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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Fábula e Apólogo - Transformação

Por: Antonio Mata

O vestido longo, em tom suave de marfim estava estendido em roda, por sobre o lajeado. A dona, tão bonita quanto o vestido, pensativa, tinha a mão direita apoiada no queixo. Enquanto assistia o lento passar das águas, no rio logo adiante.

Batendo nas pedras, as águas produziam um marulhar típico. Nem o som nem o rio explicavam cena tão diferente. A menos que já se tenha imaginado uma fada rainha, em um belo vestido, absorta em seus pensamentos e só, na beira do rio.

Tempos incomuns, de incertezas, são os tempos chegados. Ora, se eram preditos, então já não o sabia? Ou será que não? Fadas encantam por si só. Como haveria de não saber? Devia saber de algo que pudesse ajudá-la. Mas, sabia mesmo?

De olhar distante, sentia que algo estava particularmente alterado. Não se tratava de algum problema com esse ou aquele animal que adornou as histórias da infância. Transformados em lembranças para os mais velhos.

O mundo mutante havia chegado, como nunca fizera antes. Não nestes tempos. Atenciosa com seus companheiros de histórias, decidiu percorrer a região.

O corpo se elevou no ar da forma como ela se encontrava. Depois se estendeu, com os braços abertos, levitando cada vez mais alto. Percorria os mais distantes recantos da grande floresta. Mesmo aqueles onde os homens nunca haviam pisado.

Sua figura, invisivelmente, volitava por uma hora, um dia, um segundo. Tanto faz, as fadas da floresta não estão circunscritas ao tempo. Ainda assim, interage com os animais os mais diversos. Desde os cupins, até as onças, jacarés e sucuris.

Seus bichos se mostravam anormalmente nervosos aqui, apáticos ali. Reclamavam de dores, sem terem sido atacados. Alguns confusos, outros irritadiços.

A onda invisível de mal estar parecia alcançar a todos indistintamente. Não havia mais forte nem mais fraco. Todos sentiam, todos de alguma forma pareciam aflitos. Pairava no ar uma inquietude, uma ansiedade aparentemente sem explicação.

A rainha prosseguia em seu sobrevoo. Sua visão penetrava na vegetação alcançando todos os pássaros, peixes nos rios e os animais de terra e de toca. Cada um reagia de um jeito incomum àquela situação estranha.

Ainda volitava, suave e observadora, buscando detalhes, explicações. Quando uma voz chegou à sua mente.

— Vejo que pôde notar a enorme apatia e a onda de ansiedade que atinge seus animais. Ocorre de forma desagradável.  A ponto de lhes perturbar o sono.

— Pude sim e estou preocupada com isso Apólogo. Algo está mexendo com o equilíbrio deles e ainda não sei, com mais clareza, o que está acontecendo e o que pode ser feito para ajudá-los. — Continuava pensativa enquanto comentava.

— Já aconteceu tanta coisa na região. Receio que de alguma forma, possam estar sendo negativamente influenciados e que isto os prejudique ainda mais.

— Sem dúvida que muito do que ocorre aqui os atinge. Tanto é verdade que a extinção de animais prossegue. O que enseja a possibilidade de que certos animais já tenham se extinguido, sem que, sequer os homens soubessem da existência deles. — Apólogo expunha uma questão fundamental para quem tinha o compromisso de ser o mais inteligente do planeta.

— É isso mesmo, assim como você disse. Animais sendo extintos sem sequer cumprirem o seu plano evolutivo, planos interrompidos prematuramente. Tanto trabalho para nada. Neste mundo atrasado ninguém tem autoridade para intervir e deter ou anular estes planos. São planos da vida, são planos Divinos.

— Muito honestos seus sentimentos e preocupações para com os animais. Não se pode confundir permissão para se alimentar, para comer carne, com autorização para extinguir. O homem cria seus animais domésticos, mas não respeita os animais silvestres.

Saíram juntos enquanto a fada prosseguia com suas observações. Logo encontrou um bando de macacos. Desceu e aproximou-se, permitindo ser vista pelos animais.

— Pude ouvir seus reclames. São presenças muito constantes nas histórias. Sempre tão ativos. O que foi que ouve com vocês?

— Não sei, meu corpo dói.

— Nossa! Onde está doendo?

— Não sei, dói tudo.

— Mas deve estar doendo mais na barriga, nas costas, nas pernas ou nos braços, não é?

— Não sei, dói tudo.

— Tudo como?

— Na barriga, nas costas, nas pernas, nos braços e nos pés e mãos também. No pescoço, na cabeça, fora e dentro dela.

— Ah, meu Deus! E agora?

— Não sei, pensei que uma fada soubesse.

Entristecida, se retirou e prosseguiu buscando outros animais.

Encontrou um tucano silencioso e encolhido em um galho, no canto de uma árvore.

— Tucano, não tenho mais escutado seu canto ecoando nas matas, nem seu grande bico batendo. Você está muito quieto. O que está acontecendo?

— Não quero mais.

— Por que, o que houve?

— Não sinto vontade.

— Mas você dava tanta vida às florestas.

— Não quero mais.

— Está bem amigo tucano. Vou deixá-lo em paz. — Desolada, retirou-se deixando o local.

Logo encontrou a onça pintada. O animal andava de um lado para o outro sem parar. Mesmo que não houvesse razão para isso. Atitude típica dos felinos enjaulados. Mas, este estava solto.

— E você onça, um dos animais mais respeitados da floresta. Por que está andando de um lado para outro? Você não está em uma jaula. Pode sair para caçar. — A onça respondeu.

— Eu sei disso.

— E então, qual o motivo desse comportamento.

— Não sei, não. Principalmente, não sei o que vai acontecer amanhã. Se vou estar viva, se vou estar morta. Mesmo as caças estão se comportando de um jeito estranho. Parece que nem querem mais tomar água. Não consigo fazer uma tocaia. Não passa ninguém na trilha. Não sei o que é isso.

— Lamento muito onça. Estamos buscando compreender tudo isso. São muitos animais envolvidos.

— Eu não sei, eu não sei. O que está acontecendo aqui? O que está acontecendo comigo? — O felino demonstrava profunda angústia em sua fala.

A rainha das fadas concluía suas verificações sob um grande desalento. Seus animais, seus personagens, verdadeiros artistas imortais, estavam sofrendo.

Apólogo resolveu intervir.

— Mesmo assim Fábula, existem outras questões que correm em paralelo. São marcas do nosso tempo. Acredito que esclareçam melhor o que se passa com a fauna. Não podemos esquecer do dinamismo da vida.

— Sim, nada é para sempre. Tudo muda, tudo se transforma na vida e no mundo. Só lamento tanto sofrimento.

— É exatamente isto que me ocorre, rainha das histórias. Estamos dentro de um processo de profundas transformações na Terra. O que ocorre com a sua fauna, são sintomas da mudança. Atinge os animais, também os homens e o próprio mundo. Também envolve outros mundos, além do nosso.

Fábula ouvia seu amigo com atenção.

— Na medida em que a Transição Espiritual do planeta avança, adentramos no espaço, no Cinturão de Fótons de Alcione. A estrela central da Constelação das Plêiades. Esse campo de fótons é muito benéfico, porém os corpos dos seus animais não estão preparados para ele, dos homens também não.

— Mesmo o Sol está emitindo novas energias que igualmente interferem nos organismos vivos. Não se trata de um maltrato, pois o Criador não maltrata ninguém. Na verdade, é um ajuste necessário para as mudanças que virão.

— Como ficarão os animais? Isto não vai cessar?

— Por conta das mudanças necessárias, seriam fatalmente atingidos. Entretanto, como não devem nada a ninguém, poderão ser poupados. Não precisam viver assim indefinidamente, muito menos continuar com o homem nessa travessia.

— Mesmo sendo animais domésticos?

— Sim, mesmo sendo animais domésticos. Não devem nada aos homens, os homens é que devem a eles, os animais, e entre eles mesmos, coletivamente. Aí, não há como ser diferente.

— Mas, afinal, como separar uns dos outros? Homens e animais, estão todos no mesmo mundo.

— Você terá de aguardar mais um pouco, até o momento mais adequado, quando então poderemos intervir. Vamos cuidar dos animais. Dos homens, haverá quem faça isso.

Um mundo avançava para a conclusão de sua própria transição evolutiva. Esta evolução se apresentava naturalmente sem maiores alardes, a não ser, o mal-estar momentâneo de todos.

Novos tempos para uma vida nova. Para os animais domésticos, o fim dos grandes rebanhos e do consumo de carne. Para os silvestres, o fim dos carnívoros, que adotarão as novas plantas que surgirão como alimento.

Os novos sabores, a sua fartura e saciedade os fará esquecer da carne e da necessidade de se caçar. Correr pelos campos será apenas por diversão. Antas e onças se banharão juntos.

O consumo da carne de outros filhos da Criação, típico dos mundos atrasados, será gradativamente extinto. Novos tempos, uma nova forma mais pacífica de se viver. A alusão aos brandos e pacíficos, não está restrita aos homens. A mansidão, finalmente chegará entre as feras.

Fábula, mais confortada, passou a aguardar o momento da intervenção em favor de seus animais. Os anos avançavam rapidamente. Até que esse dia chegou.

Apólogo então, reuniu seus seres elementais e os quatro elementos. A água, a terra, o fogo e o ar. Com suas energias unidas em grande concentração, adensaram imensa onda de frio que atravessou todo o globo.

A friagem percorreu todos os campos, florestas, mares e montanhas. Um fenômeno incomum e raramente utilizado em qualquer época das diversas civilizações que pisaram a Terra.

As forças da natureza, sob condução de Apólogo prepararam a Terra para a segunda fase do grande intento. Após a friagem, ato contínuo provocaram o sono induzido em todos os animais.

Grupo após grupo, região após região, os animais da Terra buscaram se acomodar em suas tocas, ninhos e esconderijos. Os cães e gatos domésticos, impelidos por um sono avassalador, seguiram para seus lugares habituais de repouso.

As aves de estimação e nos aviários se acomodaram como quem se prepara para a noite. Assim então, acomodados e seguros, entraram todos em profunda hibernação.

Dessa forma a paz voltou aos inúmeros rincões da Terra. Quando retornassem do sono profundo, o mundo, curado e refeito de seus males, já não seria mais o mesmo.

O Criador, na sua infinita grandeza, não ofereceria sofrimentos a quem não carrega a necessidade da reposição de erros cometidos. Mesmo que, por ventura, viessem a deixar a vida na matéria, seriam recebidos nos planos mais elevados da vida, dando continuidade às suas existências. Como se nada lhes houvesse acontecido.

A rainha trazia o belo sorriso estampado no rosto mais uma vez. Apólogo, gentil, intimorato e prestativo, estava com ela. De certa forma, sabiam que um sentimento simples haveria de os guiar pelos caminhos do mundo.

Sentimento este expresso em um punhado de palavras. Assim como, para Fábula e Apólogo, assim também para com os homens. Aconteça o que acontecer, segura na mão de Deus e vai.

                

                                              FIM

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