Foto: Fabian Clavijo - Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
Só olhava para fora pelo vidro quebrado. Um buraco de uns três dedos na janela. Apenas para não ter que se levantar. Pensou ser um momento adequado, estava até animado com a ideia de vê-los novamente.
Considerava-os seus amigos e de longa data. Bastava chegar com os demais que o grupo logo se animava. Até passaria mais tempo circulando por ali e nos arredores, não fosse o excesso de preguiça. De qualquer modo, não adiantava chegar cedo. Ou estariam ocupados trabalhando, o que não era lá do seu interesse, ou simplesmente não estariam ali.
— Daqui a pouco o movimento vai começar, Hubert. Vai até lá dessa vez? Ou vai querer sair sozinho de novo? O que foi que você viu daquele lado da cidade, que eu ainda não vi? Tinha algo interessante por lá?
— Leva esse espanhol franzino contigo, é outro que passa o dia dormindo. Quero outro lugar para ficar. Chega da companhia de cachaceiros e vagabundos. Já encontrei coisa melhor.
O francês, era comerciante de artigos importados, ou pelo menos foi um comerciante. Havia perdido tudo no jogo e agora se ajeitava como a vida lhe permitisse.
Jacinto só falava por implicância. Na verdade, sempre achou o francês um sujeito meio metido a besta. Um quebrado, que agora teria que se virar. Não fosse por isso, nunca teriam se conhecido. Com cara de poucos amigos, se aproximou do francês, que vestia um casaco furado nas costas.
— Veja lá como você fala. Só por garantia, abre teu olho, Hubert. Você ainda não saiu e ainda pode ser espetado de repente. Falido Hubert, pé rapado Hubert.
A antipatia vinha junto daquele bafo de cachaça insuportável. Não era à toa que o francês queria picar a mula dali. Se ajeitou com os demais por força das circunstâncias e não por gosto. A antipatia foi desde o início e era recíproca.
Estava em uma terra sem amigos. No meio do mato, no meio do nada e sem um único penny de latão, quanto mais de bronze. Só conhecia os amigos do flanelado verde. Todos os demais eram meros compradores dos artigos de luxo que trazia de Nantes, na França, em uma viagem de 33 dias. Em que pesasse, e muito, serem a sua clientela, não escondia nem disfarçava o ar de superioridade com que tratava os demais.
Adoravam tudo que viesse da Europa, particularmente da França. O melhor de tudo é que tinham dinheiro para pagar. Desde que continuassem comprando e pagando, estaria tudo muito bem.
Seus artigos de vestuário e de uso doméstico, voltados para as famílias abastadas eram vendidos com facilidade. Com o que os cavalheiros do lugar pagavam por um simples chapéu coco, na França se comprariam três. Talvez até quatro, com tanta libra esterlina no bolso daquela gente.
Um simples sabonete perfumado, poderia custar até seis vezes mais caro.
Foi sua vez de ficar vigiando pela janela. Lá fora escureceu e resolveu sair sozinho como de costume. Desceu e ganhou as ruas caminhando pelos cantos, evitando as pessoas que passavam e mesmo os lampiões.
Passo acelerado, não se importou pelo tanto que precisasse andar. Nada parecia longe naquela cidade. Até que vislumbrou por entre as árvores, logo adiante, do outro lado da rua, o belo sobrado dos Gonçalves.
Como supunha, deu sorte outra vez. O criado da casa deixou a porta entreaberta, enquanto buscava algo. Aproximou-se no intuito de entrar discretamente. Sem muita pressa, conseguiu. Já na antessala, com um sorriso de satisfação no rosto, arregalou os olhos com quem apareceu na sua frente, todo molhado.
— Espanhol, espanhol? Que faites-vous ici? Sai daqui, sai daqui! Some daqui! Achei primeiro! Volte para o seu pardieiro de cachaceiros lá do porto!
Espanhol avançou em sua direção. O soco no meio da cara fez Hubert se estatelar no chão com as pernas e braços abertos.
Procurou recobrar os sentidos e saiu no encalço do espanhol pelo casarão adentro. Correu até a cozinha, só a tempo de vê-lo passar, tal e qual um vulto escorregando na direção da porta. Saiu e foi em seu encalço.
— Seu cachorro espanhol, vou jogá-lo na rua!
O fugitivo ganhou a escadaria e correu, esfogueado, para o andar superior, procurando enxergar no escuro. De relance, encontrou mais uma porta aberta.
Lá embaixo, alheio ao que se passava naquele início de noite, o criado achou o que queria. Em seguida, deixou a residência trancando a porta pelo lado de fora.
Época de progresso, ainda que para poucos. Contudo, as melhorias despontavam na cidade, lá pelo final do século XIX. Nada do que se conhecia antes, se equiparava a eletricidade.
O evento aposentaria os lampiões a óleo nas ruas, estabeleceu o serviço de bondes e as lâmpadas elétricas chegavam lentamente para fazer a iluminação das residências e do comércio.
A cidade assumia ares de uma capital do século XX. Mesmo com as casas mais pobres, sendo iluminadas com gordura de tartaruga. Barata, até certo ponto.
As ruas recebiam o calçamento com paralelepípedos de granito, modificando os cenários da cidadezinha acanhada. As rodas de madeira, acinturadas em aço, faziam um barulho e um tremelique característico nas charretes da cidade.
Inegavelmente era melhor que os atoleiros, tão comuns de então. Logo se acostumaram com a novidade. Tudo crescia e 50 mil almas já se espalhavam naquela beira de rio.
Era no porto que se acumulava o maior movimento do lugar. Era também onde grandes negócios eram fechados, entre importação e exportação, nas casas e representações comerciais. Contudo, a cidade já convidava ao passeio público nas imediações da Matriz e nas avenidas e ruas próximas.
Nas tabernas nas imediações do porto, os homens já se reuniam para a conversa entremeadas entre goles de aguardente. Uma dose era cara, em um lugar onde tudo era caro. Contudo era a bebida destilada mais barata que havia.
Jacinto e Brás já circulavam por entre os muitos bebedores de início de noite. Pouco afetos ao trabalho, acabaram sendo arrastados pelo álcool das vielas escuras.
O interessante é que não havia distinção de classe social, todos se embebedavam igualmente. A menos que houvesse dinheiro, e bota dinheiro nisso. Para as noites com as polacas, aquelas de pele branca pálida, somente disponíveis a quem pudesse pagar.
Aos homens comuns, os prostíbulos ordinários, a cantoria e a aguardente no meio da noite era o prazer mais imediato de que podiam dispor. Ainda assim, a libra, os xelins e o pence, circulavam sem pé de igualdade, junto aos mil réis que pagavam o trabalho dos mais pobres.
Lugar esquisito aquele. Cidade diferente, exótica, a ponto de os próprios visitantes estranharem. Estava cercado de árvores, uma floresta tão densa quanto imensa, que mal permitia a passagem da luz. Lugar de muita terra.
Ainda assim, caso se precisasse de madeira, era preciso trazer de navio. A madeira vinha de fora e vendida em libras esterlinas. O abastecimento de alimentos, não era diferente, já que não havia plantio de coisa alguma, que não fosse a roça de subsistência daqueles que estavam fora do frenesi.
Quando as embarcações trazendo alimentos, por alguma razão atrasavam, faltavam gêneros alimentícios e o preço disparava sem dó, até que a reposição fosse feita. Nestas horas, café, açúcar e trigo, desapareciam. Poderiam se tornar verdadeiros luxos. Mesmo que as libras, estivessem nos bolsos para pagar.
Entretanto, tais agruras não significavam fome. Não com os arredores cheios de caça, peixes e quelônios. Mulheres, jovens e até crianças eram mobilizados nestas horas.
No sobrado dos Gonçalves, a alucinação prosseguia pelo controle da casa dos outros.
— Não se faça de besta espanhol. Vou te encontrar e tocá-lo para fora como um cão sarnento, com o rabo entre as pernas. Vi primeiro, achei a casa primeiro!
Lá do alto, veio a resposta:
— Vai-te à merda Hubert. Eu já estava aqui. Até mesmo um patife como você é minha testemunha.
— Chien mouillé, puant et galeux! Vou acabar com a tua raça!
Entrementes, chegou o senhor Gonçalves, na companhia de Hilário, seu criado que tomava conta da residência, na ausência da família. Hilário tinha ido buscá-lo no cais, pois o barco somente havia chegado no início da noite. O restante da família retornaria em data futura.
— E então Hilário, deu tudo certo? Como ficou a casa?
— Patrão, vou lhe mostrar. Nunca vi nada igual antes. O senhor espere só um pouco, eu volto já.
Na extremidade da sala:
Encolerizado, Hubert começou a subir a escadaria rapidamente em meio a escuridão. Sentiu qualquer coisa à sua frente, antes que pudesse interpretar os fatos.
Espanhol saltou do andar de cima, alcançando o francês no meio dos degraus. Os dois rolaram se batendo, agarrados um no outro. No piso inferior, Hubert levantou-se primeiro e buscava agarrar o homem e socar sua cabeça contra a parede.
Franzino, porém ligeiro, espanhol aproveitou o movimento do corpulento francês para virar e jogá-lo ao chão, onde tentava alcançar o seu pescoço para estrangulá-lo. O encolerizado revidou arremessando o outro com os pés, para o alto.
De cabeças opostas, caídos no chão e peito para cima, os dois brigões se encontravam.
— Patrão, liguei os interruptores daqui de baixo que faltavam. Agora o senhor pode ligar a chave geral.
Gonçalves riscou um fósforo e se dirigiu ao lado da sala. Ao acionar a chave elétrica, o milagre se fez. As lâmpadas recém instaladas no sobrado dos Gonçalves se acenderam, todas de uma vez só, iluminado tudo.
Hubert e espanhol, esbaforidos no chão, ao verem aquilo, deram um grito de pavor, capaz de aterrorizar a rua inteira. Gritavam, urravam, berravam sem saber o que estava se passando, como que submetidos a intensa e maldosa tortura, tamanho o susto.
— Trouxeram a desgraça para cá! Puseram o diabo da luz aqui!
O francês urrava, chorava e gritava enquanto buscavam sair correndo da moderna, confortável e agora iluminada residência da família Gonçalves.
Amadeu Gonçalves, impressionado com o que via, tinha um sorriso de um canto a outro do rosto. Estava encantado e antevia o encantamento da mulher e dos quatro filhos.
Contente, não parava de repetir:
— Era isso que eu queria, era isso que eu queria.
Nem notou quando dois homens apavorados passaram correndo por ele, rumo à saída daquele pesadelo de luz.
— Eu só queria um lugar para ficar. Só um lugar para ficar.
— É bem feito Hubert. Você é egoísta, quer tudo só para você.
Corriam, lamentavam e choravam, enquanto desciam pela rua. Pouco depois, em uma das bodegas junto ao porto.
— Jacinto, olha só quem vem ali, todo molhado.
— Tô vendo aquele outro, todo sujo.
Os dois estrangeiros estavam de volta ao lugar de início.
— Ei, francês chega pra cá! Olha a branquinha, aproveita Hubert! Toma só uma lapada!
— Espanhol, vê se para de nadar no meio da noite! Vai se enxugar seu idiota! Aproveita e toma uma para esquentar!
Hubert era o mais desbocado.
— Va au diable! Seus cachaceiros, seus caboclos, seus infelizes!
Subiram cabisbaixos e retornaram para o velho e chafurdado sótão, cheio de quinquilharias. Estava silencioso, cheio de morcegos e escuro. Pelo menos por enquanto.
Hubert, havia sido encontrado com uma faca cravada nas costas. Qual a razão, ninguém descobriu. Afinal, já era um jogador falido. Espanhol morreu afogado, ou afogaram ele. Quando o corpo apareceu, ninguém soube explicar. Já o Brás e Jacinto eram espíritos alcóolatras. Absorviam emanações alcoólicas nas casas noturnas da região portuária. Morreram de tanto beber. Coisas da Belle Époque.