Por: Antonio Mata
Ela sabia das possibilidades sempre presentes, sempre atuantes, aproximando seres e falas extremamente diversas. Não bastando só isso, em situações comumente improváveis.
Entretanto, nem por isso deixaria de reuni-los em cenários verdadeiramente oníricos. De pura magia e encantamento. Os de alma doce, mas irrequieta, eram de longe, os seus preferidos.
Porém, como a vida é cheia de atropelos e percalços, nem todos que passam por ali apreciam os jardins da Fábula. Por mais que ela lhes ofereça cuidados.
Isso não é pouco, não. Mas, também nem era só isso.
De cabelos soltos ao vento, apontara os belos olhos para alguém próximo, um velho conhecido. Este parecia acabrunhado, cabisbaixo por alguma razão. Compenetrado e envolto em seus próprios pensamentos. Sequer notou sua presença.
Não foi nem uma nem duas vezes que se envolvera em episódios de real grandeza. Ela bem o sabia. Contudo, algo o prendia em suas divagações. Não lembrava nem um pouco o protagonista, ora ruidoso; ora discreto; ora romântico; ora heroico de outros tempos.
Emudecera de vez. Fábula, achou melhor aguardar por sua atenção. Apenas esperava, sem que ele se manifestasse. Imaginava o que poderia ter provocado tal situação.
Enfim, aos poucos, se pôs a falar.
— A lua fala..., a estrela fala..., contam coisas às areias do tempo. Às estrelas do mar. Até as pedras falam.
Fábula procurava entusiasmá-lo.
— E então, não é fantástico, não é diferente? Ninguém faz igual. Está em você o tempo todo, é a sua criação.
— Eu sei... — Respondeu e tornou a baixar a cabeça.
— Eu não entendo Apólogo. Por que isso agora? — Fábula pensou um pouco, buscando encontrar algo que o consolasse. — Então, lhe ocorreu que mesmo os tempos, já não são mais os mesmos.
— Veja só, eu entendo que o mundo está diferente. Eu sei que em outros tempos, eram capazes de gravar na memória e contar tudo de cor e com desenvoltura. Não era uma chatice, muito pelo contrário. Todos paravam para ouvir. E você estava lá Apólogo, palavra após palavra. — Fábula insistia.
— Não percebe? Você era lembrado, mais que isso, você era amado. Tudo fazia sentido, explicava as coisas com simplicidade. Você viajava no tempo.
— Eu sei, eu me lembro. — Olhou para Fábula com firmeza.
— Agora, olhe ao redor. Quem vê, quem se apresenta, quem se importa? Não percebe? Não somos mais nada. — Virou-se e olhava ao longe, falando de costas.
— Querem coisas cada vez menores. Lições cada vez menores. Quase algo com começo, sem meio e aí o fim. A atenção se perdeu, a paciência se perdeu. Um bom enredo e expectativas. Ninguém sabe mais o que é isso. Tempos modernos.
Fábula compreendia agora o que se apossara de Apólogo. Afinal, a banalização da vida já não havia se tornado um fato? Olhar sequências gravadas de 16 segundos em uma tela nas mãos, já não era o grande e tolo atrativo?
Por que ler, por que pensar? Basta poder enxergar. Não precisam mais de um enredo, já que os personagens possuem sucesso tão instantâneo quanto efêmero.
As histórias são efêmeras, ou senão, inexistem. Os personagens são efêmeros, os autores são efêmeros. Tudo é diluído e banal, à espera da próxima sequência.
Era isso, Apólogo estava tomado pelo mal do século. Sem o ímpeto de um felino, mas que não agride a fragilidade de uma pomba, adoecera. Perdera suas energias. Estava deprimido.
— Eu sei que existem coisas boas para se fazer em 16 segundos. Já estas pessoas, parece que ainda não. Mesmo assim, venha comigo.
— Para quê? Para fazer o quê? Não há mais nada a se fazer. Tudo já acabou, já se perdeu.
— Ainda não, apenas venha comigo. — Deu-lhe as costas e iniciou a caminhar, afastando-se.
Olhava para a moça bonita de cabelos longos, como que flutuando por sobre o areal e não estava lá muito convencido do que ouvira.
— Está bem, espere. Me espere! — Levantou-se, ainda meio contrariado. Porém, ficou curioso com a atitude de Fábula. Talvez, valesse a pena conhecer a poção mágica que haveria de oferecer.
De qualquer modo, poderia lhe mostrar, a partir das próprias ações de Fábula, que estava enganada, iludida. Que nada daquilo fazia mais sentido. Era chegada a hora de se retirar.
Sair das letras, dos tempos e da memória dos homens. Mal podia acreditar em si mesmo. Sentia-se moribundo, um morto vivo. Corpo de pedra estendido no chão. A lama que o cobrisse até desaparecer. Desapareceria o último dos Apólogos.
Fábula assumiu a velocidade do vento, com Apólogo ainda em seu encalço. Em dado momento deteve-se. Lá embaixo, o rio lento e sinuoso, desenhava formas cercado pela floresta.
— Preste atenção e olhe bem ali embaixo — Apontava para um monturo na floresta, coisa pouca quase imperceptível.
— Não estou vendo nada demais.
— Está sim, olhe de novo.
— Tá bom Fábula, aquilo é um casco! E daí, o que isso tem a ver? Foi só para isso que você me trouxe? Eu agradeço, mas preciso voltar. Chega de florestas na minha vida. O encantamento acabou, se foi, não tem mais.
— Espere, preste atenção. Veja o que está acontecendo.
Apólogo, se deu conta de que estava assumindo a mesma postura que minutos antes, havia condenado. A pressa, a desatenção e o consequente vazio, o efêmero. Quem foi senhor dos quatro elementos não pode fazer isso.
Deixou aquela postura de lado. Tornou a olhar para o local e procurou entender o que Fábula insistia tanto em lhe mostrar.
Era um animal, um jabuti, já adulto. Lembrou e achou engraçado rever o personagem, um dos mais atuantes. Assim como seus primos, todos costumeiramente chamados, indistintamente de tartarugas. Talvez, apenas uma simplificação para as crianças.
Costumava surgir, fosse orientando os demais, com palavras seguras, adquiridas na experiência dos anos. Fosse lhes aplicando peças. Principalmente naqueles que só sabiam rir de sua lentidão.
No final, a experiência, a paciência e a observação se tornavam seus trunfos. Acabou se tornando sinônimo de sabedoria e equilíbrio, construídos ao longo de muitos anos e muitas histórias.
Prestou atenção e pôde ver dois homens se aproximando devagar. Até que um deles o avistou e foi diretamente onde o jabuti estava. Com aquele seu casco brilhante, se acreditando estar escondido, por entre os arbustos e a vegetação rasteira.
O jabuti, de casco alto e passos lentos, atingira a faixa de risco em sua vida. Com a terra cada vez mais desnudada e o som das máquinas cada vez mais próximo, decidiu se afastar dali.
Por semanas de constante caminhada buscou a sossego e a paz tão almejada e tão pobremente perdida. Sabia que sem a floresta, sua sombra, sua água e seus talos e folhas, fatalmente morreria.
Só não se deu conta de uma coisa. Para a ribeira, para o caboco, o jabuti já tinha cara de comida. Com dois palmos de comprimento, era exatamente por isso, um prato muito apreciado.
— Por que vocês estão fazendo isso? Para onde estão me levando. Vocês estão fazendo confusão. Eu não sou uma tartaruga. Logo, não sirvo para fazer uma tartarugada. — Reclamava o jabuti.
— Guarde sua filosofia para outro, seu jabuti metido a esperto. Tem muita água quente esperando por você.
— Espere um pouco. Talvez eu sirva para outra coisa. Sei lá, como animal de guarda, talvez. Eu durmo muito pouco. Não dou trabalho e como quase nada. Sei me virar sozinho.
— É, eu já sei, ô animal de guarda. O jacaré vai guardar você na barriga dele. Agora fique quieto e pare de contar com coisas que você já sabe que não existem.
— Pois é meu caboco, talvez seja só isso. A incredulidade e o imediatismo chegaram aqui também. Em outros tempos, você pensaria duas vezes antes de me pegar. Saberia que não se pode acabar com tudo de uma vez.
O que não existe, o improvável, o inimaginável. Floresta de vida e de magia. Aquilo que só a floresta conhece. Só ela é que pode ver, só ela é capaz de sentir. Contudo, um pensamento, um sentimento e uma razão. Havia mais alguém. Fábula estava ali.
Recolheram o jabuti em um saco e o amarraram. Em seguida retornaram para a canoa. Já haviam providenciado a farinha, a abóbora, o feijão, o tucupi e folhas aromáticas. A comida que assegurou nove mil anos de fartura.
Estavam no topo da pirâmide alimentar e tanto quanto os índios, também precisavam comer. Os dias do jabuti chegavam ao fim. A menos que alguém pudesse intervir. Um ser atemporal, fora da visão e da compreensão dos homens. Fábula, a rainha das histórias.
Ela olhou para Apólogo e explicou.
— É aqui que a gente se encontra, mais uma vez. Eu sei que os homens precisam comer. É a lei da natureza. Mas, existe ainda a minha própria natureza. Não posso deixar que um animal tão capaz, tão sábio e longevo, seja sacrificado dessa forma. Então, preciso da sua ajuda Apólogo. Talvez você possa fazer alguma coisa.
— Posso avisar ao vento para virar a canoa.
— Nada disso, poderia matar os homens e o jabuti está preso dentro do saco. Com certeza morreria afogado.
— Posso dizer as águas para fazerem um redemoinho, até que fiquem tontos e caiam da canoa.
— Para morrerem afogados também? Ademais, o jabuti preso no saco torraria nesse sol.
— Então, não posso fazer mais nada.
— Já assisti saídas brilhantes suas. Aguarde mais um pouco. Talvez tenhamos outra chance. — Fábula insistia.
Apólogo não estava convencido. Aquele jabuti estava em uma difícil situação e ao chegar no vilarejo, só iria piorar.
De fato, ao encostarem em uma palafita, nos fundos havia um caldeirão com água posta a ferver. O tempo para agir estava se tornando cada vez mais curto.
Por costume já de muitos séculos, o jabuti é atirado no caldeirão de água fervente, ainda vivo. Fábula buscava livrar o animal de um final tão triste quanto cruel e inglório.
Afinal, assim como a coruja, o jabuti era sinônimo de sabedoria e maturidade, orientando outros animais. Adorava fazer o arremate, o fechamento das histórias com palavras notáveis que encantavam crianças e adultos.
— E agora Apólogo? Pense em alguma saída rápido, senão, não poderemos ajudá-lo.
Apólogo pensava nos elementos que poderia dispor.
— A chuva não ajudaria, pois o caldeirão está debaixo de uma palhoça. Aumentar a insolação, também não serviria. Seria jogado no caldeirão de qualquer forma. Nevoeiro não serve e o sol já vai alto. Chuva de granizo também não. Uma ventania poderia derrubar a palafita. Raios e trovões não servem. Nem uma enchente. Fábula, eu lamento, já pensei em tudo.
— Não é possível. Tem de haver algo que possamos fazer.
— Eu sei, mas esse algo não está aparecendo.
Fábula estava desolada. Logo o jabuti seria levado para a palhoça.
Todavia, Apólogo parecia ter lembrado de algo.
— Talvez tenhamos uma chance.
— Conte, conte logo! Agora era Fábula que demonstrava aflição.
— Ainda assim, vou precisar de sua ajuda. Providencie um macaco forte que possa agarrar o jabuti com o saco e tudo.
— Já pensei nisso! Vão pegá-lo assim que tentar. Carregando o saco, fugirá lentamente e poderão alcançá-lo.
— Eu já sei Fábula. Confie em mim. Vou procurar fazer uma confusão na palhoça. O suficiente para que o seu macaco possa se aproximar. Você sabe o que é uma tesoura de vento?
— Não, nunca ouvi falar.
— Pois deixe seu macaco a postos, você logo verá.
Apólogo, vendo que o tempo estava acabando, lançou um forte chamamento.
— Fadas e Silfos, amigos dos ventos, venham em nosso auxílio, pois precisamos de vocês!
Rapidamente o céu escureceu e um redemoinho se formou nas alturas. Com a mesma velocidade, desceu trazendo chuva. O efeito, o que tinha de repentino, tinha de comum. Na ribeira, todo mundo conhece estas chuvadas. Estão em todo canto.
— Agora, meus amigos! Façam um jato bem estreito na direção do caldeirão fervente. Não derrubem a casa de ninguém, somente aquele caldeirão. Precisam agir rápido!
Silfos em fila, bem próximos uns dos outros, naquilo que os olhos dos homens não podem ver, desceram em velocidade na direção do caldeirão fervente. Desciam do céu e gritavam.
— Sopra mais, sopra o vento! Sopra mais! O caldeirão vai virar!
Então, sem que ninguém entendesse o que estava acontecendo, um vento forte e úmido soprou na direção do caldeirão, passando por debaixo da palhoça. Espalhou o braseiro, enquanto atirava o caldeirão e a água fervente ao chão.
Fizeram de tal forma, que a água derramada, apagava o braseiro então espalhado. As brasas que se lançavam mais longe eram apagadas pela própria chuva.
Uma tesoura de vento. Fenômeno meteorológico capaz de derrubar um avião. Uma variação brusca na velocidade do vento havia sido criada e direcionada para o caldeirão.
Tão rápido quanto veio, passou. Todas as pessoas da casa ficaram estupefatas. Foi quando Fábula acionou o macaco.
— Agora! Corra e pegue o saco com o jabuti, depressa!
— Deixe comigo, minha rainha! Faço qualquer coisa para servi-la. Fábula, a rainha das histórias!
O macaco saiu em disparada. Enquanto olhavam boquiabertos para a confusão que havia ocorrido, pegou o saco, jogou nas costas e esqueceu o medo de ser pego. Correu o mais rápido que pôde na direção da floresta, enquanto cantava.
— Corre macaco, corre macaco, macaco vai corrêêê!
Quando retornaram do susto e se puseram a procurar...
— Cadê o saco, cadê o jabuti?
Deram de ombros, ninguém sabia. Até que um deles, desalentado, começou a falar.
— Alguém escutou um barulho de macaco?
— Que macaco? A gente queria comer jabuti, e o vento levou.
— Passou aqui um jato de avião. Só pode ser, eu nunca vi.
— Um jato d’água. Mas, como ele fez isso?
— Esquece isso gente, nessas matas tem coisas que a gente não sabe de onde vem, nem para onde vai.
O jabuti, finalmente estava salvo. Foi solto em lugar seguro, afastado dos homens. Por quanto tempo? Ninguém sabe.
Fábula, enfim contente, olhava para Apólogo. Seus olhos brilhavam enquanto sorria.
— Este é o Apólogo que todos admiram! Grandioso, verdadeiro!
— Todos, será mesmo? Estamos fora de moda. Talvez estejamos ficando velhos. Aqueles meninos com a cara enfiada em seus joguinhos não vão saber disso nunca.
— Não lamente tanto. Na vida tudo passa e um dia, tudo isso vai passar. Ainda vamos todos rir muito.
Então foi assim que tudo aconteceu, tanto no visível como no invisível. Altruísmo, coragem e grandeza d’alma. Na realidade da vida, como na fantasia das histórias que permearam a infância dos homens, existirão sempre, as aventuras de Fábula e Apólogo.
Pense em um casal que tem tudo para ser feliz. Para sempre.
FIM