se transformaram em outra espécie? Sensacional, mas, como explicar aqueles tetrápodes de volta ao mar nas camadas mais recentes? Tá bom, vida de paleontólogos perdidos no espaço é assim mesmo. Uma no cravo, outra no dedo.
Quanto ao Futuro e Vir a Ser, caso você os encontre, tenha cuidado. Aprenda a compreender e a delinear a sua própria linha do tempo, ainda que minimamente, de modo a definir da melhor forma possível o seu próprio futuro.
Assim não terá que esperar que façam isto por você. Veja que o futuro, se for por demais incerto, pode muito bem não ser aquilo que você estava esperando.