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                                                                                                                     Imagem:  Stan Shebs por Wikimedia Commons

Por: Antonio Mata

As águas calmas cobriam mais de 8km de extensão. O canal se abria de 70 a até 150 metros de largura, sendo que na porção interna, na cheia do rio, mais 400 metros de terra adentro se tornavam inundáveis, mantendo vistoso igapó. Isto trazia mais alimentos para a dieta dos peixes do lugar.

Na ótica simples de seus habitantes, o nível das águas definia a vida e a fartura do lugar, localizados que estavam naquele pedaço de paraíso. Daí o desejo inerente de querer ficar. Ali nada haveria de lhes comprometer a paz, por conta da ordem das coisas, que era simples e eficiente. Água fresca e comida para todos.

Era de fato um lago, represado a partir de um dique marginal que margeava o rio maior. A ação das cheias do rio conduzia a vida no lago, alagando o igapó todos os anos, até que as águas baixassem lentamente nos períodos de maior estiagem.

As macacarecuias cresciam sossegadas, mesmo que recebessem água até a altura de um prédio de três andares. De todo modo, restavam mais de 25 metros fora d’água. Aves diversas aproveitavam para se instalar no seu condomínio sobre as águas.

As ciganas faziam seus ninhos mais próximos da água. As araras-vermelhas se acomodavam nos andares mais altos das copas das árvores, transformando o dossel em uma espécie de condomínio horizontal, só que muito elevado.

As revoadas de fim de tarde atestavam a beleza destas aves e de seu condomínio nas alturas. Aquelas moradias ditas, de cobertura. As choca-pretas faziam seus ninhos logo abaixo. Eram os vizinhos do andar do meio.

Nos galhos próximos ao lago, o bicho-preguiça deixava a moleza de lado, mergulhava nas águas e nadava ligeiro em busca de comida, voltando a subir na sua árvore em seguida.

Um morador se apresentava de modo exclusivo. Ocupava a árvore, como se o condomínio fosse só para ele, espantando os demais, que tratavam de arranjar outra moradia. Afinal, uma onça-pintada não haveria de ser o melhor dos vizinhos.

Ante a presença da onça, nem o jacuruxi haveria de se arriscar, com o lagarto saltando rapidamente no lago e sumindo dali o mais rápido possível, indo fuçar seus caramujos em outro lugar.

O lago comprido e o seu igapó pululavam de vida. Apesar dos conflitos naturais da vida, havia equilíbrio entre os seres e os dias prosseguiam calma e preguiçosamente, como se aquilo jamais pudesse acabar, de tão bom que era, acreditavam assim os moradores do lugar.

No entanto, a floresta viva não é uma paisagem estática, nem uma sucessão de cenários preestabelecidos para criar daí a sua harmonia. A floresta é complexa e dinâmica. Então, em um dia qualquer, sem ninguém para avisar, um novo inquilino se apresentou. Este, não vinha sozinho.

— Vi um bicho diferente, lá embaixo no lago. Um bicho novo e grande. O que tem de comprido, tem de gordo e casca grossa. Acho melhor alguém ir até lá averiguar e contar para os demais.

A cigana, tinha lá suas razões para estar preocupada com aquele recém-chegado. Com seu ninho próximo das águas, se sentia mais vulnerável que os outros.

A arara-vermelha expôs suas preocupações.

— Não seria melhor que os outros fossem até lá, verificassem tudo, descobrissem do que se trata e voltassem para nos dizer?

— Se quiser saber das fofocas rápido, contrate um macaco-prego. Costumam se meter em tudo. Aí ele vem e te conta. — A ideia oferecida pela preguiça, parecia sensata, pois haviam muitos macacos disponíveis.

Decidido quem faria a observação mais de perto, o macaco-prego se adiantou e, se ocultando na vegetação, prestava atenção naquele bicho monstro.

Não demorou muito para entender que era um ou dois indivíduos. Não era não. Contou errado umas três ou quatro vezes, mas tirando uma média, Prego chegou à conclusão de que devia ter chegado por ali, umas três dúzias de jacarés.

— A cabeça some e aparece, some e aparece. Como é que por vou contar desse jeito? — A questão era clara e objetiva. Se esperava outras cabeças aparecerem. Se contava quando uma mesma cabeça surgia, ou se contava só quando apareciam várias cabeças, o critério de contagem, Prego não falou para ninguém. Até porque, ninguém perguntou nada mesmo. Contudo, foi bafejado pela sorte.

Os bichos estavam se amontoando em uma praia, mais para a extremidade do canal. Agora dava para ver as fileiras, quando não, os amontoados de jacarés. Pôde ver também uma dezena de Jaburus, calmamente passeando entre os jacarés, à busca de insetos, parasitas e um e outro peixe pequeno que tenha passado despercebido no lugar. Aproximou-se de uma moita e buscava chamar a atenção de um dos jaburus.

— Ei, ei, ei, ei. Aí você, aí você!

O jaburu virou-se.

— Eu?

— Sim você, é você.

— O que você quer?

— Não tem medo de ficar no meio dos monstros?

— Por quê?

— Ora, podem comer vocês todos a qualquer momento.

— Por quê?

— Ora, são monstros famintos. Comem de tudo e atacam os demais.

— Por quê?

— Agora entendi porque que te chamam de cabeça-seca. Tá, deixa pra lá.

— O que está acontecendo aí jaburu, com quem você está falando? — Um dos jacarés próximos se incomodou com aquele cochicho todo.

— É um macaco que encontrou monstros, só não sei onde foi.

— Não ligue para isso. Se puder catar mais algumas moscas, eu agradeço. Estas sim, estão enchendo a paciência.

O pernalta e bicudo jaburu retornou para perto dos jacarés e foi tratar de comer suas moscas, o que aliás, era o seu maior interesse junto aos jacarés.

Cumprida a sua missão, Prego retornou para junto dos demais, apresentando o que havia descoberto.

— Os monstros não são perigosos. Na verdade, são jacarés. Ficam sossegados na praia, com um grupo de Jaburus, os cabeças-secas, passeando em torno deles e nada acontece. Eles não atacam. Acho que essa história de monstro não existe não. Na certa, deve ter saído de alguém que tenha a cabeça mais seca que os próprios Jaburus.

Ante o depoimento de Prego, o receio de que o grande lago estivesse sendo invadido por monstros perigosos, foi aos poucos diminuindo. Então, os demais animais, tomados de coragem, decidiram se dirigir à praia dos jacarés.

Uma fileira de ciganas, choca-pretas, preguiças e jacuruxis avançava até a praia. Queriam dar as boas-vindas aos novos moradores do lugar. A onça-pintada, só por pura curiosidade, acompanhava, à meia distância o pequeno cortejo.

Pararam a uns três metros do amontoado de jacarés.

— Como vão todos vocês? Viemos dar as boas-vindas. — Assim dizia a cigana aos jacarés.

Olhavam uns para os outros, sendo que ninguém dizia nada. Tornaram a se aproximar, ficando cara a cara todos os animais. Também nada aconteceu.

Alguns jaburus permaneciam caminhando por entre os jacarés. Vendo aquilo e entusiasmados com a iniciativa, a comitiva de animais adentrou a beira do rio, em meio aos jacarés. Bastou estarem cercados de jacarés para que a resposta surgisse.

— Então, vejo que vocês querem dar as boas-vindas aos jacarés, não é? Pois bem, chegamos para tomar conta do lago! Deu para entender? — E partiram para cima dos demais animais.

A onça-pintada, vendo aquilo, resolveu intervir.

— Se comem todos os outros e eu, como é que eu fico? — Saltou capturando e abocanhando pelas costas alguns jacarés que atirava pra o alto, como se fossem de pelúcia.

Contudo, a confusão já estava formada, com vários animais sendo mortos na refrega dentro do rio.

— Agora não tem mais jeito. Só respeitam a onça-pintada e são muitos. Perdemos o nosso lago e o nosso sossego.

O jacuruxi, já sem a cauda, pois havia sido arrancada, lamentava a sorte dos moradores do lago e do igapó.

— Vão ter muitos filhotes aqui, pois encontraram muita comida. Eles vão crescer para cima de nós. A onça, sozinha, não vai dar conta de tantos invasores.

De cabeça baixa, os demais compreenderam o lamento do jacuruxi. Só a eles restava torcer que o crescimento da população de jacarés pudesse se deter em algum momento, por alguma circunstância desconhecida. Caso contrário, os animais estariam todos sob risco.

Nova temporada de chuvas intensas nas cabeceiras dos rios. Logo a seguir, o volume de águas torna a subir. A praia dos jacarés foi inundada até desaparecer por completo.

Entretanto, o igapó, repleto de sementes e frutos novos, tornou-se acessível a muitos peixes. Tambaquis, matrinxãs, e piratiningas, circulavam livremente pela selva inundada. Porém, o perigo representado pelos jacarés era constante.

Ainda que o tempo passasse, a situação geral não oferecia mudanças. Até que um dia, por conta da abertura de um furo, novos visitantes surgiram no, agora canal. Chegaram sem alarde e quase não foram percebidos. Não fosse por um sutil detalhe que fez com que os demais deduzissem o que estava acontecendo.

É que vez ou outra, aparecia um jacaré, mesmo dos grandes, boiando de peito para cima, na beira do canal. Novo ciclo das águas se seguiu. O furo fechou, o igapó baixou suas águas e o canal voltou a se comportar como um lago.

A diferença é que a apreensão e o medo, agora tirava o sossego dos jacarés. Com os mesmos receios e preocupações, antes vividas pelos outros animais.

— Alguma coisa deu errado. Antes só havia a onça a nos espreitar no banho de sol, principalmente na praia. Agora existe alguma coisa, algum bicho do tinhoso, atuando dentro do próprio lago.

O comentário de um dos jacarés não deixava dúvidas. Alguém havia invadido o lago. E não tinha medo de jacarés.

— Sugiro que formemos patrulhas. Vamos palmilhar cada pedaço do lago até encontrarmos o monstro e ao localizarmos, vamos devorá-los de uma vez por todas!

Entre urros e palavras de apoio, partiram para organizar as patrulhas, de modo a cobrir todo o lago em um rastreio rápido e seguro. Conforme previsto, o monstro apareceu.

— Eu vi, é uma espécie de cobra.

— Acho que é algum tipo de peixe. Um peixe comprido e diferente.

— Uma serpente desconhecida. Metade cobra, metade peixe e que não tem medo de jacarés.

— Seja o que for, mande avisar que encontramos o bicho e que vamos liquidá-lo aqui mesmo. Não me pareceu nem tão grande, nem assustador.

Decididos, avançaram na direção do monstro, até perceberem que não era apenas um, mas dois monstros.

— Não importa, vamos limpar o lago. Mataremos os dois.

Com as bocarras enormes investiram contra os monstros do rio, logo ali na frente, procurando abocanhar os dois.

Quando fizeram menção de morder os monstros, como que por encanto, ficaram paralisados, com as bocas abertas e o os corpos sacudindo feito vara verde na beira do lago.

Os dois jacarés seguintes, vendo aquilo, se aproximaram investindo contra os dois monstros. Bastou tocar nos monstros, ou esbarrar nos jacarés que se encontravam paralisados e o efeito se repetiu. Ficaram igualmente paralisados e com uma tremedeira inexplicável por todo o corpo.

Em seguida, os corpos dos quatro jacarés, subiram nas águas do lago e permaneceram flutuando de cabeça para baixo, como se tivessem resolvido dormir de uma forma diferente. Na verdade, estavam todos mortos. O quinto jacaré da patrulha, vendo aquilo, abandonou o local e tratou de avisar os demais.

Quando o bando tomou conhecimento do ocorrido, foi tomado de pânico. Afinal, que força demoníaca seria capaz de liquidar quatro jacarés adultos, com mais de três metros cada um, de uma única vez? Era demais para o bando.

Recolheram-se para a extremidade do lago e aguardaram o novo período de cheia dos rios, quando então, o furo se abriu novamente. Não foi preciso falar duas vezes. Trataram de cruzar o furo e retornar ao rio, descendo a correnteza e se afastando daquele lugar perigoso e sinistro.

Prego, que nunca deixou de espionar os jacarés, notou o reboliço. Só que viu pouco e entendeu menos ainda.

Na companhia dos demais expôs suas dúvidas. Contudo, falou também da sua impressão, já muito forte, de que os jacarés haviam abandonado o canal.

A dúvida permaneceu no seio da bicharada, até que um tracajá, discreto e silencioso, que raramente aparecia no lugar, foi consultado se por ventura sabia algo sobre o novo monstro do rio e que agora era o senhor do lago.

O tracajá, pouco conhecido, porém sensato e observador, pela primeira vez se dirigiu aos demais:

— Devo lhes dizer que não se trata de nenhum monstro ou ser demoníaco. Na verdade, o que adentrou o nosso lago foi um casal de poraquês. Esses bichos são silenciosos e normalmente pacíficos, só atacando se forem ameaçados. Assim fiquem tranquilos. Agora são habitantes deste mesmo lago. Assim que puderem, vão dar as boas-vindas. Vão gostar de saber que esta também é a casa deles.

Bem, então foi assim que aconteceu, lá pelas barrancas do Solimões e é assim que contam essa história. De qualquer forma, o que importava mesmo, é que o paraíso das plagas amazônicas estava de volta, pelo menos por enquanto.

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